domingo, 10 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 – P5621: Histórias do Eduardo Campos (5): CCAÇ 4540, 1972/74 - Somos um caso sério, Cadique/Cantanhez (Parte 5): Destino Nhacra


1. O nosso camarada Eduardo Ferreira Campos, ex-1º Cabo Trms da CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74, enviou-nos a 5ª fracção da história da sua Companhia, em 9 de Janeiro de 2010:

CAÇ 4540 – 72/74
"SOMOS UM CASO SÉRIO"

PARTE 5

CADIQUE/CANTANHEZ

Com um nome de guerra tão pomposo, a minha Companhia teria de ter direito a um desertor.

De vez em quando chegavam a Cadique, camaradas vindos de outras paragens, era um “prémio” que as suas chefias militares lhes davam, por eventuais comportamentos menos felizes.

Um deles (cujo nome não interessa mencionar), saía e regressava do aquartelamento quando lhe apetecia e, por vezes, até trazia uma arma ou algumas granadas.

O capitão começou a ficar preocupado com tal comportamento e tratou de o enviar para Cufar, onde esteve uns dias no COP 4 e foi interrogado.

Depois de apanhar umas bofetadas e algo mais, para falar do seu estranho comportamento, voltou para Cadique, porque aí é que era o local apropriado para “despachar” os meninos maus.

O nosso camarada não aguentou a pressão (penso eu) e, no dia seguinte, disse adeus a Cadique, e desapareceu, levando a sua arma, ao encontro do inimigo.

Após o 25 de Abril, voltei a ter notícias do referido camarada (creio que no Jornal República), através de uma sua entrevista, dizendo que se encontrava, nessa altura, na Suécia.

Note-se que eu tenho em meu poder um manuscrito retirado de uma entrevista, que o mesmo deu á rádio de Brazzaville, em que fazia referência à sua fuga e pelos locais por onde tinha passado, e, como já se vinha tornando moda, impregnada de exagerados rasgos de determinado tipo de propaganda política, pouco abonatório para nós, ex-Combatentes. De quem veio tais afirmações, também não seria de esperar outra coisa.

Por falar em fugas, a guerra em que todos nós participamos tinha coisas espantosas, a ver um caso:

De vez em quando apanhávamos um homem africano “suspeito”. Se fosse velho ainda se safava, mas se fosse jovem era logo apelidado de turra e era enviado para Bissau. Andava por lá uns tempos, regressava de novo com ar satisfeito e um rádio nas mãos e era incorporado nas milícias. Davam-lhe uma farda e uma arma e, passados uns dias, o homem desaparecia no meio do mato. Espantoso não é?

Em 20/06/73, desembarcou em Cadique a CCS/BCaç 4514 e, a partir dessa data, iria constituir ali a sede do seu batalhão e dar continuidade aos trabalhos já iniciados e desenvolvidos pelas anteriores unidades na zona.

Não sei se houve acordo entre os “senhores da guerra”, mas em 19/07/73, arranjou-se tempo para organizar uma grande festa em Cadique.

Se fosse hoje, eu diria que iriam decorrer ali, em breve, eleições, já que foram feitas várias inaugurações: o Posto Sanitário, a Escola, o Monumento de Homenagem aos Reordenamentos do Cantanhez e foram descerradas duas Lápides de Homenagem ao Comandante Araújo e Sá e aos mortos do Cantanhez. Também se aproveitou a festa, para inaugurar duas ruas a que se deu os nomes do 1º e 2º chefes da POP de Cadique Imbitina, Banan, Nadum e Nanqueca Nandefa.

Tudo me leva a crer, que nosso amigo e Camarada António Carvalho (da CArt 6250, Mampatá), andou por lá perto e foi mesmo nessas bandas que aprendeu a fazer as suas brilhantes campanhas eleitorais (?).

Esteve presente o Comandante do CAOP 1, o Coronel Pára-quedista Curado Leitão. Quem sabe se o nosso amigo António Graça Abreu também lá esteve?

E a paróquia de Cadique estava representada pelo Comandante do Batalhão 4514, Tenente-coronel Sousa Teles, muitos militares, inúmeros população e muito provavelmente, misturados na multidão, vários guerrilheiros do PAIGC.

O almoço nesse dia foi mesmo de “ronco” e ainda deu tempo para “estragar” uma bola de futebol, num desafio a rigor entre a CCS do BCaç 4514 e da CCaç 4540.

A 22/07/73: Desembarcou em Cadique a 1º Companhia do BCaç 4514, que veio substituir a CCaç 4540.

