segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5707: Estórias do Juvenal Amado (24): O Cafezinho, ou uma história de vida

1. Mensagem de Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 22 de Janeiro de 2010:

Caro Luis, Vinhal, Magalhães, Briote e restante Tabanca Grande

O Cafezinho foi um puto reguila, voluntarioso, sempre a armar confusão mas todos nós miudos gostavamos da sua liberdade e do ter por perto.
Era um valdevinos mas um lider nem sempre nas melhores razões.
Tenho saudade dele, pois faz parte da minha juventude e dos tempos que já não voltam.

Um abraço
Juvenal amado


O “CAFEZINHO”

Amparado pelo enfermeiro, o “Cafezinho” deu dois ou três passos titubeantes na recepção das urgências do hospital de Alcobaça.

Um penso na cabeça denuncia o traumatismo, do qual foi tratado pelos serviços daquela unidade hospitalar. Toda a gente o conhecia. Era uma figura simpática, que nos habituámos a ver passar numa pasteleira enorme, onde se gingava no selim para chegar com os pés aos pedais. Infelizmente o combustível da bicicleta era tinto normalmente.

Pequeno com ar teatral, abriu os braços e num gesto de quem está num palco cantou com voz pastosa, Tuudo ééé preciso nasss passagens deeesta vidaaaaa!!

O seu nome era José, a alcunha ganhou-a quando foi preso, por contrabandear café durante a guerra civil espanhola. Uns tiveram sorte, ele teve pouca.
O filho que o esperava fora da sala, abananou a cabeça e disse:

- Pois, e agora cantas.

Todos nos rimos e o Cafezinho, aproveitou para tentar logo vender lotaria aos presentes.

Vendedor de jogo de lotaria, era um autêntico vendedor de jogo branco. Eu próprio junto numa sociedade, lhe comprei sempre o mesmo número durante uns anos. Era o 25209 nunca deu nada, até terminações foram poucas. Comecei antes da tropa e só abandonei quando saí da empresa em 1980.

Mas a estória que quero contar é a do filho Zé Café, sim o mesmo, que o esperava naquele dia.
Andámos na escola primária até à quarta classe, embora ele fosse mais velho que eu. Era o que se pode chamar um pardal de calções, fazia toda a espécie de tropelias e arcou com muitas que ele não fez. Uma fisga era uma arma infalível nas suas mãos. Escolhia as pedras com todo o cuidado e voltava da caça com inúmeros pardais á cintura.
Era visita frequente do posto da polícia. Quando não havia culpado à vista logo alguém se lembrava do Cafezinho.

Um dia também fui parar à esquadra, por me ter envolvido à pancada com ele, coisa que me arrependi de imediato, pois levei uma carga de pancada no jardim junto ao campo de ténis.
Quem jogava ténis naquele tempo eram meia dúzia de colunáveis da terra, e pagavam aos putos para lhes apanharem bolas. Ora aí estava um bom ponto de discórdia, entre a canalha miúda.

Entretanto saímos da escola e fomos trabalhar, cada um seguiu uma adolescência diferente.

Voltamo-nos a tornar mais íntimos, quando feita a minha recruta no CICA 4 sou enviado para o RI6 na Senhora da Hora na cidade do Porto. Lá estava ele quase pronto, pois era da incorporação anterior. Eu o Zé Lourenço, que fez a recruta comigo e o Zé Café tornamo-nos inseparáveis. Vínhamos a casa de fim de semana, no regresso o Cafezinho arranjava-nos boleia, nas camionetas dos porcos do senhor Manel Inácio. O cheiro agarrava-se a nós o resto da semana.

Quando chegávamos à porta quartel por volta das três da manhã, já íamos munidos do jornal para em cima dele nos deitarmos, junto ao muro até abrirem a Porta de Armas.

O Cafezinho foi o nosso cicerone pelo Porto fora. Alguns bares na Praça da Batalha e a feira do palácio de Cristal, eram normalmente o nosso destino.
Aí o Cafezinho dava show. Nas barracas de brindes com a espingarda, era cada tiro cada gaio. Era de frente, de lado de costas, ou com um espelho não falhava um tiro. Juntava um monte de gente só para o verem disparar.
Nós três cotizávamo-nos e só ele é que atirava. No fim de cada sessão, lá vinha a prenda entregue de mau modo pelo dono da barraca, que via o negócio ser pouco rentável com gente como nós.

