terça-feira, 16 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6001: Notas de leitura (78): Morrer Devagar, de José Martins Garcia, De Catió para Farim (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Renovo o meu pedido de ajuda.
Primeiro, quem tiver “O capitão Nemo e eu”, de Álvaro Guerra, que faça o favor de mo emprestar (um camarada nosso ouviu-me, vai-me emprestar “A lebre”).
Quem tiver livros referentes à Guiné do Cristóvão de Aguiar, peço igualmente o favor de mos emprestar. Devolvo sem estragos e fico atento a outras propostas de leitura, de autores que escreveram ao longo das décadas de 80 e 90.

Um abraço do
Mário


De Catió para Farim

Beja Santos

O livro de contos “Morrer Devagar”, de José Martins Garcia (Editora Arcádia, 1979), é uma colectânea de histórias onde a memória da sua infância na ilha do Pico se junta a outras recordações, noutras latitudes, e que dão ao leitor a nítida percepção de que José Martins Garcia além de romancista, dramaturgo, ensaísta, poeta e publicista, foi um admirável contista, na vertente satírica, sobretudo. Insisto que o seu conto “As suspeitas dum bravo capitão” é uma peça exemplar que merecerá destaque em qualquer antologia que se vier a organizar sobre a literatura da guerra colonial na Guiné. Mas destaco igualmente duas outras peças de enorme qualidade: “Justiça” e “O lúcido capitão Ventoinha”. Para os não iniciados na obra de José Martins Garcia, é importante informar que o seu estilo é profundamente cáustico, torce e retorce, desenvolve e faz explodir pandemónios, desenha o caos, espalha o vitríolo, força-nos à gargalhada na construção hilariante de personagens e atmosferas.

No conto “Justiça”, somos enredados no caos das tricas militares, reais ou fictícias. Temos o antes e o depois, no teatro de operações. No tempo do tenente-coronel Barradas, anterior comandante batalhão de Catió, toda a gente tinha tento língua; com o novo comandante, tenente-coronel Galvão, a livre crítica instalou-se na unidade, os costumes relaxaram-se: “Um dia um, logo depois outro, os oficiais começaram a afoitar-se em matéria ideológica. Oficiais de carreira só havia quatro, além do comandante: o major Trigo, segundo comandante; o capitão Palmeirim, comandante da companhia de intervenção; o capitão Ferraz, comandante da CCS; e o alferes Santos, lateiro, melhor conhecedor das papeladas que um qualquer primeiro-sargento (o bravo capitão Clemente comandava, exilado, a companhia do Cachil). O restante pessoal era miliciano e havia – rosnavam os últimos defensores do regime – de destruir por dentro as nossas gloriosas Forças Armadas”.

Depois temos a descrição dos milicianos, os potenciais subversivos da ordem estabelecida: o alferes miliciano Capote, precocemente Calvo, angolano branco, clamava pela independência de Angola; a seguir ao Capote vinham ex-universitários como o Castelo Branco e o Gomes, doutrinados pelas greves académicas, com Marx de empréstimo e ecos de Mao Tsétung e da cisão sino-soviética. O alferes Queirós dava a entender que havia de fomentar a luta armada, se voltasse a Coimbra. No outro extremo, tínhamos alferes Silveira e Serrão. Insinuava-se que haviam sido informadores da PIDE. O Silveira pertencia à 2ª Repartição, o Serrão era o oficial de transmissões. A contra-guerrilha ideológica dividia o oficialato em Catió.

Aproximava-se o Natal, “a brisa agitava as laranjeiras pejadas de frutos verdes, os limoeiros crivados de limões liliputianos e a temperatura baixara para uma média de vinte graus centígrados”. Era uma época propícia para a boateira, imaginavam-se ataques iminentes. João Baker Jaló, célebre alferes de segunda linha apanhara um balanta suspeito. O alferes Silveira engaiolou-o, Serrão, descobrindo que o prisioneiro falava crioulo, propôs a Serrão que o apertasse. Eis o culminar da história:

“Por trás das lentes investigadoras, os olhinhos do Serrão rebolavam-se de vingança. Também andava agastado com os dizeres do bando progressista e preferia juntar a fama ao proveito. Serrão era um apaixonado por pornografia e tinha copiado, à mão, uma incrível narrativa intitulada “A Marca dos Avelares”, com a qual matava o tédio do ostracismo que lhe fora imposto.

Mandara colocar ao centro da prisão uma grande selha cheia de água. À porta, por razões de segurança, postou-se um soldado de G-3 apontada ao prisioneiro.

Dentro, à esquerda e à direita do preto, mais de três soldados de G-3 apontadas. O Silveira ficou cara a cara com a vítima. Atrás, como convidado de honra, o Serrão.

O crioulo do alferes silveira não era totalmente correcto. O crioulo do balanta também possuía graves lacunas. Desentenderam-se. O balanta respondia «...mê ká sibi». Não sabia de nada. Estava teimoso.

O alferes Serrão agarrou-lhe o cachaço e o prisioneiro quis resistir. Fechando bem os punhos, o Silveira pô-lo a sangrar do nariz e das beiçolas. O Serrão pôde então mergulhar a cabeça na selha. Subiram algumas bolhas, depois a água aquietou-se. Puseram-no de pé. O interrogatório recomeçou, com análogo desentendimento das partes em conflito.

– Vocês são uns incompetentes – ganiu o Serrão. – Nas mãos da PIDE, o gajo já tinha escarrado tudo...

O alferes Silveira encheu-se de brio e disparou ao nariz do preto um soco terrível, o maior, o em-cheio... mas um segundo depois de o prisioneiro cair, sem sentidos. O alferes Serrão foi atingido no sobrolho, que cedeu.

Ao jantar reinava um silêncio esquisito na mesa dos oficiais. O penso que ornamentava a arcada do Serrão ganhara uma eloquência capaz de emudecer o mundo”.

“O lúcido capitão Ventoinha” passa-se em Farim, em 1967. É aqui que aquele que viria a celebrizar-se sob a alcunha do capitão Ventoinha teve um sonho profético: “Sonhou-se numa espécie de trincheira mal protegida, morrendo às mãos dos turras e acabando por se ver de fora, morto e mais lúcido do que fora em vida (isto ele contaria ao psiquiatra, no Hospital Militar de Bissau”.

A escrita de José Martins Garcia, timbrada pela paranóia e pelos crescendos do ridículo, desnudando os bonifrates, aqui tem um toque onírico, à moda surrealista. Se é verdade que as tropas portuguesas violavam o território do Senegal, no seu sonho os turras crivavam-no de balas, coisas estranha agora a guerra dividia os próprios exércitos, os oficiais, sargentos e praças andavam a emboscar-se uns aos outros, era este o fundamento da mensagem libertária, pensou o capitão quando acordou do sono. O importante é que ele acordou aflito, desorientado com a sua própria imaginação, quando voltou a energia eléctrica e as ventoinhas se puseram a girar, talvez temendo a operação marcada para essa noite, o capitão Ventoinha meteu um dedo na dita e fracturou a falangeta... o leitor conclua a moral da história.

Tudo quanto ele escreve sobre a Guiné é deletério, puro veneno, destruição contumaz, a fábula histriónica que força a gargalhada desopilante.

Que se saiba, nada mais escreveu sobre a Guiné.

O livro de contos “Morrer Devagar” passa a pertencer ao blogue.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5980: Notas de leitura (77): Morrer Devagar, de José Martins Garcia, um contista fabuloso (Beja Santos)

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