terça-feira, 30 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6070: Notas de leitura (84): O Pé na Paisagem, de Filipe Leandro Martins (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Terminada a leitura de “O Pé na Paisagem” vou até às direitas radicais, há registos literários indispensáveis, houve muita gente que cantou o Portugal imperial e que acreditava nos seus cânticos.

Um abraço do
Mário




As armas nossas amigas, as minas e armadilhas, a hora da deserção

Beja Santos

É a viagem neo-realista, expressionista e militante da recruta para a especialidade e desta para a escolha do exílio. “O Pé na Paisagem” (Editorial Caminho, 1981) é um relato duro, por vezes pungente, de extracção doutrinária, sem ambiguidades: estão ali valores, comportamentos, mentalidades dentro de um quartel vistos por um anti-militarista e anti-colonialista. Dureza que não ilude o vigor dos sentimentos, a sinceridade das dúvidas, a complexidade das situações que excedem o narrador e que ele admite.

Assim começa a especialidade: “Tínhamos as divisas novas dentro dos bolsos e esperávamos diante do edifício do comando um sargento que nos viesse dizer para enfiá-las, promovidos e dispostos a mandar nos soldados... Os soldados tinham grandes intervalos, encostavam-se às paredes banhadas de sol pálido, nós atravessávamos os terreiros em grupos e, se um ia sozinho ouvia rosnar as desagradáveis apreciações dos homens mais velhos do que nós, que conheciam a tropa pelas costuras, que se tinham safado à guerra e aguardavam só o dia de abalarem para as suas terras onde iam contar aos garotos como tinha sido divertido, o que tinham aprendido em vilas e cidades distantes, como as sopeiras lhes não escapavam, como gozavam com os capitães, com os sargentos, connosco”. Deste modo começa a aprendizagem de autoridade e a saber reproduzi-la: as ordens; as ameaças vociferadas; a separação entre oficiais, sargentos e praças; os brados marciais: as vozes na formatura, os palavrões ditos em voz baixa para desorientar o instrutor: as novas amizades e as confidências; as rondas, com alguns conflitos de permeio com os sentinelas. Aos fins-de-semana, as tentativas de serenidade, na previsão da esperada mobilização, idas e voltas num autocarro que parecia uma pequena caserna a subir ou a descer o país. Com a Primavera, apareceu uma maior movimentação do quartel, foram distribuídos pelas companhias, apresentaram-se aspirantes, uma meia dúzia de tenentes, um major comunicou que vinham aí os soldados: «Vimo-los, pequenos e alegres, vivaços quase todos e habituados à tropa por três meses passados num velho quartel do Norte e eles eram quase todos das Beiras e de Trás - os -Montes, arrancados à montanha onde a vida os ensinara desde os primeiros anos à frugalidade e à dureza da servidão no trabalho... Coube-nos um tenente frontudo, miliciano que voltara da guerra e ficara sem outra coisa que fazer que mais guerra. Um tipo calado e magro que fizera a Guiné e esperava talvez Angola”. O major fizera a sua proposta sobre os ensinamentos básicos para a educação física dos mancebos: “O amor da pátria, o empenho em defendê-la, está profundamente enraizado no coração do povo português. Estes jovens vêm dos montes, não têm educação, alguns nem uma instrução elementar possuem. O que é preciso é trocar por miúdos essa noção”. Essa noção é a defesa da pátria, estamos em armas para a defender. Ninguém tugiu nem mugiu, aquela pátria era suficientemente difusa para ser questionada. Voltou-se à carreira de tiro, instalou-se uma certa normalidade. Eis que chega tropa que regressa da guerra, vem passar à disponibilidade, só falta entregar material. É gente envelhecida, vêm encorpados e com rugas, pele encortiçada, fazem o espólio e arrancam para casa. Há quem tenha curiosidade em saber de onde vêm e o que lhes aconteceu e depois faço o relato dos mortos e feridos, para que se saiba. Surge uma lista para quem vai tirar o curso de minas e armadilhas. A unidade militar que se está a formar tem a Guiné como destino.

A especialização é descrita com vivacidade e química: “Deram-nos a mesma caserna, os mesmos instrutores, a mesma loucura de aprender perigos novos concentrados em trotil, gelamonite, matérias encerradas em metal aos quais bastava um ligeiro frémito para detonar soprando tudo à volta”. Um aspirante dá as aulas, está prenhe de ensinamentos, apela constantemente à prudência, fala em detonadores, alicates, rebentamentos, armadilhar e desarmadilhar, a segurança é a madre de todos os comportamentos, na mesa da aula estão minas anti-carro, minas anti-pessoal, espoletas, cordão lento e cordão rápido, cordão detonante, tudo o que pode fazer estoiros, pavor e caos. Os instruendos vivem sob a emulação, numa roda-viva um curso inteiro prepara-se para grandes explosões, fazendo os primeiros rebentamentos, estendendo fio eléctrico, colocando os detonadores com a língua apertada entre os dentes. Mas havia outros exercícios dignos de um sapador: enterrar minas simuladas no terreno, por exemplo. Toda esta narrativa aparece entremeada de diferentes discursos solitários de gente que procura o desenrascanço, gente que procura que os deixem em paz e que voltem ao ponto de origem. Oficiais e sargentos têm cognomes: o comandante é conhecido por Benzovak, o comandante do curso é o capitão Aguardente. É ele quem apresenta a viúva negra, uma pequena mina eriçada de metal, preparadas para explodir à altura de um homem e devastar uma secção inteira. Não sei a que escaninho da memória Filipe Leandro Martins foi vasculhar e registar a precisão das alocuções, a vivacidade das cenas de instrução, as conversas da cantina, os roubos de fruta pelas quintas e vales durante as aulas de táctica, onde se simulavam os reconhecimentos, à procura de acampamentos inimigos.

