sábado, 5 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5412: Blogoterapia (134): Por mor deste espaço de inclusão e de liberdade (António Martins de Matos / Luís Graça)

Cópia de convite das editoreas Livros d' Hoje e Bertrand para a apresentação do livro Em Nome da Pátria, de João José Brandão Ferreira, dia 9 de Dezembro, às 18h,  no Comando do Pessoal do Exército (antigo Quartel General), Praça da República, Porto (com parque privato gratuito).  Apresentação a cargo do Dr. Miguel de Lucena e Corte Real.  ´



1. Mensagem do António Martins de Matos, ex-Ten Pilav, Bissalanca, BA 12, 1972/74 (hoje Ten Gen Pilav Ref) (*)

Caro amigo Luís Graça

A minha ideia inicial era apenas a de escrever um pequeno comentário. Mas as palavras são como as cerejas e quando dei por mim já tinha um texto demasiado grande. As minhas desculpas.

Não consigo imaginar o trabalho necessário para manter um blogue desta dimensão, sempre activo e actual. Todos nós, os 400 atabancados, temos de reconhecer que só graças aos esforços do Luís Graça, Carlos Vinhal e restante equipa é que vamos tendo o prazer de, dia a dia, recordar, discutir, reviver memórias passadas numa terra que, não fosse a guerra, bem bonita era.

Certamente que, se os editores ainda estivessem na tropa, já tinham sido averbados com uma folha de papel das que normalmente terminam dizendo: “.....em reconhecimento pelos serviços prestados......”.

Mas como nem tudo o que luz é ouro, também aqui a minha missiva não se confina apenas aos elogios, também tenho uma critica a fazer, que isto de críticas mais vale que sejam postas logo a arejar em vez de ficarem, como se costuma dizer, escondidas e a aboborar.

Não é que a crítica tenha uma importância por ai além mas, como não pertenço ao brilhante grupo dos responsáveis pelo BPN e não tenho negócios na área do ferro velho, tenho que me entreter com alguma coisa.

E para que tudo seja transparente e não vá amanhã alguém vir a exercer vil chantagem por causa das minhas atitudes, pretendendo incriminar-me aos olhos do DIAP com umas eventuais escutas onde seja referido o meu nome, quero desde já confessar que até hoje apenas tive um problema com a Justiça quando, em Maio de 1973 e em colaboração com um amigo meu, estragámos 5 (cinco) gordas e belas Berliets que estavam estacionadas na estrada Binta-Guidage. (**)

E para que também não fiquem algumas dúvidas malévolas e insidiosas sobre o tema, quero informar os mais cépticos que este assunto já foi debatido em sede própria, tendo acabado por ser arquivado, muito antes da Justiça se ter tornado nesta máquina justa mas inflexível, que perdoa aos arguidos, sejam eles inocentes ou culpados, sejam eles grandes e poderosos ou grandes e poderosos.

Por outro lado também já constatei que quando no blogue aparecem “ataques imediatos”, daqueles que chegam de repente, tipo morteirada, existe logo pessoal a sair a terreiro e a executar as contramedidas apropriadas (como no caso do Lobo Antunes que ainda vai levar muito naquela cabeça).

Deixando estes casos à vigilância do Matos, Maia, Mexia e Associados, o que poderá trazer alguns problemas dado que volta e meia pegam-se, (aliás ultimamente todos se pegam com todos, deve ser do aquecimento global) permitam-me ser mais subtil e alertar-vos para insinuações que, devagar devagarinho, nos vão corroendo.

A minha crítica: Posso estar enganado e o defeito até pode ser meu, mas parece-me que de algum tempo a esta parte o blogue se tem desviado um pouco da postura e isenção que até aqui vinha evidenciando. Para que, num futuro próximo, possa ser referenciado como um local de busca dos que querem fazer a História de Portugal, algo tem que mudar!

Passo a explicar:

Como já alguém disse anteriormente, uma coisa são os comentários publicados em reacção aos postes, cada um por si e pela sua cabeça, uns “esquerdinos”, outros “direitinos”, apoiando, rejeitando, complicando, dizendo muito pouco ou mesmo nada, um ou outro a propósito e com interesse, alguns bem malcriados e ofensivos, a maioria de uma nulidade confrangedora.

Outra coisa é a publicação no blogue de textos que, quando não se reportam a factos ocorridos mas apenas a meras opiniões, deveriam manter um certo equilíbrio nas ideias, numa base de entendimento mútuo e onde deveria imperar um bom senso do autor ou, em última instância, dos editores.

Uma coisa são os postes, outra coisa são os comentários aos mesmos.

Porque digo isto?

Tenho verificado o forte apoio dado pelo pessoal da tabanca a eventos referentes à passagem dos portugueses por África, nomeadamente em alguns livros dos nossos bloguistas, como a “Retirada do Guileje”, do Maj Coutinho e Lima, ou “As lágrimas de Aquiles”, de José Manuel Saraiva, vindo agora a acontecer o mesmo a propósito do livro do Manuel Rebocho, “Elites Militares e a Guerra de África”.

Igualmente tenho visto o apoio dado a filmes como os da Diana Andringa ou do José Manuel Saraiva.

Não ponho em causa esses apoios mas preciso de respostas para as seguinte questões:

Por que razão os comentadores encartados e de serviço tratam os livros de autores de esquerda como obras literárias e os de direita como lixo?

O livro do Manuel Rebocho é tendencioso, falacioso e outros adjectivos terminados em OSO que, por pudor, não quero escrever.

Não resisto a anotar como uma das muitas cerejas do bolo, a conclusão do autor ao referir-se a Guileje e à Cav 8350/72, de que “quem iniciou as hostilidades no extremo sul da Guiné foi o Estado Maior Português e não a guerrilha, cuja resposta um Furriel previu e o Estado Maior não" (página 371). E a sua conclusão de que “foi a resposta que o Estado Maior não previu, nem soube contrariar.... estando os Oficiais milicianos bem acima deles”. [página 372].

Nem o mais pintado se lembraria de tamanhos disparates.

E o que dizem os nossos comentadores literários? SIM, NÃO, TALVEZ, NADA? Nada, mesmo nada, nem um comentário, ainda que pequenino? Vá lá, atrevam-se!

Já sobre o livro do Ten Cor Brandão Ferreira, “Em nome da Pátria”, nesse já estamos autorizados a malhar.... Como é?

Só os livros e os filmes dos autores esquerdinos é que têm valor, se for um livro de autor de direita é para deitar abaixo? E se não estiver em linha com as nossas convicções, estamos autorizados a enxovalhá-lo?
E as ideias, se forem conforme as minhas são verdades inquestionáveis, caso contrário são “mistificações”?

E com que direito se afirma em “poste oficial” e sem mais justificações que o autor é “ressabiado e atormentado” (poste 5215). Será por ser “Mestre em Estratégia” pelo ISCSP, ou por ser sócio fundador da associação Cristóvão Colon? Ou por não ser esquerdista? Será por ter feito uma crítica demolidora ao filme da Diana Andringa, “As duas faces da guerra”?.

E a Diana Andringa já é um exemplo de isenção ao apresentar o referido filme? E o José Manuel Saraiva, é isento ao apresentar o filme “De Guileje a Gadamael “ onde deitou para o lixo as entrevistas que iam contra as suas “ideias”?

Na dicotomia bestial/besta, porque razão os que enxovalharam o AB [Almeida Bruno] (militar mais valente que a maioria de todos nós, possuidor da mais alta condecoração nacional), pertencem à primeira categoria enquanto que o Constantino foi atacado e insultado dentro e fora do blogue, só porque o que disse ia contra a “verdade de outros”?

E o Prof. Adriano Moreira, tanto é um iluminado como um senil,  conforme apoia o fulano A ou B?

Em que ficamos? Somos isentos ou tendenciosos?

Eu sei que o livro do Ten Cor Brandão Ferreira é grande e (muito, muito) maçudo mas não precisam de o ler todo, podem retirar quatro ou cinco capítulos sem que a essência das ideias se perca. Se são mesmo preguiçosos fiquem-se apenas pelo capítulos 9 e 10, “Porque desistimos da guerra” e as “Conclusões”.

