terça-feira, 27 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6259: Notas de leitura (98): Em Chão de Papel na Terra da Guiné, de Amândio César (Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Abril de 2010:

Queridos amigos,
Aqui vai a recensão do segundo e último livro do Amândio César sobre a Guiné.
Ele vai aparecer fugazmente no arranque do meu livro “A Viagem do Tangomau”. Com efeito, na noite de 10 de Abril de 1967, na véspera de eu ir para Mafra, fui jantar com o Ruy Cinatti ao restaurante Avis, ao lado do Pirata Bar, junto do Cinema Éden.

A primeira surpresa foi à porta do restaurante, um homem que eu já visto na televisão aproximou-se do Cinatti e perguntou-lhe: “Ouve lá, o Salazar já morreu?”. Intrigado, pedi mais tarde ao Cinatti explicações do que ouvira. Replicou-me: “Não ligue, é um dos maiores escritores portugueses, é o Tomaz de Figueiredo, é um homem das direitas que odeia o Salazar”.

Subimos, já estávamos à mesa, ribombou ali perto um vozeirão: “Ó Cinatti não me ofereces um copinho de vinho verde?” O Cinatti apresenta-me o Amândio César, além do vozeirão, um corpo entroncado, uma conversação com compulsiva. Enquanto comíamos o meio bife do Avis, deitou abaixo quatro garrafas de vinho Gatão. Fomos depois para casa do Cinatti onde derrubou uísque, em doses incontroladas. Despontava o dia quando fomos deixá-lo à Avenida Infante Santo, na sua casa. Obrigou-me a subir para ir buscar “Kaputt”, de Curzio Malaparte, deu-me a seguinte explicação: “Já que vais para a guerra, tens de conhecer as descrições geniais e inigualáveis do horror. Lê e medita”. É que meditei mesmo. Kaputt continua a ser para mim o melhor livro de guerra que alguma vez se escreveu.

Procurei homenageá-lo, pu-lo como primeira leitura em Missirá. Não estou arrependido. Em 11 de Abril, levá-lo-ei debaixo do braço, começava a nossa a amizade. Tenho pena de nunca mais ter visto o Amândio César. Quando se fala em neo-realismo, não vejo uma só referência ao seu livro de contos “Subsolo”, creio que ainda há preconceitos ideológicos aberrantes. César escrevia muito bem, impõe-se fazer-lhe justiça.

Um abraço do
Mário


Amândio César novamente na terra de Honório Barreto

Beja Santos

Poeta, contista, ensaísta, Amândio César foi igualmente repórter e os seus livros sobre Angola e Guiné tiveram no seu tempo larga divulgação, nomeadamente “Angola 1961”. De “Guiné 1965: Contra-ataque”, editado nesse ano, já fizemos a devida recensão. Faltava a referência Em “Chão Papel” na Terra da Guiné, publicado pela Agência-Geral do Ultramar (1967).

Amândio César cobre um conjunto de acontecimentos nomeadamente na península de Bissau (por isso fala em “Chão Papel”). Apoiante indefectível do Império, não esconde os seus ideários nem escamoteia os objectivos propagandísticos, faz um balanço do que ocorreu entre 1965 e 1967, desfaz-se em elogios a Arnaldo Schulz, desanca no PAIGC e profere epítetos pouco lisonjeiros acerca de Amílcar Cabral. Nada de surpresas. Relata acontecimentos como a Feira do Livro de Bissau de 1966, visita o liceu de Honório Barreto e as suas actividades culturais, faz o panegírico de militares falecidos em combate (caso do capitão Tinoco de Faria, pára-quedista), alude às actividades de benemerência do Movimento Nacional Feminino da Guiné, admirador de Hélio Felgas menciona como notável o seu livro “Os Movimentos Terroristas de Angola, Guiné e Moçambique” (Felgas refere as lutas entre o PAIGC e a FLING, inexistentes a partir de 1965, altura em que a FLING se tornou um grupo sem qualquer tipo de apoios internacionais, assiste a cerimoniais muçulmanos demonstrativos da tolerância religiosa, dissecou os empreendimentos da era Schulz, de fio a pavio. Continuando na laude ao espírito visionário de Schulz refere a próxima ressurreição de Bolama que, como é sabido de todos, não chegou a ocorrer. Mas o que escreve tem muito significado.

“A impressão desoladora que me causou Bolama, já não voltará, por certo a acontecer”. A antiga capital que Amândio César considera uma das cidades mais belas que vira nos trópicos, onde tudo ali lembra história e tudo recorda um passado, já estava em fase de desmantelamento. A aposta seria o turismo, a renovação de equipamentos, investimentos no campo agrícola, apoio às cooperativas agrícolas, mais estabelecimentos de ensino, etc. Bolama nunca mais voltou a reerguer-se, tudo leva a crer que nada a retirará da agonia que eu pude confirmar em 1991, passei-me, em total estupefacção, por ruas onde constavam, em placas esmaltadas, os nomes de Teófilo Braga e Manuel Arriaga, uma tipografia como não deve haver outra em toda a África, a praia de Ofir reduzida a um escombro.

Comprovou que a Mocidade Portuguesa tinha mais dinâmica lá do que cá. E, dado importante, refere as grandes vitórias sobre a doença que na hora actual deviam ser relidas para reflexão do desastre de saúde pública em que vive a Guiné-Bissau: o trabalho da missão do sono era considerado pela OMS como verdadeiramente exemplar; o número de doentes de lepra conhecia uma redução assinalável; o Hospital Central de Bissau estava bem apetrechado, a medicina tropical na vanguarda do conhecimento científico. A agricultura, segundo Amândio César, dava passos gigantescos, surgiam indústrias, melhoramentos nos equipamentos portuários, a rede de comunicações progredia a olhos vistos.

É um livro que dá que pensar, naturalmente. Quando vemos agora escrito que António Spínola dizia abertamente que Schulz lhe legara o terreno militar em decomposição, nalguns casos em estado crítico, que não cuidara do reordenamento das populações e não soubera impulsionar o desenvolvimento socioeconómico da Província, há que pôr ao espelho elogios como os de Amândio César e perceber que a propaganda não passa de um cuidado paliativo.

Amândio César foi um repórter que escreveu com exaltação e investimento total das suas convicções. Este registo de crónicas é indispensável para o repertório da literatura do período da guerra colonial.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6196: Notas de leitura (96): Aquelas Longas Horas, de Manuel Barão da Cunha (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 25 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6248: Notas de leitura (97): Livro do Cor. Costa Campos – Guiné – 2. Actividades de Permuta e Comércio Externo (Mário Fitas)

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