terça-feira, 23 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6039: (Ex)citações (61): O desvario de um capitão de cavalaria, que matou a tiro um militar e um civil, no Senegal, e que apanhou 12 meses de presídio militar (Carlos Cordeiro)

1. Comentário, de 21 do corrente,  do nosso camarada Carlos Cordeiro (*), ao poste P6022 (**)

Caro Luís,

Sobre o infeliz acontecimento, há um testemunho no "Correio da Manhã" [, reproduzido no blogue Leste de Angola]:

http://lestedeangola.weblog.com.pt/arquivo/264295.html (***)

Além disso, veja-se a sentença do Supremo Tribunal Administrativo relativamente a um recurso apresentado pelo Cap Botelho contra o facto de não ter sido promovido a Major (o despacho é de 12/1/93 - na caixa find, ao colocar-se Botelho, surge logo a sentença).

Este acto (e outros) por ele cometido teve gravíssimas repercussões na sua carreira militar (****). Depois de submetido a Junta Médica, passou à reserva, em 1974. É muito importante a leitura da sentença para se compreender o seu comportamento militar.

www.dre.pt/pdfgratisac/1993/32110.pdf

Abraço,

Carlos Cordeiro

[ Revisão / fixação de texto / selecção de excertos / título: L.G.]
______________

Notas de L.G.:

(*) Foi Fur Mil Inf no Centro de Instrução de Comandos, em Angola, nos anos de 1969/71; irmão do infortunado Cap  Pára José Costa Cordeiro, morto em acidente em 1973 (CCP 123/BCP 12); é Professor de História Contemporânea na Universidade dos Açores, Ponta Delgada, Ilha de S. Miguel,

(**) Vd. poste de 19 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6022: Fajonquito do meu tempo (José Cortes, CCAÇ 3549, 1972/74) (4): Ainda o caso do Cap Patrício que foi, por castigo, para a CCAÇ 15, Mansoa, e do comandante do Esq Rec Fox de Bafatá que invadiu o Senegal com as chaimites

Vd. também poste de 20 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6028: A propósito do Dia do Pai... e da história do Esq Rec Fox 3431 (Bafatá, 1971/73)

(***) Trata-se de um depoimento de um militar do Esq Rec Fox 3431 (Bafatá, Setembro de 1971/ Junho de 1973), Sérgio Marques dos Santos, hoje motorista de táxis no Porto, e um dos organizadores habituais do convívio anual da unidade... Não consegui apurar a data, ao certo, em que este depoimento foi publicado, na revista "Domingo", do jornal "Correio da Manhã", na série "A Minha Guerra"... Muito provavelmente foi publicado no ano de 2008. Também não sei quem foi o jornalista que recolheu e tratou o depoimento do Sérigo Marques dos Santos.  Tomo a liberdade de reproduzir alguns excertos, com a devida vénia:

 (...) Foi uma tarde louca, aquela de Outubro de 1972, em Pirada, no Leste da Guiné, na fronteira com o Senegal. Eu integrava um pelotão de reconhecimento composto por duas viaturas blindadas, uma ‘White’ e uma ‘Chaimite’, que fazia escolta ao comandante do Batalhão de Caçadores (BCAÇ) 3884, a Uacaba, Mafanco, Sonaco, Paúnca e Pirada. A certa altura, no intervalo de uma reunião de oficiais, o nosso comandante, o capitão de Cavalaria Manuel Eduardo Alves Botelho, diz: 'Venham comigo, vamos dar uma volta!' Fomos, éramos uma dezena de homens.


"Passámos a fronteira e penetrámos quatro ou cinco quilómetros no Senegal. Nenhum de nós adivinhava a intenção do capitão, que continuava entusiasmado a conduzir-nos por território estrangeiro adentro. A certa altura, avistámos um acampamento militar de senegaleses. A ‘White’ foi obrigada a interromper a marcha, por causa das valas feitas pelos militares estrangeiros, mas a ‘Chaimite’, que tudo passa, entrou no acampamento.


"Os senegaleses ficaram surpreendidos, mas não esboçaram qualquer atitude hostil. Pelo contrário, entraram num convívio estreito com os nossos camaradas de Pirada, onde frequentemente iam buscar cerveja. Estavam a saudar-nos com acenos, aos quais nós correspondíamos, quando, subitamente, o capitão, que empunhava uma pistola, desatou aos tiros em direcção aos pretos senegaleses.


"As tropas senegalesas, apanhadas completamente de surpresa, correram em todas as direcções, tentando abrigar-se do fogo do nosso comandante. Um tenente do exército senegalês, que se aproximara um pouco mais, caiu morto e um soldado ficou ferido. Antes que pudessem recuperar e ripostar, o capitão Alves Botelho ordenou a nossa retirada.


"No caminho de regresso à Guiné, quando passávamos por dois camponeses senegaleses, que seguiam de bicicleta e que também nos saudaram, o nosso capitão, que estava definitivamente de cabeça perdida, disparou a sua pistola contra eles. Um morreu e o outro ficou ferido. 'Eram terroristas?', alguém perguntou ao capitão Alves Botelho. O oficial apenas ordenou que continuássemos até Pirada.


"Estes actos foram uma loucura que ninguém compreendeu. Em Pirada, os oficiais e comandantes ficaram ‘loucos’ quando souberam, pois os senegaleses eram nossos amigos e confiavam em nós. O comandante da unidade ordenou o regresso imediato do pelotão de reconhecimento envolvido no tiroteio a Bafatá. O capitão foi enviado sob detenção para Bissau, por helicóptero, na manhã seguinte. Três dias depois, o capitão Alves Botelho reuniu o Esquadrão e fez um discurso de despedida. Foi enviado para a Metrópole, para os serviços de Psiquiatria de um hospital militar e, mais tarde, abatido ao efectivo. Nunca mais soube dele, sei apenas que faleceu há quatro anos.


