sábado, 30 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5732: Os nossos médicos (15): Professor Doutor Pereira Coelho (ex-Alf Mil Méd do BCAÇ 3872 e Director do Hospital Civil Bafatá, 71/74


1. O nosso Camarada Luís Dias*, ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872, Dulombi e Galomaro, 1971/74, enviou-nos a seguinte mensagem:

Camaradas,Conforme havia sido combinado com o Luís Graça, junto extractos de uma entrevista com o Professor-Doutor Pereira Coelho, que foi médico do Batalhão de Caçadores 3872 (Guiné 1971-74) e, mais tarde, Director do Hospital Civil de Bafatá.Material este publicado inicialmente no blogue da CCAÇ 3491 (wwwccac3491guine7174.blogspot.com).

A nossa publicação está já devidamente autorizada pelo nosso camarada Ex-Alf Milº Médico.

Amigos e Camaradas,

Há uns dias atrás, mais propriamente no dia do jogo de futebol entre Portugal e a Hungria, fui surpreendido com um telefonema do meu caríssimo amigo - o Professor-Doutor Pereira Coelho - que me disse que o seu contributo para o blogue estava num artigo que saíra naquele dia na revista do Jornal "i".

É claro que parti logo para a compra do jornal e depois de ler o artigo telefonei-lhe de volta e falámos um pouco sobre o artigo e que, a meu ver, era extremamente importante, permitindo-me que transcrevesse para o nosso blogue alguns dos seus pontos de vista sobre aquela guerra, expostos no citado artigo. Parece-me dispensar apresentações o nosso querido médico de Batalhão, o então Alferes Miliciano Médico, Pereira Coelho.

Permitam-me, no entanto, salientar que, para além das inegáveis qualidades profissionais, tantas vezes demonstradas no apoio aos nossos combatentes, na forma como se dedicava aos problemas que surgiam de âmbito médico nas companhias do batalhão e também nas tabancas que de nós dependiam e estavam inseridas na nossa quadrícula, mas também destacar o seu elevado humanismo e sentido de camaradagem, a forma como se disponibilizava para ajudar, muitas vezes ultrapassando o seu dever, correndo risco de vida. Estas qualidades levaram a que fosse estimado por todos os oficiais, sargentos e praças e tendo conquistado, rapidamente, a amizade e admiração das populações locais.

Como também todos sabem, o Professor - Doutor Pereira Coelho foi a alma pioneira de um projecto iniciado no nosso país - a Fertilização in-vítro. Em resultado do seu trabalho e em conjunto com a sua equipa do Hospital de Santa Maria, nasce, em 25 de Fevereiro de 1986, em Lisboa, a primeira criança, graças à técnica FIV. O rapaz, de nome Carlos Saleiro (é hoje avançado no Sporting) veio dar esperança a muitos casais com problemas de infertilidade.

Este acontecimento encheu-nos, claramente, de orgulho.O Alferes Médico Pereira Coelho adoeceu em Galomaro e foi evacuado por coluna até Bafatá e depois seguiu de avioneta para Bissau, isto porque as evacuações por hélio estavam proibidas, sendo apenas usadas para casos extremos. Este facto, que se espalhou rapidamente pelas tropas, veio provocar alguma instabilidade nas nossas forças, porque muitos perguntavam: "Se eles não vêm a Galomaro, sede do batalhão, buscar o médico, com receio de serem atingidos pelos strella, como é que vão ao mato buscar alguém, se ficar ferido?"

O nosso médico, como ele conta na entrevista, foi desvinculado mais tarde do Batalhão e passou a ser o Director do Hospital Civil de Bafatá, onde continuou a exercer com a competência e a responsabilidade que lhe são conhecidas. Foi substituído no Batalhão pelo Alferes Miliciano Médico, Rui Coelho, também ele um óptimo profissional e um excelente camarada (estabelecido na cidade do Porto).