Um dia quando estava a dar-nos uma garrafa de ginja, que tínhamos ganho, perguntou-nos com um ar agastado se nós nunca mais éramos mobilizados.
Respondemos-lhe em ar de gozo, que já tinha passado o nosso número mecanográfico e que íamos acabar a tropa ali mesmo no Porto.

Bem o Zé Café foi para Moçambique, o Zé Lourenço para Angola e eu para a Guiné.

Quando regressamos cada um foi à sua vida, embora sempre que nos encontrávamos, havia sempre dois dedos de conversa a relembrar.

O Zé Cafezinho foi atropelado em Lisboa, esteve entre a vida e a morte, pois ficou todo migado. Nunca mais largou as canadianas, não conseguiu continuar a trabalhar na Crisal e o seu sustento foi buscá-lo à venda de jogo da lotaria, concessão que era do pai. Após a morte do pai a mesma ficou para ele. Continuei a comprar o tal número, que entretanto já não eram os mesmos do inicio a associar-se.

Há dez anos saí de Alcobaça e a morte dele passou-me ao lado. Fiquei espantado quando falei nele e me disseram que ele tinha falecido.

25209. Amanhã vou fazer um totoloto e vou utilizar os mesmos números. Talvez em vésperas de também eu engrossar o fundo de desemprego, vá buscar um pouco de sorte que o Zé Café tentou vender e nunca a teve para ele.

Juvenal Amado
__________

Notas de CV:

(*) Vd. ´Poste de 12 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5454: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (15): Tabanca de Matosinhos, Tertúlia do Cozido à Portuguesa e viva a amizade (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 1 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5041: Estórias do Juvenal Amado (23): O velho milícia

6 comentários:

manuelmaia disse...

AMIGO JUVENAL

OXALÁ O ZÉ CAFÉ POSSA SER O GUIA QUE TE LEVE ÀQUILO QUE PERSEGUIU
SEM CONSEGUIR.
UM GRANDE ABRAÇO
MANUEL MAIA

Luís Graça disse...

Juvenal:

Uma história fantástica de grande ternura e solidariedade... É uma complexa rede de cumplicidades: a terra onde se nasceu, a escola que se compartilhou, a adolescência, a tropa, o emprego, a mesma empresa, os destinos que nos separam, as opções de vida que nos afastam, as filhas-de-putice da vida que nos rasteiram...

O Juvenal, no seu melhor, um dos grandes talentos literários do nosso blogue, especialista em matéria de efabulação narrativa. Já lhe disse: vamos ter colectânea das "estórias do Juvenal"...

Um chicoração, meu!

Joaquim Mexia Alves disse...

Bela história caro Juvenal.

Enternece o coração.

Não sei porquê, ou sei, mas lembrei-me que houve um Presidente do Brasil que era o Café Filho!!!

Abraço camarigo para ti e para todos

Anónimo disse...

Caro, Juvenal Amado, o meu bom dia.
Linda história, onde o valor sublime da amizade e companheirismo estão patentes, não faltando cumplicidade, saudável, nos bons e maus momentos da vida. Manda mais…
Um abraço
José Corceiro

Anónimo disse...

Caro Juvenal
Somos de Alcobaça onde praticamente nunca nos vemos e encontra-mo-nos no blogue do Luís Graça...Coisas da vida!
Parabéns pela tua história de vida do Cafezinho que conheci bem, pois julgo que tenho mais uns bons anos no meu B.I. do que tu.
O teu início da história retrata um "Cafezinho" que caminha já, a passos largos, para o fim da vida.
A recordação que tenho dele era de uma pessoa educadíssima. E essa imagem de marca da "pasteleira" também me ficou.Parecia que pedalava em câmara lenta!Ainda esta esta manhã conversei com o Zé Fernando da Pastelaria "Forno", que também trabalhou na Crisal(e também andou pela Guiné), que disse uma coisa com piada e que era autêntica: O Cafezinho mesmo bêbado não deixava de ser educado!
Também me lembro do filho que infelizmente teve um final de vida bem complicado.Vendia lotaria mas nunca teve sorte!
Que a terra lhes seja leve: ao Pai e Filho "Cafezinhos".
Um abraço.
JERO

Anónimo disse...

Juvenal,
Parabéns, linda história de vida relatada com muito sentimento e boa camaradagem.
Cumprimentos
Filomena