quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5758: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (3): Dois anos maravilhosos: S. Domingos, Varela, Ziguinchor, antes da guerra...


Guiné-Bissau > Região do Cacheu > S. Domingos > Estádio de Amizade de S. Domingos > 1º Festival Cultural de S. Domingos: Nô laba rostu di nó Guiné (S. Domingos, 18-20 de Dezembro de 2009) > Dançarinos balantas de Ingoré. O festival foi um sucesso, envolvendo cerca de 5 mil participantes e espectadores. Juntou diferentes grupos artísticos, culturais, teatrais, folclóricos, de Aramé, Elia, Suzana, Varela, Cacheu, Ingoré, S. Domingos e Ziguinchor.

Segundo a AD - Acção para o Desenvolvimento que organizou esta iniciativa, "a valorização das diferentes facetas das manifestações culturais dos grupos étnicos existentes na Guiné-Bissau, alguns em perigo de desaparecimento por razões de absorção e integração por outras etnias, como os banhuns, cassangas e baiotes, permite à maioria o conhecimento e acesso a essas manifestações culturais, retirando-as do esquecimento e promovendo-as a património cultural nacional".

Por outro lado, "a actuação de grupos culturais locais favorece a criação e consolidação dos movimentos contra uma “cultura” urbana que despreza a tradicional, porque rural, lutando contra a intolerância e discriminação sexual e religiosa".


Foto: © João Graça (2009). Direitos reservados


1. Pré-publicação de excertos do próximo livro do nosso amigo e camarada Mário Beja Santos, Mulher Grande. Trata-se da terceira parte do Capº III (*):

Mulher Grande > III > A Guiné em chamas ou o “Tubabo Tiló”
por Mário Beja Santos


[III. 3] A exaltação de S. Domingos


S. Domingos era uma aldeia, a nossa casa ficava a 500 metros do porto. Olhe para o mapa e veja como estávamos próximos da fronteira. Pelo estradão, estávamos a 45 ou 50 minutos de Suzana, no bom tempo, e logo a seguir tínhamos a praia de Varela, a minha inesquecível praia de Varela. Por vezes íamos pelo estradão de Suzana até ao Cabo Roxo, não pode imaginar o panorama que dali se desfruta.

Para quem, como nós, até agora tinha estado longe de tudo, S. Domingos, se bem que uma povoação insignificante, aproximava-nos de território francês, e como o Albano mantinha relações muito cordiais com as respectivas autoridades, passei a ir com regularidade a Ziguinchor.

Era tudo em dimensão diminuta, estávamos, como disse, perto do porto, tínhamos uma tasca quase à porta de casa. A administração ficava em frente à nossa casa, a seguir havia a escola e um pouco mais abaixo o madeireiro. A nossa casa era o centro de S. Domingos, digo isto sem nenhum exagero, pois a estrada para Ziguinchor e para Varela passava-nos à porta.

Quando lá chegámos, depois de um longo dia de viagem que começou em Pirada, seguimos por uma picada até Sonaco, depois Bafatá, voltei a fazer aquele percurso que passa por Mansabá, revi Bissorã, onde matei saudades, seguimos depois por Barro, Sedengal até S. Domingos. Quando chegámos quase ao anoitecer, cheia de pó por dentro e por fora, olhei para a casa e disse para comigo: “Mais uma casa velha para arranjar, mais móveis para comprar, mais costura, pareço a Penélope, aprumo e desmancho, quando me estou a afeiçoar às coisas, chegou a hora de partir!”.

A casa impressionou-me bem, tinha gerador e não tinha prisão no rés-do-chão, como no Gabu. Estávamos lá há poucos dias, quando fomos convidados pelos colegas do Albano a visitar Ziguinchor. Foi uma sensação maravilhosa de ter um restaurante a algumas dezenas de quilómetros de casa, havia lojas de tecidos e um estabelecimento onde se podiam comprar produtos franceses, sobretudo conservas. Não pode imaginar a minha alegria de entrar numa outra loja que tinha livros franceses, comovi-me quando vi romances da Colette, Romain Rolland e André Gide.

Para minha surpresa, na primeira vez que vim à rua em S. Domingos abeirou-se um branco com a pele muito tisnada, tirou o chapéu colonial e saudou-me: “Sou o Toscano, não sou parente do seu marido, sou o Toscano madeireiro”. O chefe de posto era o Braga, branco tal como a mulher, fui madrinha do filho que ali nasceu, estávamos ali há mais de um ano. Recordo que havia dois padres italianos em Suzana.

Penso que vamos encontrar bastantes imagens da região de S. Domingos, das férias em Varela, dos passeios com amigos franceses, aqui nos meus álbuns. Tenho agora uma confidência a fazer, foi em S. Domingos que pela primeira e única vez vi o Albano com os copos. Ele foi dar um passeio, eu estava de cama, quando regressou vinha a rir-se, fez-me uma careta e disse: “Benedita, desculpe, hoje não durmo aqui, não estou bem, senti que bebi demais, o padre recebeu vinho para a missa, fomos provar, não sei como me embebedei!”. Dito isto, com as mãos a agarrar a barriga dava grandes gargalhadas, caiu no chão, levantou-se e saiu. Eu olhava para aquilo tudo sem abrir a boca, sinceramente o único medo que tive foi que aquelas cenas se voltassem a repetir.

