sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5611: Notas de leitura (50): Os Anos da Guerra, de João de Melo (4): O Tempo em Uane e O Bando Armado (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos, (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
A recensão avança para o fim. Bom seria que se começasse a pensar numa antologia abrangente das obras surgidas desde a guerra até hoje.
É espantoso o acervo de testemunhos, nomeadamente nos últimos 10 anos.
Há que procurar interpretar porquê esta súbita disponibilidade, este franco descomprometimento em contar sem rebuços o que lá se viveu. É verdade que ainda não surgiu nenhuma obra-prima, mas o mosaico cresce, as vozes ensurdecem, como multidão que sai do anonimato, deliberadamente.

Um abraço do
Mário


OS ANOS DA GUERRA:
ALGUNS OLHARES SOBRE A LITERATURA DA GUERRA DA GUINÉ (4)


Beja Santos

Recordatória



Em “Os Anos da Guerra”, o escritor João de Melo procedeu ao levantamento dos escritores que testemunharam as suas experiências em termos de preparativos ou vivências nas três frentes. Como é óbvio, circunscreve-se a reprodução de alguns parágrafos de obras destes escritores ao teatro da Guiné, recordando aos interessados que um elevado número destes livros estão completamente esgotados, pelo que teria sentido reformularem-se as antologias em função do que apareceu a partir de 1998, última data da actualização de João de Melo. Aliás, o escritor não esconde que a sua selecção obedeceu a critérios pessoais, ele próprio se estava a aperceber da chegada de outros escritores. É tempo de oferecer ao grande público os testemunhos de todos os que escreveram ou guardaram nas suas gavetas memórias de recorte literário – todas elas fazem parte de uma História em construção, o essencial é que não se continuem a perder estes pedaços das nossas vidas que moldaram os anos da guerra. Concluída a série “Os preparativos”, vamos continuar com os testemunhos em terras de combate.




O tempo em Uane, por Álvaro Guerra

Tenho para mim que Armor Pires da Mota e Álvaro Guerra foram os dois maiores escritores que escreveram no período da Guerra Colonial, sobre a Guiné. Nunca percebi o esquecimento do Álvaro Guerra que ali combateu e foi ferido. Ele não foi só um precursor, foi, como se verá, um escritor distinto, criativo, talentoso:

“A meio da tarde, vieram três alferes de Bedanda, na canoa a motor, tendo como pretexto a dominical caça aos crocodilos. Amarraram a canoa às velhas estacas de cibe do cais de Uane e encaminharam-se para a aldeia, os três alferes, o sipaio e os dois soldados da guarnição de Bedanda, o sol a abrir as primeiras gretas da seca nos estreitos valados do arrozal, o calor a martelar a terra e as costas reluzentes dos balantas que colhiam arroz, enterrados na lama e na água estagnada da bolanha que se estendia, na geometria infalível dos canteiros, desde da margem do rio até longínqua orla do mato, limite sombrio daquele infernal e extensíssimo quadrado de sol chispando na água, dentro do qual os negros se dobravam sobre o resto dos débeis caules verdes.

Atravessaram lentamente a bolanha, enfrentando o persistente ataque dos mosquitos. O alferes gordo que vinha a frente era quem mais suava, grossas gotas a deslizarem até às guias do bigode e, por vezes, a arderem nos olhinhos miudinhos que, no entanto, espreitavam os seios das mulheres a caminho do celeiro, os balaios cheios equilibrados sobre as cabeças de ébano.”

“Agora, contavam o tempo que os aproximava de si próprios, ou da ideia que faziam de si próprios, porque, em certos momentos, já não sabiam muito bem como eram, nem mesmo se tinham sido alguma vez estudantes nas universidades, se estas existiam e, se havia alguma coisa a esperar, o que era concretamente essa esperança. E os soldados, os sargentos, os oficiais superiores? A que é que se entregavam com mais sinceridade senão a contar o tempo que faltava? Cálculos variados, imaginosos: mais um nó na espia da barraca, mais um risco na agenda que, à socapa, se tira do bornal, uma conta na contra-capa de um livro abandonado, 181 dias, 4344 horas, 260640 minutos. Era assim que se contava o tempo, na Guiné, em Janeiro de 63, tal como se tinha feito nos meses anteriores e viria a fazer-se, depois.

- Seu Jaquim, traga cerveja.

Sentaram-se os quatro nas cadeiras aviadores de pau-sangue, rijas de quebrar os ossos, à volta da mesa redonda com um naperão de renda desbotado e sujo.

O Joaquim era cabo-verdiano.