O autor debate alguns temas, os tais que normalmente são tidos como verdades imutáveis, tentando desmontá-los. (reparem que eu disse tentando, cabe-nos o papel de validar ou rejeitar).

Leiam-nos, aceitem o que for de aceitar e critiquem o que acharem estar errado mas não embarquem na demagogia dos comentadores de serviço.
Pensem com a vossa cabeça, sem ideias preconcebidas.
Estão lá muitas respostas (e questões) a temas e dúvidas abordados no blogue, a saber:

1. - A guerra era insustentável e impedia o desenvolvimento do país;
2. - Portugal orgulhosamente só no mundo... ;
3. - A guerra durava há muito tempo;
4. - Portugal ia perder a guerra militarmente;
5. - Portugal devia ter descolonizado mais cedo;
6. - A população dos territórios ultramarinos queria ser independente;
7. - A guerra era injusta e actuávamos à revelia do Direito Internacional;
8. - A solução para a guerra era política e não militar.

Já enviei ao blogue um documento que dá uma pequena contribuição para a discussão do tema 1.
Alguém quer analisar os restantes? Como diz o António Graça de Abreu, “O que importa salientar é a verdade histórica”. Já somos dois.

Segundo o Luís Graça, pai do blogue, a quem eu presto o meu respeito e admiração pelo trabalho desenvolvido, a ideia inicial era juntar todos os portugueses, todos os guinéus, todos os que algum dia pisaram terras da Guiné, reencontrando-se, dialogando e aceitando as “Regras de Convívio” por si definidas e por nós aceites.

As histórias de cada um por terras da Guiné tem sido o fio condutor que nos tem deixado presos ao computador. E nem precisam de ser de guerra, ou de tiros, ou de rambos; vejam o poste 5346 do Manuel Amaro, tão simples e tão esclarecedor do muito que andámos a fazer por África.

E se as nossas histórias estiverem a acabar (o que não acredito) ainda faltam as histórias dos guinéus, o que pensavam dos portugas, como encaravam a guerra, o que sofreram, como se relacionavam com a população, como viram a independência ... .

No que respeita às visões de direita e de esquerda, também não vejo que haja qualquer problema desde que seja mantida uma postura isenta e em busca da verdade.

Do resto, dos comentários da treta e dos comentários aos comentários da treta confesso já estar farto.
Estamos a ir na direcção correcta, ou algo vai mal no reino da Dinamarca?

Peço desculpa se estou a ser demasiado pessimista, mas espero merecer o epíteto que se costuma utilizar na tropa: Clarinho clarinho para militar.

Um abraço

António Martins de Matos

 2. Comentário de L.G.:

Mandei-te ontem uma primeira resposta, 6ª feira, por volta das 20h, no intervalo de uma aula, para te dizer que tinha lido com agrado a  tua mensagem, e te reiterar o que tenho sempre dito, aqui, no blogue, que aprecio a verdade e a frontalidade dos amigos e camaradas da Guiné (ou dos camaradas e amigos da Guiné, que a ordem dos factores é arbitária). Mas só agora, sábado à noite, regressado a Lisboa, é que  tenho tempo para alinhavar mais alguns ideias sugeridas pelo  teu texto que é de apoio e de crítica, ao mesmo tempo, à 'orientação editorial'  do blogue.

Agradeço-te em meu nome e sobretudo em nome dos restantes editores os elogios que nos fazes. Sem eles, co-editores,  já há muito tinha fechado para obras. A verdade é que o blogue cresceu de tal maneira, que corre o risco de se tornar uma instituição. Ora, não queremos institucionalizar o blogue. Eu, pelo menos - falando em termos estrictamente pessoais -  não tenho a veleidade de querer que ele se transforme numa espécie de extensão do Arquivo Histórico-Ultramarino. Muito menos quero um blogue sobre a história politicamente correcta da guerra colonial. E muito menos ainda quero um blogue ideologicamente alinhado...   Definitivamente, no que me toca, também não quero escrever nem reescrever a História de Portugal. Não é o meu ofício nem tenho costas para arcar com esse pesado fardo.  Quando muito, interesso-me pela "petite histoire" da guerra colonial na Guiné (1963/74). Agora, não posso impedir ninguém de o fazer, de pensar a história deste país em termos macro, de ter pensamento estratégico sobre este país, o seu passado, o seu presente e o seu futuro,  etc.... Não sou general, nem quero fazer doutrina estratégica, como o Rebocho. Este blogue não é sobre estratégia, que é a arte do general (etimologicamente falando).

Agora aceito o teu repto e o teu apelo para, de novo,  recentrarmos a nossa atenção naquilo que é essencial e que é a missão original do blogue: contarmos as nossas histórias (que estão longe, de facto, de estar esgotadas)...

A minha utopia foi, é e continua a ser  apenas a de tentar (re)encontrar  e agrupar, sob uma imaginária Tabanca Grande, amigos e camaradas da Guiné. Não lhes pergunto o que são ou foram. Interessa-me apenas saber que temos como maior denominador comum a experiência de (ou a relação com) a guerra colonial (ou a guerra do ultramar ou a luta de lilbertação na Guiné, como queiras) entre 1963 e 1974. 

Vamos agora às tuas críticas, às quais não vou responder em detalhe. Não sou nem quero ser  advogado de defesa em causa própria. Posso até concordar com quase tudo o que dizes, excepto uma: a referência aos "comentadores de serviço"... e a um hipotético grupo de combate que estaria de piquete ou de intervenção, sempre pronto para a porrada....

Não há comentadores de serviço, nem comentadores encartados, não há críticos literários,  há apenas membros do blogue que são mais proactivos do que outros... Reconheço que neste domínio (recensão de livros,  notas de leitura...) temos um leque de colaboradores limitado... Mas se me mandares um texto sobre o livro do Rebocho, ou do Brandão Ferreira, ou de outro autor qualquer - desde que a temática se centre na guerra colonial, e tudo o que lhe está a montante ou a jusante - , eu publico-o.  Como tenho publicado os teus textos anteriores (*).

Reconheço que estamos inteiramente dependentes do mercado (editorial). Publicamos o que nos chega, publicamos o que nos mandam (os membros do blogue e outros). Não há, asseguro-te, nenhum grupo concertado para defender esta ou aquela posição (político-ideológica, literária, filosófica, estética, moral...). 

Claro que apoiamos os membros do nosso blogue que têm publicado livro - seja o António Graça de Abreu, o Beja Santos, o Coutinho e Lima, o Traquina,  o Rei, o Jero, o Branquinho, o Rebocho,  o Maia... ou o António Martins de Matos (se vier a ser autor de uma publicação)... Mas o apoiar não significa concordar, dar o aval, legitimar... Também não significa diabolizar ninguém.  E se há camaradas nossos que o fazem, é lamentável. O blogue é (ou deve ser) também uma escola de virtude(s). Vou/vamos estar mais atento(s) a eventuais excessos de linguagem que desvirtuam o espírito e a forma do nosso "livro de estilo" (que está em permanente construção).

Reafirmo o princípio da não-existência, a priori, de critérios ideológicos na admissão ao blogue e na publicação de conteúdos, desde que respeitado o essencial das nossas "regras de convívio"... Também não penso que o blogue esteja dividido como o parlamento em alas esquerda, direita e centro. O Brandão, o Saraiva, o Bernardo, etc., não são membros do nosso blogue... É natural que não mereçam a mesma atenção, pelo menos por parte dos editores (que de resto não são bloguistas profissionais nem tem todo o tempo para blogar e a editar as blogarias dos outros). Mas tu ou outro camarada ou eu podemos escrever, a título individual,  sobre os seus livros da guerra colonial e temas correlacionados... Ninguém faz censura a ninguém, desde que o espírito do nosso blogue seja respeitado... Agora, admito que, eu ou os mesmos co-editores, possa(mos) "pecar"  por defeito ou omissão: não podemos andar a pesar ao quilo ou medir ao metro os postes - e muito menos os comentários - dos tais "esquerdinos e direitinos" (a expressão é tua, tem direitos de autor, merece ser patenteada...). Como ninguém usa adesivo na testa, ou anda com crachá,  eu/nós nunca sabería(mos) separá-los, apartá-los, discriminá-los... Eu, pessoalmente, mesmo que o soubesse, nunca o faria. Por defeito e feitio, são a favor da inclusão.