Nos intervalos, nos fins-de-semana, um grupo prepara a deserção, alguém não nomeado já forjou passaportes, rotas para passar a salto e depois chegar a Madrid, daqui tomar o comboio para Paris.

“O Pé na Paisagem” é um olhar inteiro dos seis meses que levam a formar um oficial miliciano ou um furriel. Está primorosamente escrito, possui todos os aliciantes para prosseguir ao lado ou contra o narrador. Nada encontrei na literatura afim de tão minucioso, documentado, o quotidiano das casernas, dos refeitórios, da descoberta de uma autoridade indecifrável, quase ao nível da vontade de Deus: o medo da porrada, o alívio das saídas ao fim da tarde, as tensões inesperadas de crianças crescidas que estão inexplicavelmente a virar uma página das suas vidas. E a recusa consistente em não partir para a guerra. O que, em literatura, só é interessante quando o escritor se desassombra e nos conta metodicamente o que vai fazer e porquê, tudo em escrita de altíssima qualidade. Quando um dia os investigadores pegarem de cabo a rabo nestes itinerários de um país em guerra “O Pé na Paisagem”, estou absolutamente convicto, será uma referência incontornável.

Filipe Leandro Martins é escritor e jornalista. Nasceu em Lisboa em 1945, fez o curso de sargentos nas Caldas da Rainha e foi destinado à especialidade de atirador. Mobilizado para a Guiné, escolheram-no para o curso especial de minas e armadilhas. De Santa Margarida, aproveitando as férias que antecedem o embarque, desertou em Outubro de 1968, exilou-se na Bélgica. É jornalista profissional desde 1976 (chefe de redacção do jornal Avante!).
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(*) Vd. poste de 26 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6052: Notas de leitura (82): Império, Nação, Revolução de Riccardo Marchi (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 29 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6064: Notas de leitura (83): Livro do Cor. Costa Campos – Guiné, Bigene 1974 (Mário Fitas)

4 comentários:

Anónimo disse...

Estas leituras de Beja Santos, são muito importantes para a compreensão da guerra do ultramar.

As deserções, romanceadas ou não, os refratários por conta própria ou por conta da família, são tão importantes para compreender o desenvolvimento da guerra que nos calhou, como a heroicidade de um paraquedista com várias comissões.

Mesmo os livros que relatam a má preparação militar e os desenfianços com doenças arranjadas pela familia influente, tambem ajudam a compreender esta guerra.

Mas talvez quando começarem a aprecer livros de autoria de africanos a gente compreenda melhor a Guerra, e saber como durou tantos anos.

Antº Rosinha

Anónimo disse...

Tenho este livro e nunca consegui compreender porque um livro escrito sobre a guerra colonial tivesse na capa uma fotografia de soldados cubanos do contigente enviado por Fidel Castro em 1975... !?
Esta mesma fotografia foi distribuida por uma gência noticiosa internacional e foi editada entre 1976-79 em muitas publicações internacionais!
O que tem uma coisa a ver com a outra...
Alguém sabe explicar. Talvez Beja Santos tenha uma explicação para o assunto.
Agradecido.

Antonio Graça de Abreu disse...

Os cubanos é o internacionalismo proletário.
Ou não é o autor, Luís Leandro Martins "jornalista profissional desde 1976 (chefe de redacção do jornal Avante)"?.
Vivemos numa ditadura obscurantista durante quarenta e tal anos, hoje ainda temos nostálgicos das outras, sinistras ditaduras comunistas, do leste, de Cuba, da China.
Talvez eu saiba do que falo.
Vivi durante sete anos num pais do comunismo real, e as lágrimas corriam-me por dentro.
Não é a política que nos separa, nem a diferença de opiniões,é o respeito pela liberdade e pela dignidade humana.

Abraço,
António Graça de Abreu

Juvenal Amado disse...

Há dias vi um daqueles trabalhos do canal História, onde me deram uma visão bem diferente do que até ai tinha pensado.
O referido episódio tinha o nome de:

NSSM 200 e 201: Armas, Avareza e Genocídio.

NSSM era um programa para o 3º Mundo da responsabilidade do departamento de estado Americano. Kissinger era um dos responsaveis.

Quem puder ver o referido episódio
na Cabo ou mesmo TV2 ouvirá falar adjuntos da Casa Branca do tempo do Nixon, Jonhson,Ford, e Reagan. Verá que nem nós nem os africanos foram ou são responsáveis pelos males de África e Oriente para não falar na America Latina.

Ali é denunciado como se fabricaram os golpes de estado e genocidios, desde o inicio dos anos 60.
Por exemplo paises que eram prósperos até chegar a ajuda Americana.
A diferença que a Libéria tem hoje, em relação a 1971 quando o Samuel Doe fez o golpe de estado é gritante.
Retrocedeu no tempo.
É mais fácil e entra melhor no ouvido, apontar para responsáveis menores, mas os paises e suas empresas que lucram com isto, basta procurar.

Vejam e ouçam as gravações.

Um abraço

Juvenal Amado