Extractos da entrevista do Alferes Médico Pereira Coelho, salientados pelo editor, com a devida vénia ao entrevistado e ao jornal "i".O António Manuel (Pereira Coelho) que regressa no dia 25 de Outubro de 1973 (a) é uma pessoa muito mais forte e personalizada do que aquela que sai daqui em 22 de Dezembro de 1971 (b). Melhor. Mais preparado para enfrentar a vida. Munido de resistências fantásticas reunidas en terrenos pantanosos, por entre capins colossais, mercúrio severo e iminência de assaltos e emboscadas com desfecho imprevisto".

"Posso garantir que se a nossa atitude fosse de coragem e de espírito de luta pela sobrevivência, por muito maus bocados que tivéssemos passado, acabávamos por sair de lá mais determinados do que tínhamos ido"."Fazendo uma retrospectiva da minha vida, quase me atrevia a dizer que o mais marcante foi a minha experiência na guerra, particularmente naquele período e naquele local" (c).


"Estávamos completamente sozinhos. Tínhamos de decidir as coisas mais inesperadas, particularmente quando foram proibidas as evacuações, a não ser em casos extremos".

Depois de em certo dia lhe caírem em mãos duas raparigas em estado comatoso com quadro de meningite. "Caí na asneira de fazer respiração boca a boca a uma delas. Passados uns dias apareci com febre enorme, rigidez na nuca, falta de ar. Achei que tinha contraído a doença e pedi evacuação". Em termos de assistência civil às populações vê-se ainda a braços com uma epidemia de febre tifóide e sarampo, com exótica manifestação nos negros... Febre, manchas brancas, tosse e conjuntivite, em centenas de miúdos.

Um flagelo desenrascado com sucesso à colherada de uma solução lenta improvisada.Num ataque medonho à tabanca (d) incendeiam os telhados de colmo e o número de mortos explode à frente dos olhos. Nesse dia debate-se com 32 feridos graves queimados e uma das situações mais críticas, na sequência da morte de um dos enfermeiros (e) que estagiara com o grupo. "O pessoal que trabalhava comigo recusou-se a acudir alguns terroristas que tinham sobrevivido.

Tive de ser eu sozinho a tratar dos homens do PAIGC."Na chegada do correio a má nova faz estalar a polvorosa. Um dos elementos do batalhão apura por carta a traição da mulher. A loucura não faz a coisa por menos. Passeia-se (f) no aquartelamento com uma granada descavilhada pronta a desfeitear a harmonia.

"Andei uma noite inteira atrás dele a convencê-lo a dar um destino à granada. Não podia sair do pé dele. Se a deixasse cair por cansaço ou por livre vontade, nós os dois íamos logo. Já pela madrugada concordou atirá-la no campo de futebol. Jamais me vou esquecer dessa noite, entre as sete da tarde e as cinco da manhã".

Quando certo dia se inteiram da iminência de um ataque a Bafatá, é destacada uma companhia de pára-quedistas para bater aquela zona e tentar localizar e interceptar o grupo. Os páras cumprem a operação.

Quando regressam, o sargento que os comandara pede por tudo para ser recebido pelo médico. Nenhum mal lhe acometera a carne. Tem necessidade de desabafar depois de ter localizado o grupo de combate. "O grande dilema era o que fazer. Atacar e matá-los a todos ou podre vir a ser responsável pelas consequências de um ataque quando actuassem. Ignorou-os. Mas não conseguiu aguentar sozinho aquela responsabilidade." (g)

Pela conduta em missão, é-lhe concedido um louvor pelo comandante militar, Brigadeiro Bettencourt Rodrigues. Nunca prescinde da sua arma sempre que se desloca em coluna. "Entendiam que o médico não devia usar arma. Sim, mas era médico militar. Um mero alferes no meio dos outros soldados".

Regressa à Guiné em 1992. A saudade é apenas saciada em Bafatá. O seu aquartelamento em Galomaro dista por estrada 35 tortuosos quilómetros avessos a viaturas comuns. A realidade que os sentidos alcançam decepciona. "As condições eram fantásticas comparadas com o que fui encontrar vinte anos mais tarde".