Quanto às tuas reservas em relação ao livro do Rebocho (que estou a ler), manda-as por escrito... O blogue não tem nem nunca terá "posição oficial" sobre as teses do Rebocho, como não tem nem nunca teve sobre o depoimento do Coutinho e Lima. Os textos,publicados no blogue, são assinados e, como tal, são da exclusiva e única responsabilidade dos seus autores...  Por exemplo, vou publicar a crítica da Cor Art Ref e antigo professor da Academia Militar Morais da Silva,  à tese de doutoramento do Rebocho (agora publicada em livro)... Isso não significa tomar partido a favor ou contra...

Em resumo, limitamos a ser um espaço aberto e plural, onde também cabem as críticas (positivas e negativas) aos livros (mas também aos filmes, programas de televisão, etc.) que saem sobre a guerra colonial (na Guiné).  Naturalmente que terei muito gosto em publicar a tua leitura do livro do Rebocho  ou do Brandão Ferreira, se ma mandares... Ou sobre o filme da Diana Andringa e do Flora Gomes ("As duas faces da guerra").

Uma nota final sobre os comentários e os comentários aos comentários: ao aceitar a regra da não- moderação, corro riscos, alguns dos quais tu apontas, e bem,  no teu texto... Mas a liberdade é isso, a vida é isso, meu caro António: se não corressemos riscos, eu nunca aprenderia a andar nem tu a voar...

Espero que os amigos e camaradas da Guiné entendam e acolham bem esta nossa agradável e civilizada troca de ideias... Para que o mundo continue a ser... pequeno e o nosso blogue a ser... grande! Sobretudo para que a nossa Tabanca continue a ser um espaço de INCLUSÃO e de LIBERDADE... Luís Graça, editor.

3. Comentários que merecem subir da cave ("downstairs") para o 1º andar ("upstairs"):

31. Do António Graça de Abreu:

O raciocínio estruturado do António Martins de Matos, a resposta serena do Luís Graça, constituem matéria dourada para pensarmos todos melhor.

"Esquerdinos, direitinos". Ora todos sabemos que no meio é que está a virtude. A equidistância desapaixonada é uma virtude, difícil. Por isso, ao fim destes anos todos, ainda há camaradas prontos a descavilhar a granada, preparados para disparar a G 3, tiro a tiro, ou de rajada.

Há sempre gente pequena, também no blogue, que, para mostrar importância, passa a vida a pôr-se em bicos de pés, às vezes até sobem para um banco (não é o BPN, é mesmo daqueles bancos de madeira...) e gritam "Oiçam-me, eu tenho razão." Não têm razão nenhuma e acabam por cair do banco. Ah, mas como as pessoas gostam de subir, de subir para um poleiro.

"Esquerdino, direitino." No que a mim diz respeito, creio que sei do que falo. Em 1977, ainda maoísta e esquerdista, fui parar à China, onde aprendi na estadia até 1983 que tanta gente de esquerda, quando detém o poder,  é na realidade de uma inominável direita. Às vezes também acontece o contrário, mas é mais raro.

No nosso blogue coabitam naturalmente camaradas de todas as tonalidades. Muitos ainda com a velha revolta, com a pedra no sapato, ou melhor na bota da tropa. Porque não tiram a pedra da bota e não a atiram para o fundo de um poço, para o leito de um rio?

Temos sessenta, quase setenta anos. Vêm aí as doenças e o inevitável fechar de olhos, a viagem final.

Porque não deixar aos nossos filhos e aos nossos netos a imagem, a memória de um pai e de um avô que participou um dia numa guerra cruel, como todas as guerras, mas saíu por bem desses dois anos da sua juventude? E hoje, reconciliado com Deus e com os homens, quer simplesmente viver, exercitar a mente, encontrar os amigos,(vivam os camaradas da tabanca de Matosinhos!), de contar estórias, fruir o que de bom a vida (e Portugal) ainda tem para nos dar.

Já agora, continuar a amar. E talvez sonhar ainda com as bajudas negras da Guiné que nos passaram por baixo, por cima do corpo varonil e fogoso nos nossos vinte anos sofridos e valentes.

Estamos vivos, a guerra da Guiné somos nós.

Um abraço aos camaradas de luta, aos amigos, aos companheiros de guerra.

António Graça de Abreu


3.2. Do António Ribeiro:

Também estive na Guiné, na guerra. Entre Fev 67 e Fev 69 com os obuses 8,8, 10,5 e 14 cm passei por Cufar, Gadamael, Guileje, Mejo (dez meses), Catió, Buba Aldeia Formosa, Tite, Xime, etc.

Ao escrever sobre aquele tempo será que tenho o conhecimento e visão das coisas como tenho hoje? Certamente que não. E todos os que escrevem ou emitem opiniões sobre a guerra, sobre aquela guerra? Certamente que não. Hoje é consensual que a guerra na Guiné era uma questão arrumada, isto é, mais mês menos mês Portugal perdia a guerra. Foi, na minha opinião, claro está, que foi o 25 de Abril que "salvou" Portugal de uma derrota militar "vergonhosa". Sabíamos, a grande maioria dos que lá estivemos disso? Seriam muito poucos, à época, os que previam esse inevitável desfecho. Quantos de nós conheciam "vale mais perder militarmente a guerra na Guiné do que negociar com terrorista"s, como hoje se sabe ter sido afirmado por Marcelo Caetano?.

Creio que o blogue tem sido muito bem dirigido. Agradeço aos seus criadores a possibilidade de me darem o privilégio de "revisitar" aqueles dolorosos tempos que vão desaparendo de cada um de nós à medida que vamos morrendo.

Quanto a comentários mais ou menos "correctos", defendendo mais esta ou aquela posição sobre a guerra, importa sublinhar que o stress de guerra existe, que as doenças com a idade se adensam, etc. Os que menos foram atinjidos fisica e psicologicamente pela guerra ajudariam muito os camaradas que também por lá passaram procurarem entendê-los. Ser de esquerda ou de direita não há mal nisso. Infelizmente naqueles tempos não era possível manifestar qualquer simpatia pela esquerda. Conhecemos hoje o que acontecia àqueles a quem o regime suspeitava terem ideais de esquerda, isto é, bastava a suspeita mesmo que infundadada para serem presos, diferentemente do que acontecia a quem manifestava apoio ao regime.

E hoje qual é a moda?. Alguém que se dê ao trabalho e ao estudo do que é ministrado nas nossas universidades e logo vê. Valia a pena uma tese de doutoramento sobre este tema. Pela comunicação social que hoje temos já ajuda a conhecer alguma coisa.

Por isso entendo que o blogue deva continuar como até aqui. Cada um sem necessidade de recorrer ao insulto ou ao ataque pessoal que diga sobre a guerra na Guiné o que bem entender.

Obrigado.Um abraço a todos. Aos que escrevem e aos que não escrevem e que também lá passaram as passas do Algarve.

António Ribeiro

(ex-Furriel Mil)

 __________

Notas de L.G.:


(*) Vd. postes do António Martins de Matos:

1 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4271: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (10): Respondendo ao João Seabra (António Martins de Matos)

25 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4077: FAP (19): Efeméride: há 36 anos sob os céus de Guileje 'Batata' procura e localiza 'Kurika' (António Martins de Matos)

 11 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4010: FAP (15): Correio com antenas... (António Martins de Matos, ex-Ten Pilav, BA12, Bissalanca, 1972/74)

11 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3872: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (21): Resposta de António Martins de Matos a Nuno Rubim

31 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3825: FAP (2): Em cerca de 60 Strelas disparados houve 5 baixas (António Martins de Matos)

23 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P3783: FAP (1): A diferença entre o desastre e a segurança das tropas terrestres (António Martins de Matos, Ten Gen Pilav Res)


17 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3752: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (13): A missão de apoio aéreo de 21 de Maio de 1973 (António Martins Matos)



(**)  Referência, creio que irónica, ao bombardeamento levado a cabo pela nossa aviação das viaturas, abandonadas pelas NT,  carregadas  de abastecimentos com  destino a Guidaje, depois de violenta emboscada, a 8 de Maio, de coluna logística saída de Farim.




