terça-feira, 6 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6115: Notas de leitura (89): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar - (II) (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Aqui vai o segundo episódio do Cristóvão de Aguiar, um escritor de tamanhão. Ainda há muita Guiné na sua obra. Como terão oportunidade de ver.
Renovo os meus pedidos, não me canso de bradar no deserto. Quanto aos anos 60, fico grato a quem se lembrar de outros autores para além de Manuel Barão da Cunha, Álvaro Guerra e Armor Pires Mota. Confio na bondade de alguém que conheça outro alguém que me possa emprestar “O Capitão Nemo e Eu” para se concluir a viagem à volta da obra do Álvaro Guerra.
Estamos já nos anos 80, o Zé Grave anunciou que anda à procura de outros açorianos, para além do Álamo de Oliveira, que o Cristóvão de Aguiar me emprestou.
Aceitam-se sugestões. Não há nenhum bairrismo nesta série de escritores açorianos: é bem possível que haja um cocktail explosivo entre ser ilhéu e ter combatido na Guiné.
Não me compete decifrar o mistério.

Um abraço do
Mário


Companhia Independente de Caçadores 666:

Nomes da miséria, a miséria dos nomes


Beja Santos

Continuamos na boa companhia do Cristóvão de Aguiar e do seu “Ciclone de Setembro”, a obra em que ele, em 1985, regressa à Guiné. A 666, o número da Besta, anda há onze meses na nomadização, um grupo de combate acode aqui, outro além. O aquartelamento está a norte de Bafatá, a Companhia Independente está integrada num batalhão de infantaria. Proceda-se ao primeiro inventário das desgraças, ao tempo: três evacuados, o mais grave com duas pernas amputadas e um falecido de todo. Tudo aconteceu três semanas após o desembarque, era uma simples operação de rotina, um treino em simulacro da realidade, ali para os lados de Nhacra, uma bricalhotice. É durante a comédia que irrompe o drama: “O guarda-costas do capitão, o soldado Barrancos, respirando valentia, despoleta uma granada ofensiva. Segura-a na mão para o que der e vier. Não é precisa. Não há inimigo à vista. Respiramos de alívio. O Barrancos também. Só que, com a atrapalhação, enfia a granada no bolso do dólman. Nunca mais se lembra que lhe havia tirado a cavilha de segurança e que, sem a mão fechada fazendo as suas vezes, ela rebenta. Demora-se no bolso apenas uns segundos, depois explode e, por simpatia, as restantes que leva ao dependuro no cinturão. Os que estão próximos levitam e voam com a deslocação do ar. O Barrancos é projectado para a bolanha ainda seca, a uns 30 – 40 metros de distância... Chego junto do Barrancos. Ele ri, ri às gargalhadas. Ao princípio ainda cuido ser choro convulsivo por causa das dores. Mas não. São gargalhadas perfurantes, acusativas lâminas... Continua rindo, bóiam-lhe nos olhos transtornados ondas de um revolto mar de loucura: Meta-me esta merda para dentro, meu furriel... Refere-se às tripas caídas por terra, dela besuntadas, esguichadas da escancarada buraqueira do baixo-ventre. Só pára de rir após a injecção de morfina, dose reforçada: Oxalá não escape, meu alferes caso contrário nunca será homem que preste”.

As críticas ao oficialato em Bissau não são poucas e a outro mais ou menos na periferia, e mesmo a norte de Bafatá. Cristóvão de Aguiar não é peco no arranjo das imagens e na descrição das misérias temporais, como se segue: “A encenação psicológica dos oficiais da repartição número não sei quantos, nem interessa, descambou no que se acabou de relatar (episódio do soldado Barrancos). Podem todos limpar as mãos à parede esburacada da consciência. Do mesmo modo, pode também o capitão de Buruntuma as mandar limpar ou cortar, como na sentença bíblica. Pertencia ele ao Batalhão Ás de Ouros, nome de guerra do Bat. Inf. 557. Valente Infante com o curso do Estado-Maior, resolveu um dia integrar-se numa operação realizada nos matos circundantes de Canquelifá. O nosso capitão Farias, como responsável pelo gabinete de operações do Batalhão, não tinha qualquer obrigação de acompanhar as tropas em acções no mato. Mas quis dar o exemplo. E deu-o como só um capitão altamente qualificado o pode dar”. No itinerário, rebenta uma mina anti-pessoal debaixo do jipão do oficial de operações do Ás de Ouros. Não houve estragos, apenas estoirou um pneu. Galhardo, o oficial escreveu em letras de imprensa e deixou no buraco: Turras, arranjai minas mais fortes; o Ás de Ouros pode com esta e muitas mais; cabrões de merda. A viagem prossegue, a operação prevista, por razões espúrias, será cancelada. Há viaturas que regressam a Buruntuma, uma delas vai a reboque da outra, avariada, lá seguem vinte homens na escolta, metade em cada uma, regressam com grande alívio, sempre é menos um combate a averbar no calendário da guerra. De súbito, um estrondo, lá na direcção em que seguiram as duas viaturas. O capitão do Estado-Maior enviou o narrador para saber o que se passou, caso tenha sido coisa séria que mande uns tiros para o ar. Avistam-se as duas viaturas imobilizadas. Alguém trás a má notícia: estão todos mortos na primeira viatura, na segunda não há ninguém e com isto atroam os céus e a terra com o sofrimento de quem assiste ao espectáculo daquela carroçaria abarrotando de carne ensanguentada. Não é possível qualquer identificação, tal o número de corpos em minúsculos destroços. Aqui, um pormenor: “O papelinho do nosso capitão do Ás de Ouros ainda se encontra, enfiado no pau, a meia haste, no fundinho da cratera causada pela mina anti-pessoal. A viatura transformada em açougue ficou imobilizada mesmo à sua ilharga”. O capitão do Estado-Maior quer os cadáveres alinhados, assim se cumpre. Os que tinham desaparecido foram encontrados em Piche: “Fizeram cerca de 20 quilómetros em pouco mais de hora de meia. Alguns iam feridos com estilhaços das granadas que os guerrilheiros lançaram para dentro da primeira viatura”. O capitão Farias do Ás de Ouros estava prostrado: com tal desastre, lá se ia ao galheiro a promoção a major.