- Quantas, senhor alferes? – perguntou com seu sotaque crioulo.

- Quatro granadas. – disse o da cicatriz.

Nas traseiras da loja chorava uma criança, uma mulher entoava uma morna e a sua voz era saborosa como sumo de ananás maduro”.

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Álvaro Guerra
(1936 – 2002)


Com “Os Mastins” (1967), seguindo-se “Disfarce” (1969), “A Lebre” (1970) e “Memória”, Álvaro Guerra revela-se um dos mais importantes escritores da guerra da Guiné, antes do 25 de Abril. É corrente que os seus investigadores se debrucem sobre a sua ficção assente no folhetim romanesco, caso da trilogia “Café República”, “Café Central” e “Café 25 de Abril”. Mas é uma injustiça grave não relevar os seus indispensáveis registos de combatente. Felizmente que João de Melo o transcreveu, reproduzindo parágrafos fundamentais em “Os Anos da Guerra”. Depois da sua comissão na Guiné, de onde veio ferido, trabalhou em Paris, foi jornalista, director de informação da RTP, assessor do presidente Ramalho Eanes e diplomata (embaixador na Suécia, Jugoslávia, Zaire e Índia).


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O bando armado de Urbano Bettencourt

Manuel Urbano Bettencourt Machado nasceu na ilha do Pico, em 1949 e participou na guerra da Guiné como alferes miliciano. O texto publicado em “Os Anos da Guerra”, era pelo menos ao tempo, inédito.

“Peito saliente barriga pra dentro, arma a tiracolo e aí vais tu arreado tão bom como os melhores ou não se dera o caso de teres nascido no mais ocidental banco de esperma da cristiana Europa Ocidental. Avanças quase sem sentir os pés contra o chão, importa manter o corpo em posição relativamente vertical para não dares pública parte de fraco, o que tens a fazer é caminhar o mais rectilineamente possível em direcção à luz outra vez a luz! que atira em todos os sentidos as sombras disformes dos soldados amontoados em redor das caixas com as rações de combate. Agora jogas à caridade alheia e aproveitas para testar a tua popularidade junto da magalagem «há porí uma ração a mais pô cabrão do alferes?» assim mesmo. Antecipas-te ao que eles poderão pensar de ti, cortas-lhes o jogo antes que eles o esbocem e a coisa acaba por funcionar um bocado só o suficiente para manter fechado durante as próximas horas o circuito entre ti e eles, para as outras logo se verá. Quatro ou cinco rações avançam para ti, «táqui mê alferes», confessa que não esperavas tantas «ena pá só quero uma». E a sede? não te esqueças nem menosprezes o brasido que começa a atear-se dentro de ti vais precisar de líquidos e não te bastará a gloriosa e heróica água dos filtros coloniais”

“- Meu alferes, pelotão pronto”.

Aí está, agora entras tu em acção. Nada de atropelos. Pões-te em sentido voltado para o pelotão, o Soares lá se baldou novamente, um passo em frente meia volta à direita bates a bruta pala da ordem e zás:

- Mecapitão dál icença?”


José Luís Farinha, nascido em Luanda em 1947, esteve entre 1970 e 1973 em Mansoa como alferes miliciano. É dele que se publicará um texto retirado de “De camuflado no peito e na cabeça” de 1968, e intitulado Carta número cento e dezassete”.

(Continua)

Privilegiava-se tudo quanto fosse táctica, logo na recruta: mata, progressões cautelosas, contornos de clareiras, saber olhar o piso, estimar as probabilidades de uma emboscada. Para minha surpresa, aqueles jovens, no final de 1970, não menosprezavam os cuidados dentro da floresta. Eu vinha cheio de verdor, conversava acaloradamente sobre as nossas responsabilidades em defendermos a vida humana, a dos que estavam ao nosso cuidado, por isso é a formação de um oficial é um momento de grande importância. Fiz estimas e de vez em quando encontro os meus instruendos. Por exemplo, o que está sentado no canto inferior esquerdo, é o soldado-cadete Nabais que vim a encontrar como director dos Moinhos de Maré, no Seixal. Ele iniciava com o pé direito a sua carreira brilhante na museologia, um grupo estupefacto assistiu ao nosso abraço e às explicações do director a este “nosso tenente”.

Foto e legenda: © Mário Beja Santos (2009). Direitos reservados.

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Nota de CV:

Vd. último poste de 7 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5604: Notas de leitura (49): Os Anos da Guerra, de João de Melo (3): Competência e Destino Guiné (Beja Santos)

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