Guiné 63/74 - P5411: Memória dos lugares (59): Fotos de Catió e Priame II (Benito Neves)

1. O nosso Camarada Victor Condeço, solicitou ao Benito Neves, que foi Fur Mil Atirador da CCAV 1484 (1965/67) (Nhacra e intervenção ao Sector de Catió de 08JUN66 a finais de JUL67), que nos permitisse publicar uma série de 28 fotografias do seu álbum de memórias, belíssimas e que detêm excelente qualidade e interesse pelos motivos retratados;

2. No poste P5366 publicamos a primeira série dessas estimadas e bem conservadas fotos, num total de 9 peças, e hoje, com os nossos melhores agradecimentos e cumprimentos ao Condeço e ao Benito, seguem-se mais 10 dessas invulgares fotografias:















Foto 2: Catió 1967- Construção de morança em Priame, colocação do colmo na cobertura e Foto 3: Catió 1967- Moranças da tabanca de Priame.















Foto 10: Catió 1967- Lagoa entre Catió e Priame e F 11: Catió 1967- Lagoa entre Catió e Priame.















Foto 12: Catió 1967- Bolanha e mata da zona da lagoa entre Catió e Priame e Foto 17: Catió 1967- Zona da lagoa entre Catió e Priame.
























Foto 20: Catió 1967- Vista aérea de tabanca na região de Catió e Foto 21: Catió 1967- Vista aérea de tabanca na região de Catió.














Foto 22: Catió 1967- Vista aérea na região de Catió e Foto 23: Catió 1967- Vista aérea na região de Catió.

Benito Neves
Fur Mil At CCAV 1484

Fotos e legendas: Benito Neves (2009). Direitos reservados.
__________
Nota de MR:

Vd. poste anterior desta série em:

Guiné 63/74 - P5410: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (7): O périplo da 816 em dois anos de Guiné - Olossato

1. Mensagem de Rui Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67, com data de 27 de Novembro de 2009:

Caros Luís, Briote, Vinhal e M. Ribeiro:

Recebam um grande abraço e os maiores votos de saúde nas V.as pessoas.
Envio em anexo mais um excerto das minhas memórias que começou com a descrição de Bissorã (post 5156) continua agora com o Olossato e vai terminar com Mansoa.
Em anexo vai só metade do trabalho (parte I) pois não coube tudo. Envio de seguida a parte II noutro mail e que completa aquela.

Saudações e passem bem.
Rui Silva


BISSORÃ – OLOSSATO – MANSOA

O périplo da 816 em 2 anos de guerrilha na Guiné Portuguesa

OLOSSATO (II)
27 de Setembro de 1965 a 31 de Julho de 1966


Olossato, Olossato, onde tudo é muito chato e a vida não dá prazer…
Companhia, Companhia, quer de noite quer de dia há sempre muito que fazer.


Este um trecho do verso à Companhia feito pelo “poeta” e “baterista” o meu amigo Belchior (Furriel da 816), verso que passou a funcionar quase como o Hino da 816 -


Deixamos então Bissorã e rumamos a oriente para Olossato (~15 Quilómetros).

Foto 1 > Estrada Bissorã-Olossato

Era assim o Olossato

Até à ponte de Maqué, ponte sobre um rio sub-afluente do Cachéu (pontão sistematicamente destruído pelo inimigo mais tarde), picamos a estrada. Tínhamos passado a “carreira de tiro” sem qualquer, embora sempre esperado, contacto com o inimigo. Na ponte já lá estavam os nossos camaradas e já por muitos de nós conhecidos, os velhinhos da 566 que então tinham picado o lanço subsequente (ponte de Maqué-Olossato). Assim, como a estrada dali para a frente estava, em princípio, desimpedida de minas, as viaturas aceleraram até Olossato.

Aparecem então do lado esquerdo algumas casas de alvenaria/tijolo, a do Chefe de Posto de Olossato e ao mesmo tempo “Posto Administrativo” e mais duas ou três casas pequenas. Logo a seguir, as primeiras moranças, também do lado esquerdo, já que do lado direito e um pouco dentro ficava a pista da aviação.

E eis que surge a fortificação a cortar literalmente a estrada Bissorã-Farim, feita principalmente em troncos de palmeira a que lhe podemos chamar o aquartelamento do Olossato. Uma “Porta d’Armas” feita em tábuas e troncos de palmeiras também e um grande emblema da 566 pintado em chapa de bidão (esta dava para tudo) sobre a entrada e em posição altaneira. Lá estava o “cavalo-de-frisa”. Quadro a fazer-me lembrar os filmes de cow-boys no western americano.

Foto 2 > Sentinela na Porta d’Armas no aquartelamento do Olossato

Olossato já de si uma terra pequena, foi debandada mal começou a guerra. O pessoal fugiu para o mato. Olossato desertou em termos de população indígena local. A que lá vivia agora tinha sido recolhida no mato pela 566. Portanto ao contrário de Bissorã o pessoal de Olossato estava em empatia com a tropa.

Olossato era assim uma pequena e simpática povoação. Embora estivéssemos ali por causa da guerra e na guerra, Olossato e a sua gente, na altura, por certo enraizou admiração e simpatia em todos nós da 816. A pequena pista de aviação, aí com 400 a 500 metros de comprimento, apenas permitia a aterragem de pequenos aparelhos, mormente avionetas, para não falar dos helicópteros, que apenas precisavam de uma área restrita para pousar, praticamente a área da hélice, veja-se as condições no mato ou nas bolanhas. A pista ficava do lado sul do quartel. Flanqueava a cerca de 100 metros, ao lado, a estrada para Bissorã. Do lado oposto da pista, relativamente a esta estrada, estavam então as tabancas do pessoal indígena que se estendiam em todo o comprimento do quartel e alargava-se umas dezenas de metros para norte.

O quartel, improvisado como muitos para aquela guerra, abrangia, e tal como em Bissorã e por certo em todas as outras povoações com tropa, a zona, ou parte desta, das casas residenciais, casas feitas em alvenaria e com todos os requisitos de uma casa normal e em clima tropical. Estas eram as casas dos colonos brancos, recentemente abandonadas por estes para fugirem à guerra. Brancos (incluindo libaneses) a residir no Olossato não havia. O quartel era composto pela casa dos Oficiais que ficava junto da entrada nascente do quartel, virada a Farim, pela casa dos Sargentos exactamente em frente da casa dos Oficiais e do outro lado da estrada, estrada esta que dividia o quartel a meio e que mais não era que a estrada que ligava, como já se disse, Bissorã a Farim. Dois cavalos-de-frisa (armação feita em caibros de madeira com arame farpado a envolvê-la em forma de novelo) tapavam a estrada, um do lado da saída para Bissorã – que era a entrada principal do quartel (Porta d’ Armas) e a poente - e outro do lado da saída nascente ou seja da saída para Farim. Ao lado da nossa casa, e o que em tempos terá sido um armazém, ficava a Cantina, muito espaçosa e agora muito bem arranjada. Contiguamente a esta e do lado de trás, relativamente à estrada, estava instalado o Posto de Rádio e o de Criptografia e numa outra dependência, também contígua, a Enfermaria. Mais adiante e ainda do mesmo lado, o grande barracão, e, o que permitia julgar ter sido uma serração ou afim, negócio que parecia ser dos mais explorados pelos colonos, que servia de caserna e onde se alojavam os cerca de 120 soldados da 816. Em frente a esta caserna um pequeno largo onde no meio, num canteiro redondo orlado a garrafas de cerveja vazias e de bocal enterrado, se destacava num alto mastro a bandeira portuguesa.