Muito há a contar desse tempo de nomadização: tiros em Pirada, o alferes Leite estraçalhado por um crocodilo quando anda à pesca, um soldado que passou o que era possível passar em Madina do Boé e que caiu à água a bordo do Niassa, chegamos assim ao destacamento de Dunane, situado num mamelão entre Piche e Canquelifá, meio hectare de terra rodeada de arame farpado. O que era preocupação transforma-se no tédio do isolamento. Apareceram lá as senhoras do Movimento Nacional Feminino, o nosso alferes atreveu-se, numa brejeirice, a pedir a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, para sua surpresa foi-lhe enviada pouco tempo depois. Felizmente que os cães dão companhia e ajudam a reconstituir a normalidade: a Andorinha desbarrigou, deu à luz lindos cachorros, é o grande acontecimento em Dunane. E estamos chegados ao drama do Niza, que não recebeu a carta da sua Lena. A carta dos pais prenuncia a grande tragédia que vem aí: “Não queríamos mandar-te dizer nada disto bem basta a tua consumição nessa guerra. A rapariga que namoravas, a Lena da Maria Calva, roeu-te a corda a grande galdéria. Anda agora de namoro pegado com o filho mais velho do Rolo o que está emigrado para França”. O Niza vai desvairar, dispara carregadores de G-3, Dunane entra em estado sítio. A grande porra é que o desgraçado do Niza tem no braço tatuado o amor da Lena, ele anda aos gritos a mostrar a sua desgraça, grande puta que ficas para sempre com o teu nome gravado na minha pele, é uma seta que atravessa o coração tatuado, Amor de Lena. Não há injecção que acalme um homem que se considere corno. O Niza irá enforcar-se no hospital. Este braço tatuado, iremos ver mais adiante, transformar-se-á numa auto-estrada da memória dilacerada de Cristóvão de Aguiar. E um dia as lanchas virão rio Geba abaixo, até Bissau. Passaram seguramente por Mato de Cão, mas naquele tempo não fui eu que lhes dei segurança. Diz o autor que não dormiram na travessia do rio, tal era o medo de serem atacados. De Bissau subiram o portaló do Uíge, a comissão terminara. É o regresso à ilha, tudo fantasiado, ele vai para Coimbra, acaba os estudos, encontra trabalho como leitor de inglês, anos mais tarde, escalavrando o caminho, descobrirá o formigueiro da escrita, a peçonha e o êxtase fugaz que tiranizam a existência do escritor. Bom, ele volta à ilha só para reconstituir as coisas sofridas da adolescência entre o Pico da Pedra e Ponta Delgada. A ilha é uma danação, é a raiz profunda da açorianidade. Este Cristóvão de Aguiar fez bem em voltar à guerra, tal é o fulgor original desta narrativa de vanguarda que se embebe no casticismo dos mestres telúricos, como Nemésio, Tomaz de Figueiredo ou Araújo Correia. Vamos seguidamente ver como ele volta à Guiné em “Relação de Bordo”, em 1999.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6109: Notas de leitura (88): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar (I) (Beja Santos)

2 comentários:

Anónimo disse...

Estimados Tertulianos

Na resenha que o Beja Santos faz do livro – Ciclone em Setembro de Cristovão de Aguiar – refere o drama do - Niza.
Em Canjadude na CCAÇ. 5, houve um caso, real do qual fui testemunha, que eu considero bem mais grave:
Um militar, metropolitano e já casado, faltavam-lhe cerca de três meses para terminar a comissão na Guiné, quando recebeu uma carta dos pais, a comunicar-lhe que a esposa tinha ido a entregar os dois filhos do casal, ainda bebés, aos pais dele, ela abandonou o lar, ausentando-se para parte incerta, na companhia de outro homem.
Também ele tinha uma tatuagem no peito, onde estava rabiscado um coração a ser penetrado por uma seta e dentro deste, as palavras,” amor de esposa”, seguido do nome desta. No abrigo onde dormia, improvisado numa prateleira junto da cabeceira da cama, tinha sempre a fotografia da esposa e dos filhos. Passou um mau momento, muito perturbado e ameaçava que ia cometer triplo homicídio. Acabou a comissão, nada mais soube.
Um abraço

José Corceiro

Anónimo disse...

Obrigado, Beja Santos.
Cristóvão merece o reconhecimento que ora lhe presta.
Atenta e cordialmente,
ass.: leitor atento.