terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5824: Notas de leitura (68): Memória, de Álvaro Guerra - A tiros de raiva e metal escaldante (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
Aqui vai mais uma recensão sobre o Álvaro Guerra.
Se houver uma alma caridosa que me empreste ou queira fazer a recensão de “Os Mastins” ou “A Lebre”, é só avisar.E se houver uma outra alma caridosa que me queira emprestar os primeiros livros do José Martins Garcia, ou fazer as competentes recensões, much better.

Um abraço do
Mário


A tiros de raiva e metal escaldante

Beja Santos

“Memória”, de Álvaro Guerra (Editorial Estampa, 1971) é um livro deliberadamente niilista, organizado por fragmentos por onde se dispersam as recordações da infância, da guerra, do tecido familiar, dos desacertos da vida. É talvez o último livro onde Álvaro Guerra regressa à Guiné. A obra abre com um discurso torrencial, não há pausas, não há condições para a retoma do fôlego, o leitor é forçado à correria, compete-lhe pontuar para encontrar o sentido das palavras: “no calor morria e nesse medo matava rasgando capim folhas lianas a tiros de raiva e metal escaldante metralha a abrir o caminho para hoje percorrido comigo desde o meu corpo espalmado na terra a beber o suor e o sangue e os olhos fechados invocavam imagens e logo se abriam para a dor real naquele longe de casa que eu era rastejando entre os silvos e explosões...”. E logo a memória vai para a Ameixoeira no canto do pátio, no marçabril de cada ano, o autor recorda a casa da avó e as coisas lúbricas que praticou com a sua prima. Seguem-se textos que rondam episódios históricos, fala-se mesmo do império e depois partimos para a Ponta Tenente, lá no Rio Grande, é um regresso caótico, quase demencial, à Guiné, depois disserta sobre o machismo, o amor, as viagens dentro da Europa, brinca com as mensagens publicitárias, olha-se ao espelho e estabelece uma conversa que podia caber dentro do surrealismo de Dali, revela-se poeta, são fogachos atirados para os céus, vê-se como Álvaro Guerra apreciava o “novo romance”, as obras de Cortazar, os autores do absurdo, é um experimentalismo que vai estonteando o leitor transformado em cobaia de um escritor que parece não querer abrir o jogo. E, abruptamente, Álvaro Guerra volta ao nosso país: “Nasci na pátria do ódio gentil, na pátria da paz e do sono, do idílio de uma seringa cheia de medo com uma veia cheia de velho sangue, uma veia sossegada e antiga, sem dores de me parir. Cresci entre as histórias mentirosas e as mezinhas mitológicas de adiar mortes serenas, milhões de tranquilíssimas mortes conformadas, ao som do fado-hino e da saudade-destino”.

Há nesta viagem de um funâmbulo imagens que nos recordam Alexandre O’Neill e Herberto Helder, o combatente que regressou e foi estudar para Paris desorganiza e entrança as suas memórias entre o burlesco e o grotesco. E nisto chegamos à guerra, a uma verdadeira sinfonia para a guerra, com três andamentos. O primeiro, já aqui foi referido, vem citado por João de Melo na sua antologia “Os anos da guerra”, tem a ver com os preparativos e conta a história de um cadete que rouba o vinho destino à celebração da missa. O segundo andamento chama-se ocupação, é possível que trate a história da unidade a que pertenceu Álvaro Guerra quando chegou à Guiné em 1963: “A companhia recém-desembarcada dos três velhos aviões a hélice foi provisoriamente instalada no Liceu da Cidade que, para o efeito, se encontrava equipado com aquilo que habitualmente equipa um liceu: carteiras, mesas de professores, ponteiros, giz, globos terrestres, animais empalhados, provetas, tubos de ensaio... Quando a soldadesca saltou dos camiões, o capitão ordenou a formatura e disse para terem muita atenção em não escangalhar nada do que estava lá dentro, pois aquilo era Património do Estado e “quem escachaporrar alguma vez tem que s´haver comigo”, após o que se fez a distribuição dos militares pelas várias salas de aula, tendo o gabinete dos professores sido reservado aos oficiais e o laboratório aos sargentos... Apesar do apetite que a pressa claramente demonstrava, não foi a ementa muito apreciada, depois se descobriram mais tarde, nos quadros pretos, inscrições não muito elogiosas traçadas a giz incerto, das quais se dão alguns exemplos: “Oje o rancho foi uma merda”, “O cozinheiro que vai ensebar os cornos do pai com a sopa que fez”, “Grões igual a balas”, etc., tudo isto ilustrado com uma expressiva e assaz numerosa colecção de falus das mais variadas dimensões. Acomodados sobre a palha, entre carteiras, dispuseram-se a passar confortavelmente a sua primeira noite no liceu o que teriam conseguido se não fossem os permanentes e ferozes ataques dos mosquitos o que determinou colectiva manhã mal-humorada e salpicada de queixas aos superiores imediatos: soldado-cabo-sargento-alferes-capitão, com judiciosas quão oportunas observações do tenente-médico”. Tudo parodiado, como se a diversão fosse o óptimo condimento para chegamos ao terceiro andamento, o “massacre”. Prosseguindo o estilo delirante, a companhia anda aos tombos, chegou uma ordem, é o desconchavo total, a tropa vive o drama de um ataque de chatos, o dê-dê-tê, seria da comida? Seria da roupa? Vive numa inquietação geral quando a sinfonia culmina com o tema final: “Estavam nisto quando o ataque começou, choviam granadas e balas, assobiando sobre as cabeças e explodindo mesmo nos postos-chave das defesas tão inteligentemente concebidas, os soldados corriam de um lado para o outro, semi-vestidos, calças na mão e espingarda na outra, dando urros de dor por não sobrarem mãos para se coçarem, alguns tombaram logo na primeira vaga, gritando heroicamente “ai, nha mãezinha!”, outros, depois de alcançarem os abrigos, disparavam com uma das mãos e coçavam-se com a outra... Às três da manhã a companhia fora massacrada. Morreram como heróis, garanto. Morreram todos, menos eu, que escapei para contar a história”.

O burlesco na guerra tem longos e felizes antecedentes, basta pensar em “O bravo soldado Chveik” de Jaroslav Hasek, isto para não esquecer as sempre tão esperadas incursões do nosso Jorge Cabral. Ao deixar as suas memórias na Guiné com esta “Memória” mal sabia Álvaro Guerra que um outro niilista tão dissoluto ia chegar às lides literárias e não com menor talento, José Martins Garcia. Os estudiosos da literatura que procurem interpretar o fenómeno desses anos 70 em que os militares faziam a sua catarse divertindo-se, sabe Deus com que sofrimento a esvair-se da imaginação para os dedos.

O livro “Memória” passará a pertencer ao blogue.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5820: Notas de leitura (67): O Disfarce, de Álvaro Guerra - Mais ou menos tão divertido como o teu exílio (Beja Santos)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caros amigos
Quando era jovem, a União Desportiva Vilafranquese tinha uma equipa de hóquei em patins que ombreava e batia o pé às mais conceituadas equipas da época.
E sabem que era o guarda-redes?
Pois adivinharam, o Álvaro Guerra.
Era mesmo muito bom, rivalizava com o Moreira (daquela equipa que também tinha o Adrião, Velasco e Bossós) e era o meu ídolo, naquela época, naquela modalidade e naquela terra.
Soube-se depois que tinha ficado bastante ferido 'na guerra de Guiné' e que já não podia jogar hóquei...
Tive pena. Tive desgosto.
Mais tarde ganhou-se um embaixador e um escritor.
É a vida!
Um abraço
Hélder S.