quinta-feira, 1 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6087: Notas de leitura (86): A Lebre, de Álvaro Guerra - a intervenção da tolerâcia numa escrita que escapou à censura (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Março de 2010:

Queridos amigos,
É sempre bom voltar a reler quem escreve bem.
Aguardo esperançadamente que um dos nossos tertulianos me possa emprestar a obra que ainda falta fazer a recensão, “O Capitão Nemo e eu”.
E agora volto aos poetas nacionalistas que acreditaram no Portugal Império.

Um abraço do
Mário


A invenção da tolerância numa escrita que escapou à censura

Beja Santos

“A Lebre” é um dos primeiros romances de Álvaro Guerra (Prelo Editora, 1970), pertence ao conjunto de obras de marcada influência neo-realista e do nouveau roman, onde pontificaram Alain Robbe-Grillet e Nathalie Sarautte. Importa recordar que Guerra se sentia devedor de Alves Redol (também ele de Vila Franca de Xira) e que a sua estadia em Paris, depois de ter combatido na Guiné, o abriu ao estilo solto, fragmentário de diferentes narrativas que oferecem ao escritor e ao leitor diferentes possibilidades de entendimento da realidade. “A Lebre” é mais uma novela e goza da cumplicidade de uma ampla abertura ao neo-realismo não escolástico e às composições desse novo romance que marcou a literatura europeia entre os anos 50 e os anos 70.

Basta atender ao arranque da obra: “Era belo, como quem guardava muito de uma infância não pura mas indefesa, beleza ainda próxima do sono da criança, de costas, cabelos negros espalhados na almofada branca, braços abertos em anglo recto, mãos fechadas, ainda indecifrável beleza de começo e separação”. E segue-se um longo período, tal como encontramos nas obras anteriores, uma cavalgada de sentimentos, descrições, homens, animais e coisas em trepidação. As personagens são senhores da terra, com respeitáveis pergaminhos, gente disposta a tudo para que a tradição não se perca. Lemos e recordamos “Barrancos de Cegos”, de Alves Redol, e “O Delfim”, de José Cardoso Pires, obras incontornáveis da década de 60. A estes senhores da terra, tradicionalistas, respeitadores da ordem estabelecida, segue-se a geração mais jovem, indiferente a tais valores, pronta para as transgressões. Como pano de fundo, numa linguagem irrecusavelmente antropomórfica, uma caçada à lebre, perto de Monte Vau: a tragédia dos humanos e dos animais vai cruzar-se. Naquela lezíria a caminho do Alentejo chocam-se destinos como o de Inês, filha de Mário Bernardes que tem por amante Miguel Diogo Meireles, o dono da coutada e António seu filho. Inês vai para Paris e aí terá uma relação amorosa com Sekou, um guineense. Custa a crer que a censura não se tenha apercebido da carga explosiva e indecorosa destes conteúdos, mesmo tratados com cuidados cabalísticos. Inês pergunta a Sekou quando é que ele vai libertar os seus irmãos, ele está apto a lutar por uma terra nova, “encontrando-se em trânsito acidental pelas capitais antigas, cumprindo o instrutivo mas dogmático circuito Pequim – Praga – Paris até à tal nova terra onde chegará armado e com duas ou três recordações de factos e gente que, na verdade, não lhe pertencem pois que de seu terá ainda o que há-de estar na mira da sua espingarda ou no lugar onde a mina será dissimulada”. O sacrilégio maior é que António anunciou ao senhor da terra que não irá à guerra, aquela que a ordem estabelecida cauciona lá longe. A geração da ordem está a entrar em pânico: uma branca que se entrega a um preto, um filho de linhagem que recusa os deveres da guerra.

Os parágrafos com vida interior encadeiam-se, a trama desvela-se como se tivesse um fio condutor de tragédia grega, os humanos estão tensos, os galos também, começou a batida. O filho vai desaparecer a caminho de Paris, sente-se abandonado por Deus, mesmo sabendo que há filhos de gente amiga e conhecida que se espalhou pela Suécia, Genebra e Argel.

Na caçada, um dos mais belos galgos não percebe as artimanhas da lebre, esbarronda-se contra o arame farpado, fica cega e condenada a morrer. Miguel entra no seu Lancia, mete o revólver no porta-luvas, atira-se à estrada, o crime do filho e da cabra da amante que dorme com um preto não ficarão impunes. Próprio do nouveau roman, Álvaro Guerra antecipa e recua, empola os discursos interiores, sumaria os estados de tensão, arredonda-os ao maior denominador simples. É um permanente vaivém entre Monte Vau e Paris, no meio uma caçada à lebre e um carro que se irá estampar entre Salamanca e Valladolid, Miguel não chegara ao seu destino e antes a lebre dera provas de astúcia condenando o galgo: “Agora sim, o instinto da lebre será a sua salvação – ei-la que se furta, enfim, sob o arame farpado, no último momento, como se não lhe bastasse escapar e precisasse também de vingar-se. Na perseguição cega que o assombra, Scorpian II - «Os arames! Os arames!», «Aquele cão vai matar-se!» - choca de frente com as pontas aguçadas que lhe rasgam a pele e carne, lhe furam os olhos, vergastam o peito, o envolvem em dor e sangue, de modo que o ganido lhe sai da goela como um urro e logo tomba num inútil debater-se contra o irremediável, de veias subitamente abertas esguichando o espesso líquido quente, uma das patas dianteiras suspensa, vertical, presa naquilo que lhe estilhaçou tendões e nervos treinados para correr e ganhar, um uivo prolongado e agudo, forçando a terra numa urgência de para dentro dela entrar...»”.

Esta a escrita de Álvaro de Guerra, há um pouco da Guiné, de que a censura não se apercebeu. Uma escrita que prenuncia outras obras muito belas que vieram depois.

Pude ler “A Lebre” graças à amabilidade do nosso camarada Manuel Joaquim. Continuo à espera que uma outra alma caridosa me empreste o último livro de Álvaro de Guerra que fala da Guiné: “O Capitão Nemo e eu”. Quem o possui, faça favor de dar sinal de vida.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 31 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6083: Notas de leitura (85): Vestiram-se os Poetas de Soldados, antologia de Rodrigo Emílio (Beja Santos)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caros amigos

Antes de ir para a Guiné, o Álvaro Guerra era o guarda-redes, por sinal bastante bom, da equipa de hóquei em patins da UDV, União Desportiva Vilafranquense, também por sinal uma equipa igualmente boa que 'batia o pé' às equipas tracionalmente mais fortes e eu era um dos seus admiradores, dele e do Carlos Doninha.

Quando ouvi dizer que tinha sido ferido na Guiné e que já não poderia jogar hóquei fiquei com um nó na garganta e acho até que me cairam algumas lágrimas.

Um abraço
Hélder S.