Foto 3 > Caserna dos soldados e do lado direito o mastro com a bandeira portuguesa

Logo a seguir ao barracão-caserna dos soldados, e ainda para poente, lado Bissorã, ficava então a cozinha e o refeitório dos soldados, instalações estas, construídas de forma artesanal mas bem ajeitada pela tropa e sempre em tábuas e troncos de palmeiras.

Foto 4 > Fazendo a sopa em cozinha de campanha

Foto 5 > O ritual diário: descasque das batatas

Logo a seguir e ainda voltada a poente, isto é para o lado de Bissorã, uma pequena barraca com a geradora eléctrica. Ainda antes da saída do quartel e agora do lado de Farim, entre a referida saída e a messe dos Sargentos, e do mesmo lado, ficava ainda a casa aonde estava instalada a Secretaria da 816 com o nosso Primeiro Rodrigues a fazer as contas auxiliado pelo Cabo “Boavista” sempre desenfiado por causa da bola, e o Primeiro sempre a perguntar por ele. Havia também uma vivenda, a única dentro do quartel, habitada por um civil (!): um velhote cabo-verdiano. Aquela ficava sensivelmente defronte da caserna dos soldados mas do outro lado da estrada portanto do lado da pista e envolta de grande folhagem de árvores e arbustos. Era difícil divisar a casa naquele emaranhado mas bem arranjado conjunto de plantas e arbustos. Ninguém simpatizava com ele. Pareceu-me que os cabo-verdianos em geral usufruíam de uma vida mais ou menos privilegiada na Guiné; também eram colonizadores.

O cabo-verdiano, nosso vizinho, saía de bicicleta muitas vezes para fora do quartel, para o lado de Bissorã - o lado mais pacífico nos primeiros quilómetros -, se bem que, era, ao que se dizia, para tratar das suas plantações, mormente de ananás, o certo é que ele podia muito bem ter contactos com elementos terroristas, julgávamos nós. Interrogávamo-nos assim, de que lado estaria ele. No entanto como o próprio Capitão, parecia (?), não se perturbar com tal personagem não éramos nós a perturbarmo-nos.

Finalmente, logo a seguir à casa dos Oficiais e ficando assim no limite do quartel, do lado nascente, ou seja da saída para Farim, o pequeno campo da bola e logo ao pé e já por trás da dita casa, o campo de Vólei, um e outro arranjados para o efeito.

Foto 6 > Campo de futebol

Foto 7 > Equipa de futebol da 816

Foto 8 > Jogando voleibol

Tudo isto fazia parte do nosso aquartelamento, que era cercado por uma sebe composta por duas fiadas de troncos de palmeiras que formavam, por assim dizer, um quadrado fortificando o quartel. Estas fiadas eram mais ou menos da altura de um homem. Nos quatro vértices do quadrado assim amuralhado, destacavam-se e num plano estrategicamente altaneiro, outros tantos abrigos cobertos, onde estavam instaladas, em cada um deles, uma metralhadora. Estes abrigos eram de formato circular e tinham uma cobertura também em chapa e terra de barro a encher, e à prova de tiro e de granadas de todos os tipos.

Eram os abrigos dos sentinelas.

Foto 9 > Abrigo dos sentinelas

Ao correr dos lados do dito quadrado e regularmente situados, havia abrigos, também cobertos, e que serviam às Secções de Atiradores em caso de ataque. Os abrigos nos vértices, que estavam equipados de metralhadora, funcionavam também como postos de sentinela de dia e de noite, isto é 24 horas por dia. Estávamos assim com boas condições de defesa em caso de “visita” inimiga. Ainda e à volta de trinta metros à frente e para o exterior, da já referida sebe de palmeiras, havia ainda outra cêrca, esta de arame farpado sustentada por caibros ao alto, colocados em espaços regulares, e ainda outra mais adiante esta mais aligeirada. As duas a contornar completamente o aquartelamento, Portanto duas cercas de arame farpado eram o primeiro obstáculo para o inimigo, se, porventura, o que não se acreditava, quisesse aproximar-se muito do quartel.

Já do lado de fora do quartel, e do lado de Bissorã um pouco adiante ficava a casa do Chefe de Posto que não se livrava do olhar desconfiado da malta, ou por outra ele é que tinha um ar de desconfiado, e, ao lado daquela, uma outra, que mais tarde o Capitão utilizaria para escola das crianças indígenas.

Foto 10 > Casa do Chefe de Posto/Posto Administrativo

Do lado oposto, passando a estrada, e entre esta e a pista de aviação, estava o pessoal da Artilharia reforçado por uma Secção, à noite, da Companhia ali aquartelada, acomodado também num grande barracão, outrora instalação civil. Cá fora, dois potentes obuses, um de cada lado do barracão, apontados para as zonas de Morés e Iracunda com a pista de entremeio. Uma vez por outra faziam fogo de flagelação para esses lados. Os Obuses ficavam assim virados para a pista e como o inimigo privilegiava este lado os obuses também faziam tiro directo… às vezes.

E ainda há a história do porco que posto em pânico, ao fugir esticava a corda atada a uma pata e accionava um Obus. Granada endereçada para as bandas de Morés.

Foto 11 > Obús no Olossato

Foto 12 > Obuses no Olossato e paliçada de defesa

Saindo agora do quartel na estrada para Farim encontrávamos mais adiante (~1 Km) a ponte sobre o rio Olossato onde o inimigo mantinha vigilância e com sentinela principalmente à noite. Houve menino que chegou a ir para lá pescar mas não tardou que entrasse a passo acelerado no quartel, sem fôlego e jeito para dizer o que foi. Pressentiram que estavam a ser cercados. A jusante desta ponte e já para dentro da povoação do Olossato (o rio passava perto das moranças mais afastadas), construímos uma ponte em que os pilares sustentadores eram dois chassis de viaturas militares em sucata e o passadiço feito em travessas de madeira. Esta rudimentar ponte seria a porta do cavalo para as saídas da Companhia quando queria evitar a estrada para Farim. Servia também aos nativos por ali perto puderem cultivar do outro lado do rio. Esta terá sido a principal razão.

Foto 13 > Furrieis da 816 em traje domingueiro na ponte militar sobre o rio Olossato

Foto 14 > A Ponte… só a ponte

As suas gentes

No Olossato, o pessoal indígena andava à volta de 300 a 400 pessoas que se dividia principalmente em três etnias, das quais predominava a Mandinga, curiosa raça que, por conceitos religiosos, não bebe vinho nem come carne de porco. A população era da nossa confiança, pois inúmeras foram as provas de total e incondicional adesão à tropa e à causa desta. Assim, em Olossato, e ao contrário de Bissorã, estávamos bem acompanhados, pois não tínhamos ali inimigos. População indígena e a 816 viviam um clima de salutar amizade e cooperação.

Foto 15 > Mulheres do Olossato pelando o arroz

Olossato era na verdade uma pequena e simpática povoação bem no meio do Oio, que, creio, deixou algo gravado nos nossos corações. Gente pacata, ordeira, humilde e trabalhadora dava-nos um grande àvontade e segurança. Entre as figuras típicas do Olossato tínhamos o senhor Fodé, o Quebá, o Bacar - o grande Bacar -, o Timbrim, o Mamadú ou Jorge - este último o nome aportuguesado que o Luís José lhe deu e que o trouxe para a metrópole -, o Reguila, o Sana e o seu inseparável companheiro Abdul, as lavadeiras Cosa grande e a Cosa pequena, isto para falar na gente mais badalada e com história para contar.

O senhor Fodé era um negro, civil, muito corpulento. Parecia um gorila. Tinha um sorriso simpático (?) para com a malta e parecia homem de confiança. Era comerciante, cujo estabelecimento, modesto e rudimentar, ficava logo à saída do quartel na estrada para Farim e do lado esquerdo.