O hospital militar em Bissau, um modelo na altura, assente num lençol de água, afundara-se até ao ponto de inutilização completa. No Hospital Civil Simão Mendes, albergue próprio de "quinto mundo", as condições indignas facultam pouca assistência aos locais. Cheiro nauseabundo, fezes, urina. Gente prostrada. Enfermarias irrespiráveis...".

Impressionado mas também comovido depois da passagem por Bafatá. Uma consulta de manhã. E qual não é o espanto quando os enfermeiros que com ele trabalharam o reconhecem. "Foi indescritível porque todos se agarraram a mim a pedir por tudo para os trazer para Portugal, porque a vida não se comparava com o outro tempo. Foi um drama ter de os afastar".

O calor da recepção aumenta depois do almoço. Defronte do hospital uma multidão de 4ooo pessoas espera-o com a recordação fresca na fala. "Ainda sabiam o meu nome. Revela até que ponto o pouco que lhes podíamos dar os marcou."

Caro Amigo,

Confesso, como aliás já te disse, que gostei da tua entrevista e do contributo aqui para o blogue, e também te digo que me levantaste as saudades, não da guerra, mas da sã camaradagem que vivemos naquelas terras, dos amigos que lá deixámos e do apuramento de virtudes e de carácter que transformou meninos em homens. (h)

Sabes que eras bastante apreciado pelo pessoal do batalhão e fizeste por merecer esse reconhecimento. Bem hajas.

Um grande abraço para ti e que o nosso Benfica continue em grande (este ano é que é!!!).

O Professor – Doutor Pereira Coelho actualmente.

O Professor – Doutor Pereira Coelho actualmente.

O Alf. Milº Médico, Dr. Pereira Coelho, na Guiné

NOTAS DO EDITOR:

(a) O nosso Batalhão chega a Lisboa a 4 de Abril de 1974.

(b) O Dr. P. Coelho vai para a Guiné no navio Niassa, juntamente com o BART 3873, em 22 de Dezembro de 1971, enquanto o nosso batalhão - BCAÇ3872, partira uns dias antes, em 18 de Dezembro. Contudo, o Alf. Médico vai para Galomaro directamente, chegando à nossa zona de intervenção um mês antes de nós, porque ficámos em IAO no Cumeré.

(c) A zona de actuação do BCAÇ 3872 situava-se no leste da Guiné, com a sede do Batalhão em Galomaro e as companhias sediadas em Cancolim (3489), Dulombi (3491) e Saltinho (3490).

(d) A tabanca era a de Campata, que foi violentamente atacada, mas onde o IN também sofreu bastantes baixas, face à reacção do pelotão de milícias ali instalado.

(e) Tratava-se de um auxiliar de enfermagem de origem local e que dormia na tabanca atacada.

(f) Quartel da sede do batalhão em Galomaro.

(g) De facto uma força de pára-quedistas localizou na área de intervenção da companhia de Cancolim uma força inimiga estimada em cerca de 100 elementos e solicitou ataque aéreo, recuando da zona. O grupo IN terá primeiramente debandado, mas reagrupou-se e terá sido responsável pelo ataque com foguetões a Bafatá. O Sargento que comandava a força terá sido alvo de processo disciplinar por ter evitado o contacto com as forças do PAIGC. O caso foi bastante comentado entre as nossas forças, pois não era habitual que tropas especiais "retirassem" numa situação daquelas!

(h) Era normal, no discurso de regresso à metrópole proferido pelo General António Spínola, ele referir-se ao facto das tropas chegarem ao território ainda meninos e partirem feitos homens. "Chegastes meninos! Partis homens!".

Um grande abraço a todos,
Luís Dias
Alf Mil At Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872
____________
Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

9 comentários:

Anónimo disse...

Se acaso o Tó Mané Coelho (que nada tem a ver com os Mané da "nossa" Guiné), daqui vai um abraço de quem já não o vê há 24 anos e 25 dias...

