domingo, 28 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5911: (Ex)citações (59): Suicídio de prisioneiros (António Graça de Abreu / Hugo Guerra)

1. Comentário de António Graça de Abreu, escritor, sinólogo, poeta, nascido no Porto em 1947, membro da nossa Tabanca Grande (ex-Af Mil, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74) (*):

No meu Diário da Guiné, pag. 20, a 3 de Julho de 1972, com apenas uma semana de Guiné, em Teixeira Pinto, conto uma história semelhante (*). Aí vai:


(...) "Estes dois prisioneiros ficaram à custódia do CAOP, não eram elementos perigosos. Com a ajuda de um intérprete, foram interrogados pelo nosso 1º. sargento Pinto, na pequena sala aqui ao lado. Recebi ordens para lhes ir comprar roupa e sapatos na Casa Gouveia, na avenida principal. Lavaram-se, vestiram-se, ficaram com melhor parecer. Foram estes os dois primeiros turras que vi. Olhei-os bem nos olhos, os olhos dos negros também falam: orgulho, ódio, humildade, revolta.


A mulher capturada tem seis filhos, o mais pequeno com apenas três meses. Foi libertada com a promessa de se apresentar com os filhos no Cacheu, para ficar sob a protecção da tropa portuguesa aí estacionada.


O homem, com o nome bem português de João Mendes, pequeno, negro, a alma da cor da alma de todos os homens, após mais alguns interrogatórios também ia ser libertado. Mas já não vai. Enforcou-se esta madrugada nas grades da cela da acanhada prisão que aqui temos, com as mangas da camisa nova que lhe comprei ontem e transformou numa corda. Morreu na casa em frente, a vinte metros da cama onde eu dormia, alheio a todos os dramas do mundo.


Numa pequena carteira de plástico que lhe encontrei no bolso das calças, João Mendes guardava um conjunto de senhas, uma de cada cor, comprovativas do pagamento de impostos referentes aos anos de 1960, 1962 e 1963, na circunscrição do Cacheu. A saber, Imposto Domiciliário 153 escudos, Imposto de Capitação 153 escudos, Imposto de Trabalho 25 escudos, Taxa Pessoal Anual 153 escudos, Remissão da Contribuição Braçal 25 escudos, Taxa de Exploração de Produtos Agrícolas 75 escudos, Imposto de Palhota (ano 1952) 80 escudos.


Pobres negros, como foram impiedosamente explorados!..."
 
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Nota de L.G.:
 
(*)  27 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5903: Estórias avulsas (76): Como morreu o meu prisioneiro (Hugo Guerra)
 
(...) Levaram o jantar ao prisioneiro e abrandaram a vigilância de tal forma que,  estávamos nós a jantar, irrompe a rapaziada pela Messe dentro gritando que o homem se tinha enforcado.


Fui a correr ver o que poderíamos fazer - já era o terceiro enforcado que via na minha vida - e encontrei o meu prisioneiro pendurado e com a rapaziada toda a olhar especados com aquela visão. Tinha usado o baraço que trazia a segurar as calças e que ninguém se lembrara de lhe tirar antes. Agarrei o homem pelas pernas e fazendo força para cima para aliviar o peso lá arriámos o corpo que ainda tentei trazer de volta à vida. Fiz-lhe boca a boca e naquele desespero até injecções no coração lhe apliquei. Tudo sem resultado. O homem partira o pescoço e nada mais havia a fazer.

Apareceu entretanto o Chefe de Posto, cabo-verdiano, cujo nome não recordo mas que disse do alto da sua sapiência:
- Aquele mais velho,  da etnia [...], nunca trairia o seu povo e tinha-se suicidado para evitar a vergonha insuportável de ter sido preso e humilhado daquela forma.

Cresci mais um bocado naquele dia e, no dia seguinte, achei que já tinha guerra a mais e escrevi ao meu amigo Coronel Pilav Diogo Neto, Comandante da Zona Aérea da Guiné,  a pedir para me tirar daquele filme. Já chegava. (...)

Hugo Guerra foi Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 60, Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70; é hoje Coronel, DFA, na reforma.

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