Julgo que no nosso tempo era o único comerciante do lado de Farim. Vendia ele ali diversas coisas, na maioria panos. Ali ele trabalhava, já que a sua casa ficava do outro lado do quartel ou seja na estrada para Bissorã. Tinha ele duas filhinhas que eram duas pretitas encantadoras. O vai-e-vem casa-loja, ele fazia-o através da estrada que atravessava o aquartelamento. Parece-me que era o único civil com “carta branca” para isso. Então ele passava perto da malta, sempre ao fim da tarde com as filhas ao colo, uma de cada lado.

Crianças de 1-2 anos anos que encantavam com os olhos negros e expressivos (os tais olhos negros da Guiné).

Do lado de Bissorã e já perto da “Porta d’Armas”, também havia 2 ou 3 estabelecimentos, rudimentares também a venderem panos e outras necessidades indígenas.

Para além da loja do senhor Fodé logo à saída para Farim já mais abaixo e já do lado direito ficava a casa do padeiro que nos fazia o pão, não sei se também para os civis.

Sempre que havia prisioneiros o senhor Fodé tomava parte activa nos interrogatórios, e de que maneira, pois muitas vezes vi ele empregar o seu volumoso físico para desgraça do interrogado. A missão dele contudo era mais de intérprete (descodificar o crioulo) e sempre dava um certo efeito psicológico por ser também preto. Confesso que me metia alguma impressão ver um preto a bater num irmão de cor e filho da mesma terra.

O Quebá era um preto da maior confiança, que colaborava e saía com a tropa para o mato. Tinha o seu camuflado e era também possuidor de uma G3. De semblante sereno e aparentando uma impressionável calma, o Quebá era, sobretudo, um indivíduo inteligente e de extrema utilidade à tropa. Movimentava-se muito bem no mato. Falava paulatinamente o seu fraco idioma português, mas fazia-se compreender muito bem, que, afinal de contas era o que importava, embora mais com gestos de que com palavras. Gostava de jogar à bola. Quando lhe cheirava ir haver jogo lá estava ele na primeira linha devidamente equipado.

O Bacar, o grande e inesquecível Bacar, que um dia, inexplicavelmente, olhando à sua rara esperteza, é vítima duma cilada inimiga que o fez cair de uma forma infantil. Homens como o Bacar era do que nós precisávamos. Astuto, corajoso e destemido, conhecedor do mato como das suas próprias mãos, deslocava-se neste como um animal felino. Parecia, que pelo cheiro ele pressentia o inimigo. O Bacar saía sempre com a tropa e, em muitas das vezes, como guia, e sempre à frente. Quando ele saía connosco parecia que levávamos outra alma. Tinha já colaborado com a 566 de maneira decisiva e depois ficou com a 816 com a promessa (julgo) do então Governador Schultz, de que viria para a metrópole acompanhando a Companhia 816 aquando do seu regresso. Já lhe tinham prometido vir para a metrópole com a 566, mas…

Muito perguntava ele, animado do maior entusiasmo, sobre o que era a vida, os costumes, as estradas, o movimento, etc., daquilo que para ele era um lindo sonho: a Metrópole. Perguntava muito sobre Lisboa onde porventura ele ficaria. Falávamos-lhe dos automóveis, dos carros eléctricos, do Tejo, do comboio que anda debaixo da terra, das coristas do Parque Mayer, dos arranha-céus, dos monumentos, etc. Tudo aquilo que há de grandioso e belo numa cidade como Lisboa. Os olhos dele, que naquela altura ainda viam, brilhavam buliçosamente ao ouvir as nossas histórias. O Bacar tinha 2 mulheres, à boa maneira mandinga e que até se davam muito bem, para grande admiração nossa. Outras gentes, outros costumes.

O Timbrim era uma figura típica também. Preto, de cabelo muito encarapinhado, mas já muito branco (o cabelo), e também falta dele, de pele muito enrugada, denunciadora de uma idade avançada, também saía para o mato acompanhando a tropa. Fazia-nos admirar a prontidão e a disposição para aquelas andanças, naquele admirável “avozinho”, de Mauser, bem segura nas muito engelhadas mãos.

Ele via mal ou que era mesmo cego de uma vista. O Timbrim, contudo, não regateava esforços ou sacrifícios e lá estava ele bem firme na coluna a aguardar ordem para avançar. O Timbrim tal como os outros auxiliares ou carregadores, também ganhava alguns pesos com as saídas, por certo poucos, mas que para aquela gente muito jeito fazia.

O Mamadú ou Morés, hoje Jorge, foi um miúdo que nos foi legado pela 566. Era por assim dizer o menino bonito da malta, principalmente de nós, os Furriéis, que era com quem ele convivia.

Foi apanhado algures na mata de Morés, daí também a sua alcunha, aquando de uma operação feita pela 566. Disse-se que era filho de um presumível terrorista e “bazookeiro”. Ao que parece, e aquando de uma fuga precipitada do pessoal terrorista, na dita operação, aquela inocente criança, alheio a tudo o que se passava e o porquê daquela bagunçada, ficou abandonada e então mão amiga e carinhosa trouxe-o para o Olossato. Aí e como não tinha quaisquer familiares ficou ao cuidado dos Furriéis, mais precisamente sob a custódia do Sargento Preto (Preto de seu nome) que muito o estimava e dele muitas saudades levou quando partiu para a metrópole, no fim da sua comissão.

O Mamadú (julgo que 50% dos pretos mandingas são Mamadú) logo caiu na simpatia geral do pessoal da 816. Comia com a gente, tinha a sua cama e a malta arranjava-lhe roupas. Certa vez o Baião, regressado de férias, trouxe-lhe uma bola, que ele por azar… rebentou-a logo ao primeiro chuto. O Piedade trouxe-lhe roupa da metrópole e o Martins também. Enfim, todos estimavam o Mamadú. Era um moço muito inteligente e já falava muito razoavelmente o português, apesar da ainda pouca convivência com a malta da Companhia. Sabia o nome das terras da naturalidade de todos os Furriéis, do nome das namoradas ou madrinhas de guerra, etc., etc..

O que ouvia entre a malta jamais lhe esquecia.

Uma vez, e por acaso, a malta descobriu que ele furtava-se a comer carne de porco e a beber vinho. Foi de admirar como aquela criança respeitava tão religiosamente na etnia a crença mandinga, que proibia de se comer carne de porco e de beber vinho. Ao apercebermo-nos disso, fizemos-lhe ver que a carne de porco era comestível como qualquer outra saborosa carne e que estava dentro dos hábitos alimentares de toda a gente, e que o vinho, fruto da uva, era um complemento valioso na alimentação, mas ele, irreverente, fiel à sua doutrina, chorou que se matou, e até, aqui é que está o trágico do episódio, levou uns cachaços de um menos paciente. Um quadro a meditar…

O pequeno Mamadú, que todos acabaram por enaltecer a sua fidelidade religiosa, não quis de forma alguma infringir a sua religião. Admirável! Hoje, na metrópole, ele é agora um bom apreciador da carne de porco e do melhor vinho… julgo eu.

O Mamadú acabaria por vir para a metrópole ao cuidado do Luís José.

O Reguila, pretito franzino de 5-6 anos era um miúdo que irradiava simpatia e todo ele era um espectáculo.

Sempre a sorrir para quem o abordava, ele cativava a malta e incutia afecto e estimação. Sempre que ele aparecia junto da messe, pedíamos para ele dançar ao que ele logo acedia dançando e cantando lá qualquer coisa típica ou da imaginação dele. O certo é que os seus movimentos eram bem ritmados e ele tinha uma infindável graça. O Reguila era também muito estimado por todos, mas este miúdo tinha família e portanto vivia lá para as tabancas. Um dia mais tarde tivemos o duro conhecimento que tinha afogado ali numa bolanha bem perto, apenas… num palmo de água! Ainda pequenino, era já, por vezes acometido de qualquer espécie de ataque súbito. Foi apanhado em plena bolanha, que na altura tinha alguma água, por um desses ataques que o fez prostrar por terra. O Reguila teve o raro azar de ser acometido numa pequena poça de água que pouco mais lhe cobria a cabeça. Foi uma consternação geral em toda a malta por tamanha fatalidade no pequenino e alegre Reguila. Cair inanimado pelo ataque e acontecer ali uma pequena porção de água que foi a bastante para lhe causar a morte por afogamento e ainda para mais passar despercebido a quem quer que fosse, foram coincidências a mais para a desdita do miúdo. Ficamos tristes, muito tristes.

