quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5753: Notas de leitura (61): Armor Pires Mota (6): Estranha Noiva de Guerra, uma obra prima à espera de reconhecimento (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
É uma sensação maravilhosa e um reconforto enorme encontrar pela frente esta gema literária. A Âncora Editores propõe-se reeditar o romance. Vamos ver o que é que responde o Armor Pires Mota.

Um abraço do
Mário


Armor Pires Mota (6)

Estranha Noiva de Guerra: Uma obra-prima à espera de reconhecimento


Beja Santos

Estranha Noiva de Guerra”, nova incursão de Armor Pires Mota na literatura da Guerra Colonial, é uma verdadeira surpresa, o mais agradável dos imprevistos para quem começou a conhecer a sua obra de fio a pavio. Não é uma guerra qualquer. O herói chama-se Bravo Elias, combate em Mansabá, a trama do romance decorre numa operação ao Morés, inicialmente parece um êxito até que a reacção do IN é brutal, desarticulando as tropas portuguesas no teatro de operações. Num dado momento, o Bravo Elias fica só com o Perdiz, faz parte dos supremos regulamentos de um combatente não deixar morto ou moribundo por mãos alheias, os camaradas vão zelar para que ele tenha tumba ou hospitalização, não se subtrai a dignidade a quem está à sombra da bandeira portuguesa. Inicia-se uma espantosa via-sacra em que aparece Mariama, a guerrilheira, que lhe promete levá-lo até ao quartel. É uma gramática riquíssima, um compromisso entre o português castiço, a narrativa à Hemingway com foros da narrativa delirante latino-americana. Conversa-se com o Perdiz como se ele estivesse vivo, anda por ali um cão que fará toda esta romagem, no mais puro estado de fidelidade; e até existe John, um pássaro, que se serve das migalhas de casqueiro na palma da mão estendida.

A cumplicidade entre o Bravo Elias e Mariama vai crescendo. Ambos fazem uma padiola para carregar o defunto e o material bélico, o esquife segue aos solavancos: “O sol batia nas covas dos olhos. Os raios voltando ao espaço, pareciam ensanguentar os arbustos, o azul do céu e eu assustava-me, ao passo que os pássaros, depois de feito o ensaio geral pela manhã, se davam ao luxo de uma sesta bem antecipada. Porém, mal tínhamos andado para aí cinco tiros de funda, vi, com susto que Mariama soçobrava do esforço. À uma, descemos a padiola. Aproveitei aí para compor o cabelo do Júlio Perdiz. A rapariga, entretanto, fazia-me sinal para que eu me sentasse. Com aceno de cabeça, disse que sim. Puxou-me pelo braço. Brincando, tacteou-me os poros com uma adaga de fogo branco, avassalando a alma, os nervos”. É uma paixão que desperta. É preciso escrever-se muito bem para não enveredar pela lamechice, o autor descreve com sabedoria e rigor toda a ternura que desponta.

Atravessa-se a bolanha de água pastosa, o calvário prossegue, aquela região chama-se Lala Samba, os jagudis voltam a atacar o finado, arrancam-lhe os olhos, metade de uma orelha, o nariz. Aos tombos, chegam a Cumbijã Sare, lavam o que resta do Perdiz, Mariama parece em transe, está no seu “chão”. Chegamos a uma nova etapa da via-sacra, aparecem dois guerrilheiros, Mariama enrola uma justificação, chegam à tabanca de Sambuiá, onde um velho, de nome Mamadú Keta antigo alferes de segunda linha, irá oferecer um cachimbo ao Bravo Elias. É o fascínio de uma reconciliação, do atar e do desatar vínculos diluídos pela guerra. E assim se chega à recta final: “Ladeámos Tabassai junto aos morros de baga-baga. Para diante, havia a certeza do arame farpado, o odor forçado da tranquilidade. Realmente, do enorme poilão, que se perfilava no horizonte de aço, saltou um novo bando de jagudis, que investiu contra o resto do Perdiz. Arranquei-me do desânimo, pequei da G-3 e limpei seguramente meia dúzia no seu voo raso e pesado”. A via-sacra vai evoluir. Armor Pires Mota escreve magistralmente um ataque a Mansabá como nunca encontrei na literatura da Guerra Colonial: o vigor da encenação, os sons, as imagens de sofrimento, as águas-fortes das correrias e dos rodopios. É nisto que os dois jovens guerrilheiros do Morés matam Mariama. O apocalipse está completo, o Bravo Elias olha à volta todo este mundo devastado, com odores dos escombros e dos estragos das armas, John pia assustado, era um fio de voz que doía. E assim termina esta obra incomparável: “Então, resolvi erguer-me de onde estava, aéreo e pardacento, e, cambaleando muito, fui à procura de John por cima de um mundo de destroços”.

Quando se acaba de ler este livro incomparável, assalta logo ao espírito a inquietação: foi por cegueira ou alheamento que “Estranha Noiva de Guerra” não é livro que ande de mão em mão dos combatentes, das pessoas que gostam da boa língua portuguesa, que distinguem a qualidade da água chilra?

É totalmente incompreensível o desconhecimento desta obra, pior ainda, nada fazer em silenciar a originalidade desta escrita. Vou já à procura de editor para ela. Há que fazer justiça a “Estranha Noiva de Guerra”.

Em 1999, Armor Pires Mota edita “Terra Ferida”, uma homenagem a quem sofre no Golfo, na Bósnia, em Timor, no Kosovo ou em Angola. Mas não esqueceu os deveres contraídos com a Guiné, a quem dedica o poema Guiné/98, um apelo à paz e ao carinho que devemos às crianças:

Aos livros de contos, de sonho e de paz,
os meninos encostam seu trémulo ouvido
mas agora sabem que as palavras
eram apenas de vidro
ou aragem de veleiro

ou breve rumor de korás
na alegria profunda
de noites no terreiro.
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As asas são ainda dos meninos,
(netos dos meus amigos
de Mansoa, Bissau ou Bissorã)
mas os olhos só têm voo
de medo e de nada
e não abrem destinos,
quando os cavalos de morte
relincham sombras, nuvens, desatinos,
e devoram inteiro o sol da madrugada.




Armor Pires Mota suspendia as suas viagens ao tempo da Guiné, passava a investigar a história da sua região, Oliveira do Bairro. Então, em 2008, regressa à Guiné com “A Cubana que dançava flamenco”. Silas Macário foi raptado, vive inauditas peripécias, acaba por se render aos encantos de uma enfermeira, uma rapariga dos seus vinte anos, uma cubana. É agora este o livro que tenho para ler e fazer a respectiva recensão, aguardando que Armor Pires Mota abra novamente os cofres da memória de combatente na Guiné.



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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5744: Notas de leitura (60): Estranha Noiva de Guerra, de Armor Pires Mota - I (Beja Santos)

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