O importante é que eu sentia mais alegria em S. Domingos, a tal sensação de estar perto de tudo, de poder viajar, encontrar gente, comprar uma revista, passear, ter a satisfação de marcar um almoço ou um lanche. E a certa altura, quando a professora partiu tive a emocionante experiência de dar aulas. Senti que era uma vocação tardia, iria gozar aqueles momentos com toda a intensidade.

Desculpe insistir, desde Bissorã que eu não me dava tão bem com a Guiné. Às vezes penso que foi Ziguinchor que mudou tudo. Logo que chegámos a S. Domingos mudámos de motorista, o Guilherme foi trabalhar para a meteorologia em Bissau, o Albano admitiu o Xuxo, era ele que me levava às compras em Ziguinchor.

Aos sábados, sempre que possível, íamos passear a Varela. Nunca mais esqueci Varela com o seu extenso areal e palmares ao fundo, o concessionário do restaurante continuava a ser o Sr. Refrega e o ajudante, o Sr. Vasco. O governador da Guiné tinha aqui um palácio. Foi tudo saqueado em 1961, logo a seguir ao ataque a S. Domingos. Faço-lhe uma confidência, não sei se me estou a repetir, nunca mais me ocorreu querer voltar à Guiné, mas ainda hoje tenho saudades de Varela e de algumas viagens que fiz a Ziguinchor.

Em 1959, fizemos obras na casa de S. Domingos (durante as obras vivemos na casinha de Varela) e demos uma festa. Onde gostávamos de receber era em Varela. É neste período que eu senti uma grande mudança no estado de espírito do Albano. Pela primeira vez, via-o trazer trabalho para casa, eram os relatórios sobre a evolução da situação no Senegal, em Bissau sabia-se perfeitamente a qualidade e a quantidade de informações que ele possuía.

Várias pessoas me disseram mais tarde que não havia ninguém na Guiné, no Norte, tão bem informado como o Albano. Regularmente, por este tempo, o Albano era chamado a Bissau para reuniões de carácter confidencial. Como não havia estabelecimentos comerciais em S. Domingos, acompanhava-o, fazíamos a viagem até Cacheu, daqui para Teixeira Pinto e depois Bissau.

A recordação que melhor guardo foi este período maravilhoso de 2 anos, o Albano começara a estudar a economia dos Felupes e preparara uma monografia sobre a habitação dos Banhuns. Sei que não vai acreditar, mas a Christine Garnier viveu uma semana em nossa casa, viajava discretamente para o Senegal, quando chegou começou por dizer que preparava uma reportagem, mais tarde abriu o jogo, quando revelou a finalidade da sua viagem ficámos de boca aberta: fora o próprio Salazar que lhe pedira um relatório sobre o que se estava a passar no Senegal, trabalhou o documento com o Albano todas as noites, ele mais tarde confessou-me que o documento identificava com inteiro rigor as novas realidades.

Já disse e insisto que nunca falava de trabalho com o Albano, mas uma noite ele confessou-me: “Benedita, tudo vai mudar na Guiné com o que se está a passar em Dakar e Conacri, há gente que está a ser preparada para a guerra, não lhe escondo que há gente a fugir da Guiné para nos fazer guerra. Temo o pior”. Antes de partir, a Garnier disse-nos que o relatório tinha sido enviado à D. Maria, a governanta de Salazar. Desculpe estar tão repetitiva.

[Revisão / fixação de texto / título: L.G.]

[Continua]
_______________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 2 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5747: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (2): Da Guerra do Turu-Ban ao Tubabo Tiló, passando pelo deslumbrante Corubal

3 comentários:

Anónimo disse...

Felupes... uma etnia muito interessante. Corriam c'o PAIGC com arco e flechas, não era?
Um dia, um deles -guia- agarrou-se a uma enfermeira nossa e declarou que queria casar com ela. E para convencer o Felupe a largá-la e a deixá-la entrar para o avião!?

Também diziam não comiam brancos porque estavam contados 'pela Administração'...


SNogueira

Luís Graça disse...

Salvador: Induzi-te em erro... Não são dançarinos felupes, mas balantas de Ingoré... O Festival envolveu vários grupos étnico-linguísticos... Já corrigi. Aqui fica o meu pedido de desculpas aos balantas e aos felupes... Luís

Anónimo disse...

Quem conhece os Felupes, particularmente os da Região de S. Domingos, e com eles viveu tristezas e alegrias, entre 1971/1973, no período de intensa Guerra Colonial, sabe que, apesar do medo da Guerra e da miséria em que nessa altura se vivia, sempre foi um Povo alegre e hospitaleiro. Gosta de partilhar o que tem com os visitantes, quer os bens essenciais, quer a sua cultura, e os seus usos e costumes, mas também gosta de aprender coisas de outras culturas.
Os Felupes têm sofrido muito, mas nunca perderam a alegria de viver e a esperança de um amanhã melhor.
Pelo que me é dado ver, através deste extraordinário Blogue, e de outras notícias, prevejo que com a força e a determinação do seu Povo, e de valiosos contributos externos, e a proximidade de Ziguinchor, a Região de S. Domingos poderá ser a curto/médio prazo das mais desenvolvidas da Guiné Bissau. Assim é o meu desejo.
Aproveitando esta oportunidade, envio um grande abraço ao afectuoso Povo de S. Domingos.
O meu abraço de agradecimento aos camaradas Autor e Editores deste Blogue.
Bem Hajam.

B. Parreira
Ex-Furriel Mil.