Agora falemos do par inseparável Sana e Abdul. Faziam lembrar o Bim e o Bam da banda desenhada. De comum só a cor da pele. Vindos também algures do mato, sem qualquer família ali no Olossato, o Sana e o Abdul eram mais dois protegidos do pessoal militar. O Sana sempre risonho fazia-nos os recados com prontidão e era muito cumpridor. Certa vez mandei fazer uma camisa para cada um, e alguém arranjou-lhes uns calções.

O Sana aparecia sempre limpinho ao fim do dia, ao contrário do Abdul, que tinha um ar acabrunhado, que quando vestia alguma coisa aparecia pouco tempo depois todo sujo. Começava aqui a dita diferença, a que se junta a pouca vontade do Abdul de fazer o que se lhe pedisse. O Abdul, e até aqui eram bastante diferentes, tinha uma barriga muito grande, talvez da fome que tivesse passado, ao passo que o Sana tinha uma fisionomia perfeita.

Foto 18 > Os inseparáveis Sana e Abdul

Por fim as duas Cosas lavadeiras. A mais nova aparecia pouco junto da malta. Quando o fazia era par vir buscar roupa suja ao Baião, que tinha cá um certo jeito para lha dar, pois aproveitava a ferramenta direita para pendurar peça a peça ao que ela ia apanhando não sem alguma relutância. Era o único Furriel para quem ela lavava a roupa. A mais velha das Cosas já era lavadeira de alguns, mas com quem ela simpatizava muito era com o Carneiro ou melhor com a ferramenta deste, pois tinha um tamanho anormal. Sempre que ela entrava no quarto onde ele dormia os demais saíam logo, para facilitar…

Depois de alguns minutos lá estava ele na Enfermaria a pedir um tubo de pomada, apropriado.

Mais tarde quando saímos do Olossato, viemos a saber que a Cosa mais nova tivera um filho… mestiço! Houve então um jogo do empurra entre dois militares.

Foto 19 - Lavadeiras do Olossato

Ao fim e ao cabo o Capitão Riquito é que não gostou nada da história. Safaram-se por ele não ter a certeza, pois bem avisou a malta logo ao princípio da comissão, que num caso destes obrigava o causador a assumir a paternidade.

Como o Bacar foi vítima da curiosidade

Falando finalmente e ainda do Bacar, do infortunado Bacar, que viria sim, para a metrópole mas que nada veria nesta. Que destino tão cruel! Nada ia ver das muitas maravilhas que aquela lhe poderia proporcionar e das quais lhe íamos metendo na cabeça. Nada veria do que muito sonhou e imaginou. O que lhe aconteceu foi mais um motivo de pesar e de consternação em toda a malta. O Bacar veio para a metrópole mais cedo c’o que julgava, mas… completamente cego e muito inferiorizado. O Bacar todo ele vida e espírito, dera lugar a um farrapo humano que ainda vivia e porventura ainda deve viver. Um grande abraço Bacar.

Um célebre domingo, pela manhãzinha, quando ainda saboreávamos a cama depois de um sono retemperador, ouvimos um rebentamento próximo do quartel. Como sempre grande número de pessoas convergiu para o suposto lugar do estrondo. Quando também para lá nos dirigíamos, alguém que já de lá vinha disse comiserada e laconicamente:

- Foi o Bacar.

Mas, o quê, o que poderá ter acontecido ao Bacar?. Perguntas como esta, saíram logo das nossas bocas. O Bacar? Acontecer ao Bacar? Logo depois um Unimog deposita dois corpos à porta da Enfermaria. Um deles era o do Bacar, cheio de buracos por todo o corpo originados pelos estilhaços de uma granada ou fornilho armadilhado. Metade de uma perna dependurada, e o pobre do Bacar gemia, perante o olhar triste da malta que o rodeava. O outro também estava ferido, mas pouco.

Receamos logo por a perna do Bacar, mas o que nunca passou por a cabeça de alguém é que ele viria a perder as duas vistas, como só mais tarde viemos a saber.

Pobre Bacar, tão astuto e corajoso como inteligente, tinha caído infantilmente numa armadilha quando com outro andava a colher mancarra ali a umas escassas centenas de metros do quartel. Um cinto, feito de pele de caça, no meio de um carreiro. Um cinto de préstimo tentador e então o Bacar apanha-o e, ao fazê-lo, ao puxá-lo, accionou a armadilha. O estrondo entoou pelos ares indiciando um rebentamento muito forte e potente e então o Bacar foi sacudido e arremessado de forma violenta. O efeito da detonação foi tão forte que pela deslocação do ar o companheiro de safra do Bacar, que estava empoleirado numa palmeira junto à copa a colher xabéu, caiu desamparadamente no solo o que lhe causa fractura duma perna. Triste epílogo do Bacar na guerra. O Capitão Riquito era dos que menos escondia o seu pesar, pois o Bacar, além de um bom conselheiro do Capitão, era um grande e indefectível amigo de toda a Companhia, isto para não destacar as suas façanhas no mato e em combate. E assim o Bacar que tinha a promessa de vir para a metrópole com a 816, afinal viria mais cedo, mas jamais veria os automóveis, a multidão, os autocarros de dois andares, os eléctricos, os reclamos luminosos, o rio Tejo e os seus barcos e todo o mais com que lhe vínhamos enchendo a cabeça. Muito comoveu aquela cena de que quando ele ainda estava na enfermaria, logo depois do acidente e onde os três enfermeiros, incansavelmente, lhes prestavam os socorros possíveis antes de ser evacuado, ele pediu e apertou entre as suas mãos uma mão do Riquito, dizendo:

- Assim estou melhor.

A malta, como sempre, teve uns largos minutos de tristeza e lamentação, mas a resignação era sempre o melhor e único remédio para as contrariedades e então novo estado de alma se levantaria. Era assim o segundo grande revés da Companhia. O que aconteceu afinal fazia parte do cenário da guerra e era esta o nosso quotidiano…

Assim era e assim teria de ser, e havia que reagir da melhor maneira possível, continuando a encarar a guerra com toda a força física e espiritual, que em face dos factos como o que eu acabo de relatar, paradoxalmente, nos dava mais forças e pundonor para prosseguirmos na tentativa de acabar, destroçar, tudo e todos que faziam ou fomentavam o terrorismo, concomitantemente defendendo a integridade daquilo que era nosso, que era de Portugal e dos… portugueses.

Foto 20 - OLOSSATO - Vista aérea em 1966

A actividade da 816

Entretanto o nosso trabalho não parava, evidentemente. As manhãs eram ocupadas com a restauração e melhoria das condições no quartel. De tarde, após a sesta, jogava-se à bola no pequeno campo de futebol ou praticava-se Voleibol. Outros porém preferiam uma sombra menos quente, ou optavam por uma soneca duradoura. A porta da cantina fazia lembrar um saloon do oeste americano

Recordo-me do Capelão, aquando da sua passagem pela Companhia, na sua habitual visita por todo o Batalhão inclusive pelas Companhias agregadas como era o caso da 816, fazer “ponto” sempre que ia haver uma partidinha de Vólei, e que grande ponto ele era como grande motivador de boa e alegre disposição. Era o mesmo que em Bissorã como já contei

Fotos 21 e 22 - O banho do pretinho e bajudinha transportando o irmão (imagens típicas em terras africanas)

As saídas para o mato faziam-se regularmente. Havia as colunas de reabastecimento quer de géneros alimentícios quer de munições. Havia as regulares patrulhas em toda a zona envolvente do aquartelamento, as idas à lenha, que não eram pera doce, que o diga o “Trovoada” que caiu a um poço e ali esteve bom tempo seguro à parede, entalado, usando as costas e os pés como apoio, até que chegassem com uma corda que entretanto foram buscar ao quartel. Havia as operações-vaca e haviam as emboscadas a fazer, entre estas as perigosíssimas a Colissaré, pois não ficavam longe da base de Morés e bem longe do Olossato. Estas emboscadas eram de algum risco, pois, e como comentava a malta, que num sítio daqueles, um só Pelotão era efectivo muito pouco. E sobretudo haviam as operações de “Golpes-de-mão”, que eram as investidas ou assaltos às casas-de-mato (refúgios) inimigas.