Quase um mês depois, mais precisamente em 17/08/73, a CCaç 4540 disse adeus a Cadique, a bordo mais uma vez, da LDG Bombarda, tendo chegado a Bissau no dia seguinte e sendo conduzida para o D.A., em Brá, onde ficou instalada.

Nessa altura já não me encontrava em Cadique, pois tinha sido chamado para uma “missão” já programada há algum tempo (35 dias de férias na Metrópole). Apanhei um helicóptero (coisa rara nessa altura) e voei para Bissau.

Neste preciso momento, tentei imaginar o que teria sentido na despedida de Cadique, conjuntamente com a minha Companhia, e, a única coisa que me ocorria, nessa data, era pensar: “A merd. do barco nunca mais sai daqui.”

Se fosse hoje, creio bem sério, pensaria: “Foi com certa nostalgia e saudade que deixei para trás aquelas paragens, que, com sacrifício sem conta, ajudei a desenvolver e prosperar ficando ligado para sempre a Cadique.”

Depois de ter gozado as merecidas férias, regressei a Bissau em 31/08/73 e, quando entrei nos Adidos, deparei com muitas viaturas na parada prontas para saírem. Foi nessa altura que tomei conhecimento que a minha Companhia se encontrava ali, ao ver camaradas meus em cima das mencionadas viaturas.

Na recruta, o aspirante do meu pelotão, dizia com alguma frequência que existiam duas formas de ultrapassar os obstáculos que a vida militar nos opunha:

Primeira: Tentar passar o mais despercebido possível daquilo que nos rodeava, não dando nas vistas;

Segunda: Nunca se armar em herói, já que os cemitérios estavam cheios deles.

Eu, ao entrar nos Adidos, quando tomei conhecimento que o pessoal e as viaturas, que eu vira momentos antes, iriam escoltar uma coluna que se deslocaria de Bissau para Farim, cometi precisamente o primeiro erro “não passar despercebido”, e reconheço que terei cometido uma imprevidência, “mandando umas bocas foleiras”.

O nosso capitão ao ver quem era o “artista” das “bocas” (que mais parecia desfilar numa passerelle, para trás e para a frente), deve ter pensado lá para ele: “Tens a mania que és fino, então toma lá”, pois virou-se para mim e disse:

- Ó Campos larga o saco e sobe para cima de uma viatura!

- Eu meu Capitão? – perguntei.

- Não a tua prima.

- Mas eu nem sequer tenho uma arma – exclamei.

- Nem precisas, os turras sabendo que vais na coluna não nos atacam. Logo não precisas de arma nenhuma!

E lá fomos até Farim. A partir de Mansoa vi imensos vestígios arrepiantes e desagradáveis de emboscadas, ainda por cima sob uma chuva copiosa, durante toda a viagem de ida e de volta, que jamais esquecerei.

Nesse tempo, quase todas as colunas que faziam esse percurso, eram surpreendidas com emboscadas, das quais, infelizmente, resultaram muitas mortes de Camaradas nossos. Alguns dos corpos ainda se encontravam nos Adidos a aguardar embarque de regresso ao Continente.

O capitão teve razão, ia na coluna um militar que “impunha muito respeito” ao IN e de facto não aconteceu nada em toda o percurso e devo acrescentar, que, em quase vinte quatro meses de Guiné, nunca tive distribuída uma arma e nem um tiro disparei. É verdade, nem aos pombos!

No entanto fui ferido várias vezes e também tive o meu momento de glória.

Os ferimentos (várias escoriações), foram fruto das “aterragens” mal feitas nas valas. Umas vezes mal calculadas e outras porque entrava de bruços, cabeça, etc.

Por favor não se riam porque muitos de vós também as fizeram.

Quanto ao acto de grande de heroísmo, tudo se passou durante um ataque do PAIGC, com armas ligeiras ao nosso aquartelamento. O meu camarada de serviço foi para o abrigo, não tendo levado o rádio como lhe competia e nada nem ninguém o demoveu, para o ir buscar.

Eu, com uma calma que não me era habitual, saí do abrigo e fui buscar o rádio, regressando ao brigo com toda a calma deste mundo. A justificação para tal feito, só a encontro num bom copo de whisky que emborcara momentos antes.

Para surpresa minha, não surgiu nenhuma proposta para o prémio Governador ou mesmo um simples louvor. Senti-me deveras injustiçado pela atitude das minhas chefias militares.

Em 08/09/73, saímos do Depósito de Adidos, com destino a Nhacra, onde iríamos substituir a CCaç 3477 – “Os Gringos de Guileje”.

A partir de 19/09/73, a Companhia passou a ter á sua responsabilidade o sector de Nhacra, sob as ordens do COP 8, instalado no local.