Alberto Branquinho

Anónimo disse...

Se acaso o Tó Mané Coelho (que nada tem a ver com os Mané da "nossa" Guiné)me estiver a ler, daqui vai um abraço de quem não o vê há 24 anos e 25 dias...

Alberto Branquinho

Luís Graça disse...

Lembro-me de ter lido e recortado a notícia de 1ª página do "Expresso", de 1 de Março de 1986, em que se dava conta do nascimento do 1º bebé-proveta português...

Por outro lado, o herói da semana era o Prof. António Pereira Coelho, e a sua equipa, da Unidade de Fertilização "In Vitro" do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e do laboratório de biologia molecular do Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras.

O título de caixa alta do "Expresso" não deixava de ser polémico e crítico: "Bebé-proveta faz nascer medicina-espectáculo em Portugal".

Estava longe de imaginar que o Prof Pereira Coelho tinha andado pela zona leste, na Guiné, durante a guerra colonial...

Obrigado ao Luís Dias.

Cesar Dias disse...

Caro Luis Dias

Ao ler o teu post, recuei até 1981, ano em que eu e a minha mulher frequentámos a consulta de planeamento familiar no Hospital de Santa Maria, e o Médico que nos assistiu foi o Dr Pereira Coelho.
Não sabia que tinamos sido camaradas de armas na Guiné, mas fiquei-lhe grato para sempre porque graças a uma intervenção cirurgica foi possivel ter sentido a alegria de ser pai, tem hoje a minha filha 27 anos.
Nunca o fiz publicamente, mas vou aproveitar este meio que é o nosso Blogue para lhe dizer BEM HAJA Dr PEREIRA COELHO.
Para ti Luis Dias, obrigado por o teres tornado possivel.
Um abraço
César Dias

Anónimo disse...

O seu a seu dono, como é timbre do nosso blogue: esta entrevista do ex-Alf Mil Médico Pereira Coelho, de que o nosso camarada Luís Dias reproduz uns extractos, terá sido publicada, pelas minhas contas, na edição do jornal "i" de 10 de Outubro de 2009. Para que conste...

Luís Graça, leitor

Joaquim Mexia Alves disse...

Tenho o prazer de conhecer o Mané Pereira Coelho.

Não me lembro se nos chegámos a conhecer na Guiné, ou se já foi em Lisboa por laços familiares.

Para além de um médico/cientista competentíssimo é um grande homem com quem é um prazer conviver o que infelizmente há muitos anos não acontece.


daqui lhe mando um abraço camarigo e outro para o Luís Dias que mo relembrou.

António Tavares disse...

Em Galomaro - 1971/72 - tive o privilégio de conhecer o ex-Alf Mil Médico Pereira Coelho.A sua simplicidade, saber, dedicação ao doente, boa disposição, linguagem acessível... é de enobrecer!
Lembro uma entrevista à Televisão que me prendeu ao écran.
Ao Luis Dias e Juvenal Amado,tem escritos anteriores,o meu bem haja por nos terem recordado tão insigne cidadão.

Luís Dias disse...

Caros Camaradas

Vou ser o correio das vossas mensagens para o nosso amigo, Prof-Doutor Pereira Coelho, com a certeza de que ele vai ficar muito sensibilizado e vai aceder ao nosso blogue para vos ler directamente.

Ao Joaquim lembro-o de que ele foi com o vosso batalhão no barco para a Guiné.

A todos um grande abraço

Luís Dias

Joaquim Mexia Alves disse...

meu caro Luís Dias

Não me lembrava efectivamente que ele tinah feito a viagem connosco.

Aí o conheci então!

e uma vez que fui ao Galomaro, via Saltinho, para levar salvo o erro, um morto do Xitole, mas que era daquela zona.

O Mané Pereira Coelho é um bom amigo que eu não vejo infelizmente há muitos anos.

Dá-lhe sim um abraço meu e recebe outro para ti