sexta-feira, 16 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6162: Notas de leitura (93): Braço Tatuado, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

1. O nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviou-nos, com data de 6 de Abril de 2010:

Queridos amigos,
A viagem açoriano prossegue, o vento sopra de feição, não se prevêem os desfavores da meteorologia atlântica.
Continuo suspenso da solidariedade de todos aqueles que eventualmente tenham mais livros publicados nos anos 80 e 90 e queiram ter a amabilidade de me os emprestar.
Aqui estou, estátua de pedra, a aguardar os vossos sinais.

Um abraço do
Mário


O Braço Tatuado:

O criminoso (às vezes) volta ao local do crime

Beja Santos

A expedição de Arquelau de Mendonça em terras da Guiné, publicada em “Ciclone de Setembro” (1985) deve ter sabido a pouco quer ao escritor quer aos leitores. Arquelau é um ilhéu típico: foi à guerra para não se demorar, andou lá a correr, acompanhado de um casal de rafeiros, comandou o 1º grupo de combate da C Caç 666. As suas correrias, tanto quanto parece, centraram-se no Leste, procurou alhear-se da guerra, era impossível, viu execuções sumárias, dez mortos numa emboscada, entre Piche e Canquelifá. Sofreu as solidões do aquartelamento de Dunane, sentiu a sombra da loucura, depois o Niza, o tal soldado do braço tatuado, resolveu suicidar-se quando a Lena (cujo nome estava tatuado) o preteriu por outro. Não é difícil perceber como o episódio do Niza lhe ficou gravado, obriga Cristóvão de Aguiar a revisitações: “Tento de onde estou parado parlamentar com ele. Faço-lhe ver que aquela loucura o poderá desgraçar para o resto da vida. Não me dá ouvidos. Desgraçado já ele estava, nenhuma outra desgraça o poderia afectar tanto. Dão uns passos a medo e muito devagar. Mal nota que me vou aproximando, dá dois tiros para o ar. Estaco estarrecido. Muito subtil, levo a mão ao bolso e palpo a arma. Ele olha-me com a fixidez de um dementado e entende o meu gesto sorrateiro. Diz ele: Se o meu alferes sonha em tirar a pistola, abato-o de seguida... E despeja, em rajada, quase todo o carregador da G-3 para o ar, mas não tanto para o ar que não sinta o assobio de uma bala rente ao ouvido direito. Não me dou por achado, mas entro em pânico por dentro. A minha cabeça é um carrossel de fogo. Mordo os beiços numa tentativa de autodomínio, se calhar de autodefesa. Verifico que o Niza não traz cinturão nem as cartucheiras. Respiro de alívio”.

O Braço Tatuado, garanto ao leitor, ainda tem muito para dizer. Em 1990 vai pela primeira vez aparecer desafectado do Ciclone de Setembro. Tem inúmeras parecenças mas foi à forja, aparece clarificado, tonificado, menos ilhéu. O autor esquematiza menos, aviva detalhes, tece maiores considerações sobre o que os oficiais do quadro permanente pensavam dos outros, os seus subordinados:

“ – Veja bem, nosso alferes, quem são os militares que se deixam abalar por problemas do foro psicológico e têm na sua maioria de ser evacuados para a psiquiatria: alguns – poucos – furriéis e uma caterva de oficiais milicianos, sobretudos os provenientes das universidades de onde saíram abarrotados de filosofices políticas e anti-patrióticas...

O mesmo já não sucedia, por exemplo, os graduados oriundos da Academia, nem aos que saíram, por falta de vocação, dos seminários. Ambas as castas se encontravam compenetradas do dever, da obediência, da resignação, habituada que foi a primeira à dureza da tarimba e às correntes da disciplina da vida militar profissional, formada que foi a segunda no amor e temor à religião dos nossos maiores, no respeito pelo cilício da pátria, que a todos uniu na justa luta.

– Mas é no soldado bronco e simples que se encontra, alferes Mendonça, o nosso melhor material humano e logístico; vê na tropa um súbito céu de fartura, pouco lhe interessando a destrinça entre justiça e injustiça; nem sequer lhe preocupa os porquês desta guerra que de fora nos impõem, o que nos facilita a tarefa de explicar; por isso, o nosso alferes nunca viu nem de certo há-de ver um soldadinho dos genuínos sofrendo da caixa dos pirolitos; logo que se lhe dá vinho tinto ou mesmo branco, rancho suculento e correio a tempo e horas, nada, mesmo nada deste mundo o fará esmorecer...”

Cristóvão de Aguiar cultiva as emoções-limite, os comportamentos da crueldade paradoxal (aquela que precisa de ser vista por detrás do espelho): pessoas ternas, só na aparência, capazes da mais imprevista sanha homicida; o fanfarrão acobardado; a solidão que nos torna mais frágeis quanto, como um raio, nos chega uma notícia aterradora (é o caso do Niza). O suicidado recebe os benefícios da burocracia militar: fora criado na companhia um saco azul (mediante um pequeno desconto mensal no pré de todo o pessoal) destinado à aquisição de urnas de chumbo e caixões condignos. “Teve o Niza um vistoso e moderno caixão de madeira de pau-sangue envernizada que servia de invólucro a uma bem vedada urna de chumbo. O nosso Primeiro Gervásio abateu-o ao efectivo da Companhia 666 em Ordem de Serviço e não se esqueceu de mencionar que o soldado número tantos, barra 64, ia abonado de alimentação e de pré até hoje inclusive...”. Há os ataques de abelhas, as flagelações, mas havia sobretudo o silêncio lunar em Dunane. Mas um ilhéu confessa-se, sempre: “A Ilha espera-me do outro lado do tempo, que já não é o meu, e da palavra, que ainda me vai pertencendo, e com a qual vou procurando ressuscitá-la. Como voltar agora à Ilha, que me espera, sempre me esperou, na sua fidelidade de amante antiga que, de tanta esperança desgastada, põe luto fechado e chora uma morte ainda não acontecida mas já há muito pressagiada?”. O autor está exausto, interrompe a narrativa, estão todos de abalada até Bissau, o Uíge já os espera perto do Pidjiquiti. O regresso parece fácil. Nunca será, há sempre gritos, vozes, incêndios, até animais espavoridos nos seus currais de morte. É uma guerra pronta a regressar, insidiosa, fica à espreita, na penumbra do tempo. Cada um voltou à sua ilha, agarrou no arado, remexeu a terra, fez filhos, teve uma profissão, procurou iludir os tais gritos, vozes, incêndios. Os sons, as imagens, as palavras têm esse condão de regressar e deixar a marca do ferro em brasa. É assim com todos nós. Por isso percebo muito bem este cerco lançado por “O Braço Tatuado” e matéria congénere. É uma questão de vermos a edição seguinte.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6155: Notas de leitura (92): Trasfega, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

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