Meus amigos, para mim e para a minha Companhia a guerra tinha terminado, iria ter cerca de um ano de férias e ainda foram remuneradas.

Duas notas finais:

- Aproveito para saudar, todos os ex-Combatentes e, em particular, os Açorianos, pois foram muitos os que por passaram na Guiné. Encontrei-os em Bigene, Cufar e Nhacra.

- Em primeira mão e em exclusivo, informo o pessoal tertuliano, que fruto de mexer em papéis antigos e de dizer umas ”asneiritas” no blogue, sobre a minha Companhia, não resisti à nostalgia que se tem vindo a apoderar de mim e, em Abril próximo, vou retornar à Guiné.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cacine > Cadique > Junho de 2007 > Pedras que falam da CCAÇ 4540 - Somos um Caso Sério -que esteve aqui, em Cadique, em pleno coração do Cantanhez, na margem esquerda do Rio Cumbijã, de 12 de Dezembro de 1972 a 17 de Agosto de 1973. Foto: Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados.

Um abraço Amigo,
Eduardo Campos
1º Cabo Telegrafista da CCaç 4540

Fotos 31, 32 e 33: © Eduardo Campos (2009). Direitos reservados.
_____________
Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


5 comentários:

Anónimo disse...

Amigo Campos

Estou admirado vais à Guné em Abril.
Como consegue que a tua família esteja de acordo. A minha gente quando falo no assunto levo logo na cabeça.
Vasco ferreira

Anónimo disse...

Estive em Cadique a 22DEZ65Morávamos cá do outro lado do Cumbijã.
Fomos lá mas para acabar com todas as moranças de Cadique Iálá a Cadique Nalu.
Outros tempos! Outras formas de fazer a guerra. É-me difícil falar de determinadas formas de fazer anti-guerrilha, porque independente da posição que cada um nós tenhamos, de um lado estavam os guerrilheiros e de outro os anti-guerrilheiros. Pois foi em Cadique, que as minhas idéias e maneira de pensar, verificaram muita coisa.Foi o momento em que defeni o que era uma: "GUERRA CIVIL INTERNACIONALIZADA". Depois de tantos anos,vão fazer a 11Fev próximo 45. Confirmo! Nós a aguentarmos o paquete, aquele desgraçado Povo a sofrer, e a trampa dos políticos (civis e militares) a enrolarem até que deu no que se viu.
Hoje!
Que morra o último "Veterano" desgraçado para não lhes chatearem a cabeça.
Só que dos sem abrigo, 4 em 10 são,ainda desses tais "Veteranos".
Será que ouvirei novamente a Rádio Argel transmitir de Belém que no Cachil está tudo morto?
Não admirarei por cá já poucos resistem.
Só me resta a esperança que aquele Povo se entenda de uma vez por todas. Basta!

Um desabafo!

Do tamanho do Cumbijã o velho abraço para toda a Tabanca,

Mário Fitas

Anónimo disse...

Ó "CAMARADA" Vasco...
Isto de ter o aval da tropa cá de casa é fácil, basta ir com elas aos saldos duas ou três vezes e entrar nas lojas , aguentar a emboscada, pagar e sair a sorrir...tá no papo.Tens tudo o que queres, inclusivé ir á Guiné.
Um abraço
J Carvalho "O cunhado"

PS

Por isso é que eu "BOU" também

Anónimo disse...

Caríssimo Campos:
Eras um espertalhão:então tens a distinta lata de mandar bocas em vez de te esconderes numa qualquer retrete, à espera que a coluna arrancasse!?...Estavas mesmo a pedir que te f......m-

Um abraço do Carvalho de Mampatá

manuel quelhas disse...

Caro Campos,
Agora sim, vejo que nos representas com a dignidade que todos nós, ex combatentes, merecemos.
Mas deixa-me que te diga. Tiveste muita sorte ao fazeres essa coluna sem arma e não seres apanhado à mão. Conheço muito bem esse terreno, sei perfeitamente aquilo que viste a partir de Cutia em direcção a Mansabá, mesmo ali ao lado do Morés. Julgo que ainda viste vestígios de viaturas destruidas. durante a minha comissão, em Mabnsabá, perdemos lá muitos camaradas: da minha Companhia; de Cutia; comandos africanos; pelotão de Milícias ( estes próximo do bironque).
Portanto da-te por muito feliz por teres passado sem nada te acontecer. Sem arma eu não teria ido, nem que fosse preso. Mesmo que tivesse que responder em conselho de guerra.
Um abraço a todos os combatentes.
Manuel Quelhas