"Este episódio foi dos piores e mais gratuitos que vivi durante a guerra, mas houve outros igualmente trágicos. A nossa tarefa consistia em fazer a segurança às colunas de abastecimento aos nossos aquartelamentos. Eu conduzia a ‘Chaimite’ ou, eventualmente, a ‘White’. Em alternativa, era atirador numa das viaturas. E foram inúmeras as ocasiões em que estivemos debaixo de fogo. Era impressionante como os ‘turras’ tinham conhecimento das nossas saídas. Muitas vezes, só sabíamos à meia-noite do dia anterior, mas eles sabiam antes e emboscavam-nos. As nossas colunas reagiam, o pessoal dos ‘Unimog’ e das ‘Berliet’ atirava-se para as bermas e eu andava às voltas na ‘Chaimite’ a fazer fogo indiscriminadamente" (...)

Fonte: Leste de Angola > 5 de Outubro de 2008 > "Abatemos um um militar e um civil sem razão"

 (****) Entre outras punições, registe-se a condenação do Cap Cav Alves Botelho em 12 meses de presídio militar, pelo Tribunal Militar Territorial da Guiné, em Junho de 1973, conforme se pode ler, a pp, 45, da  setença do STA, documento citado pelo Carlos Cordeiro

2 comentários:

Luís Graça disse...

1. Desvario: acto praticado por doente que delira... Em sentido figurado, acto de loucura...

Será que estamos a "branquear" o caso (gravíssimo...) deste oficial do exército português, que comanda uma pequena força militar que objectivamente invade um país soberano e mata, gratuitamente, cobardemente, impunemente, dois cidadãos, duas pessoas inocentes que se lhe atravessaram no seu desvairado caminho...

Imagino que este acto (que eu me recuso em qualificar se é do foro psiquiátrico, se é do foro criminal, não tendo suficientes elementos para julgar, nem querendo assumir o ónus do juiz...), tenha tido enormes repercussões, psicológicas, morais e disciplinares, na dezena de militares que acompanharam o capitão na sua trágica incursão pelo Senegal... Bem como no resto do Esquadrão...

2. Oito meses depois, o Cap Botelho conhece a "pesada mão" (?) da justiça militar: 12 meses de presídio militar, que lhe deram cabo da carreira militar... O que lhe aconteceria hoje, em situação semelhante, no Portugal do pós-25 de Abril ?

Hipocritamente ou não, a verdade é que no tempo do Spínola estes casos
não passavam tão facilmente impunes como, eventualmente, terá acontecido nos primeiros anos de guerra... Além disso, o comportamento do Capitão não terá ajudado em nada as tentativas de aproximação política e diplomática com o Senegal... Imagino que Spínola terá ido aos arames, ainda por cima tratando-se de um homem da sua arma, a cavalaria...

2. No mail que me mandou o Carlos Cordeiro, com o seu um faro especial de investigador de arquivo, lê-se:

"Caro Luís,

Acabo de inserir um comentário sobre o infeliz capitão Botelho - o da invasão ao Senegal. Indico dois links que dão bem conta do comportamento disciplinar e criminal dele. Transcrevo o seu 'currículo' disciplinar constante da sentença do STA.

"Note-se que, em 1965, já tinha tido problemas disciplinares graves em Timor.

Um abraço, Carlos Cordeiro"

_______________

Transcrições:

(...) «Admite-se que só os eventos posteriores ao 25 de Abril e a sua
passagem à situação de reserva pela JHI tenham evitado que o capitão
Botelho tivesse sido demitido.

‘Este oficial tem relevado não possuir as qualidades pessoais, intelectuais e profissionais em grau suficiente para o desempenho das funções do posto imediato, designadamente no que se refere ao
sentido de dever, senso de ponderação, sentido de responsabilidade e capacidade
de trabalho

(...) Sucede ainda que o oficial já sofreu várias punições,
dadas pelo comandante militar CTITIMOR (5 dias de prisão disciplinar) em Dezembro de 1965; condenado em 12 meses de presídio
militar pelo TMT da Guiné em Junho de 1973; punido em 15 dias
de prisão disciplinar agravada em Fevereiro de 1974 pelo comandante
militar da CTIG" (...).

Segundo o Sérgio Marques dos Santos, o Cap Botelho já terá morrido há 6 anos, o que torna menos acabrunhante a abordagem de casos como este...

Quantos casos semelhantes terão ocorrido no TO da Guiné ? ... Não vamos generalizar, nem especular, mas também não vamos ignorar, esquecer, escamotear... Para já, é importante FALAR deles... De preferência, recorrendo a relatos "em primeira mão"... Casos como estes também fazem parte da nossa história de guerra...

LG

paulo santiago disse...

Lembro-me que quando soube deste
acto criminoso do Cap.Botelho não
o ter estranhado.Nas minhas surtidas a Bafatá,quando estava em
Bambadinca,encontrei-me umas duas
ou três vezes com o dito capitão.
Era um fanfarrão e provocador,
racista qb,dizendo-se o supra-sumo
da Cavalaria e dizendo mal dos
chefes.
Suprema ironia,dentre os vários
colares,exibidos, ostentava um com
o símbolo dos pacifistas,a pata da
pomba...