domingo, 7 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5777: Notas de leitura (64): Já participamos nos romances dos outros - A Lucidez do Amor, de Tânia Ganho (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
Que grande surpresa, receber o romance da Tânia Ganho! E orgulho, por ver que o blogue é acompanhado em várias partidas do mundo, somos úteis na construção de personagens, que a Guiné existe no imaginário dos escritores e que os combatentes, com mais ou menos sofrimentos e marcas, são convocados para romances, apaixonam-se por fulas e são felizes a seu lado.

Um abraço do
Mário



Já participamos nos romances dos outros!

Beja Santos

Em 2009, recebi um e-mail de Tânia Ganho a pedir-me informações sobre a vida em Bambadinca, concretamente pretendia elementos sobre a vida das lavadeiras que prestavam serviço aos militares do aquartelamento. Lá procurei responder, de acordo com a minha vivência e apresentei Bambadinca enquanto quartel e tabanca, povoações limítrofes, porto e rio Geba. Importa esclarecer que Tânia Ganho é autora de romances e vive da tradução (tem traduzido autores como David Lodge, Annie Proulx, Anais Nin), já conhecia Bambadinca porque frequenta regularmente o nosso blogue.

Pois bem, acabo de receber o seu mais recente romance “A Lucidez do Amor” (Porto Editora, 2010) em que a autora agradece a António Graça de Abreu e a mim, bem como às histórias do blogue, escreve ela que se inspirou num texto de Vítor Junqueira “A chacun, sa putain” sobre a prostituta Fanta Baldé e a ideia de que havia crianças felizes em Bambadinca. O seu romance baseia-se em quatro personagens: um piloto francês, Michael, estranhamente supersticioso, Paula, uma portuguesa que conheceu Michael em Porto Santo, uma artista que vive em permanente ansiedade na sua residência em França, separada de Michael por quatro meridianos e cinco mil quilómetros de distância; Álvaro, um alferes que combateu na Guiné e que carrega um pesado segredo dos seus tempos de guerra; e Binta, uma fula de Bambadinca, que trabalhou como lavadeira e se apaixonou por Álvaro (Binta e Álvaro são os pais de Paula).

Tânia Ganho urde a trama do seu romance com base num telefone inquietante ou pacificador: Paula trata do filho recém-nascido, Artur, vive rodeada de mulheres cujos maridos andam também lá longe, no Tajiquistão e no Afeganistão, em missões para todas elas incompreensíveis, está sempre à espera do contacto telefónico, é a tónica da ansiedade que a mortifica e que no fundo é o lastro da comunicação que a congrega com as mulheres dos outros militares. Tem pesadelos, sonha com a queda de aviões, cada telefonema de Michael é o alívio possível, o que se passa lá longe, a partir de Duchambé, dos Mirages que bombardeiam ou abastecem, ela pouco ou nada sabe, mas não deixa de ver o noticiário internacional e sabe que Cabul é uma capital ameaçada. É uma espera feita de telefonemas, é uma comunicação sincopada, é um acordar e adormecer à espera de notícias, o ciclo de comunicação de Michael é o de produzir informação, inócua quanto ao serviço, personalizada quanto ao seu estado de espírito e dos camaradas.

Como é evidente, as histórias de Álvaro e Binta são relativamente acessórias às vidas de Michael e Paula que se movimentam em paralelo. Não vamos aqui contar qual é o segredo de Álvaro, o importante é que Binta é o amor da sua vida, estão constantemente a adiar a sua viagem a Bissau, querem lá ir em 2009, mas quinze dias antes de partirem Nino Vieira é assassinado, o casal volta a adiar o regresso à terra em que se conheceram e que mudou as suas vidas. Tânia Ganho termina assim o seu livro: “Dizem que o amor é cego, mas é a paixão que não vê defeitos e incoerências. O amor é lúcido, vê as falhas e as contradições e, apesar disso, subsiste”.

Quando, em finais de Agosto de 1970, viajei no Carvalho Araújo, a caminho de Lisboa, conheci um alferes que vinha com a sua esposa libanesa, um amor construído e consolidado em Bafatá, tanto quanto me recordo. Às vezes pergunto-me por onde andará aquele casal, como também me pergunto por andam, passadas estas décadas, as crianças que conheci em Bambadinca, fruto de amores efémeros. Há dias, telefonei ao Fodé Dahaba, a propósito do estado do cemitério de Bambadinca, onde estão os restos mortais de três camaradas nossos. Ele insistiu que eu devo voltar, rever tudo, há ainda gente que pergunta por mim, ainda há vários soldados vivos que nunca esqueceram o nosso tempo. Ele tem razão. Eu queria ver se regressava, em nome da lucidez do amor que lhes guardo. E aproveito para agradecer à Tânia Ganho em ter posto a Binta de Bambadinca no seu último romance. E digo com orgulho que agradeço em nome do blogue.

Este livro irá pertencer ao blogue, por direito próprio.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5774: Notas de leitura (63): Salgueiro Maia (2): Guidaje numa descrição digna do Apocalypse Now (Beja Santos)

3 comentários:

Juvenal Amado disse...

Talvez seja este o caminho.

Quando escreverem sobre nós, sobre o que contámos na primeira pessoa,ultrapassaremos este patamar de que quase só nós, conhecermos o que se passou.

Gente que escreve sem ter passado pelo trauma, que utiliza as nossas memórias colectivas para fazer a suas ficções, acabarão por fazer passar a mensagem e tornar aqueles tempos para sempre memória.
Será então prestada homenagem a todos sem vendas nos olhos nem recalcamentos.

Um abraço
Juvenal Amado
Um abraço
Juvenal Amado

António Graça de Abreu disse...

A Tânia Ganho também me enviou o seu livro. Dei-lhe uma ajudinha, creio que de pouca importância, na caracterização e definição das personagens Binta e Álvaro. Mas o trabalho é todo dela.
Na leitura, mais do que em diagonal, que fiz do seu livro, parece-me obra conseguida, bem escrita, actualíssima, não pela Guiné mas pelo Afganistão, etc.
E sobrelevo a importância do blogue para todos estes contactos, até de natureza mais literária.
Uma saudação especial à Tania Ganho,em Coimbra, em Paris.
António Graça de Abreu

Hélder Valério disse...

Todos aqueles que gostam, e de algum modo se revêm no Blogue, não ficarão indiferentes ao facto de alguém se inspirar nesta 'fonte colectiva' para construir os seus trabalhos.
Hélder S.