Até que um dia chegou a ordem de alinharmos para destruirmos a famigerada “Serração” de Joboiá, a célebre serração, ou melhor, o que restava do que outrora foi uma serração e isto não passava, apenas das paredes ao alto e dos caibros que ainda aguentavam parte do tecto. A serração de Joboiá distava do Olossato cerca de 4-5 quilómetros na estrada para K3/Farim. Ficava isolada e longe de qualquer meio urbano, pois era Olossato a povoação mais próxima.

Chamo-lhe de célebre pois muito cedo começamos a ouvir falar dela. Logo que se falava de Olossato falava-se fatalmente da serração (os amigos da 566 conheciam-na bem, e de uma maneira temível e então esta tinha as suas histórias de guerra para contar). Ao que se sabia, os terroristas aproveitavam-se das suas ruínas, ou melhor das paredes, para fazerem emboscadas, assim bem abrigados. Ali, naquele sítio, uma emboscada era uma constante sempre que a tropa passasse na estrada de Farim, estrada que distava da serração aí a uns 40 metros.

Assim, sempre que passávamos ao lado da serração havia o receio de eles aparecerem.
Então o Capitão resolveu acabar com aquilo, o que e no dizer dele era mais um mito que outra coisa, o que nós concordamos.
O dispositivo para tal operação foi prévia e obviamente muito bem concebido pelo Riquito.

Foto 23 - Algum do pessoal da 816 que colaborou na destruição da serração de Joboiá – Vêem-se em pé: Um soldado nativo, o Alferes Costa, Furrieis Rui e Coelho, Flores, Alferes Esteves e Pelé, e em baixo entre outros o Clarimundo simulando carregar o morteiro e o “Chaves” com a sua “bazooka”

À uma hora da madrugada sai então do Quartel o 1.º GCOMB comandado pelo Alferes Costa, na ausência do Alferes Barros o titular daquele Grupo. A missão deste Grupo é fazer um reconhecimento e instalar-se em redor da serração, em dispositivo de segurança, de forma que, já pelo alvorecer, a chegada do meu GCOMB àquele sítio seja feito a coberto de qualquer surpresa, pois uma vez já ali instalado o 1.º Grupo não seríamos surpreendidos pelo inimigo que podia muito bem já estar ali acoitado. Portanto quer dizer, o 1.º Grupo assegurava a não presença inimiga ali na altura que nós chegássemos pela manhã com o material adequado para a completa destruição do que então restava da antiga serração. Mas, logo no começo da operação, traçou o destino, ia haver contacto com o inimigo. Assisti ao partir do 1.º GCOMB, que, silenciosa e cuidadosamente, saiu em fila indiana, e como já se disse, à uma hora da madrugada, rumo ao objectivo. Primeiro eles iam por a estrada até à ponte – rio Olossato - que ficava a cerca de 1 quilómetro do Quartel, e, ultrapassada esta, meteriam-se então pelo mato, para melhor segurança na progressão e evitarem serem detectados.

Quando os últimos homens da coluna estavam a sair do aquartelamento e como já era um pouco tarde e eu tinha que me levantar cedo, fui-me deitar. Quando me aprestava para adormecer, e já todos nós deitados, eis que ecoa um metralhar contínuo e forte que mais forte parecia no silêncio da noite. Parecia fogo de uma metralhadora pesada. É nosso? É deles? - interrogamo-nos, surpresos. Era ali perto pelo nítido ouvir da metralhadora e a julgar por só terem passados breves minutos após a saída do Grupo. Como que impelidos pela mesma mola logo saltamos da cama e procuramos saber o que se passava. Tinha sido ali pertinho, precisamente logo ao sair da ponte e à entrada para o mato. Provavelmente o sentinela da ponte que atrás falei. Foram eles, e parece que há feridos, alguém disse apavoradamente. Estranhamos como aconteceu já ali perto e para mais saídos de surpresa como era habitual. Logo o Capitão e dois soldados armados, num jeep, para lá se deslocaram ao saber-se pelo rádio do local exacto e de que havia feridos. Pouco tempo depois regressa o jeep rumo à Enfermaria e então constatou-se ter sido o Andrade atingido com um tiro numa coxa. O preto Seidi tinha levado também um tiro que lhe esfacelou um dedo dum pé. Os feridos, claro, ficaram no quartel, mas o grupo continuou para o objectivo: - Garantir a segurança em redor da serração, para o outro que iria chegar para proceder ao seu desmantelamento.

Viemos a saber que os tiros de metralhadora e ao que parecia ser pesada, tinham sido feitos por presumíveis sentinelas que o inimigo tinha ali instalado em permanente vigilância à tropa do Olossato. Porém estes sentinelas concerteza que só à noite ali estavam, pois era também sempre de noite que nós saíamos para operações de “Golpes-de-mão”. As sentinelas descarregaram então o que puderam e logo fugiram através do emaranhado do mato. Não seriam mais que dois, como alguém bem perto da cena calculou. Do Pelotão nem chegou a haver reacção. Apanhados de surpresa, em plena escuridão da noite e praticamente à porta de casa, limitaram-se a deitarem-se no chão e como ficaram aos magotes, ninguém respondeu ao fogo inimigo até com o receio de se ferirem uns aos outros. A coisa foi também muito rápida pois eles fizeram a rajada e debandaram logo. Só se via a chama à boca da metralhadora - alguém acrescentou depois. Eles estavam atrás de uma árvore muito grossa - alguém ajuntou também.

Como se nada tivesse acontecido, ou por outra, como o que aconteceu não era de modo a que se renunciasse à operação, esta prosseguiu como se impunha.

Pelo alvorecer já estava o meu Grupo a caminho da serração e de encontro ao 1.º Grupo. Uma vez ali chegados, logo se começou a trabalhar na destruição do esqueleto daquilo que outrora era uma serração. Começou-se pela remoção dos caibros que sustinham o telhado que provavelmente teria existido, e depois, à picareta, as paredes também foram postas abaixo. Com o barulho das motosserras, o bater das tábuas ao caírem, e outros inevitáveis barulhos, receávamos pela chegada do inimigo a qualquer momento, embora o dispositivo de segurança entretanto montado pelo 1.º Grupo desse tranquilidade aos que trabalhavam. Assim, havia um grupo empenhado na completa destruição da serração e outro metido no mato a garantir a segurança.

Prepararam-nos uma emboscada no regresso ao quartel e pensar que o condutor Pompeu andou ali num vai-e-vem a trazer tábuas para o Olossato, (podia ser pescado à linha) mas eles queriam era o grupo todo, como aconteceu e para felicidade do Pompeu

A operacionalidade da Companhia era feita com o sistemático ataque às casas-de-mato de CANSAMBO, BISSAJAR, MORÉS, MISIRÁ, CANCUNCO, JOBOIÁ, LUBACUNDA, CANJAJA, CANFANDA, MARECUNDA, MAQUÉ, IRACUNDA, CUDANA, CANCANO e NHANE.

Segue-se MANSOA (III)

P.S. – Devo dizer que algumas das fotos aqui reproduzidas (fotos 1, 6, 12 e 14) não são da minha autoria. Aos seus autores, com a devida vénia, peço a devida autorização.

Rui Silva
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Fotos e legendas: © Rui Silva (2008). Direitos reservados.
Fixação do texto, negritos, itálicos e subtítulos da responsabilidade do editor

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5156: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (6): O périplo da 816 em dois anos de Guiné - Bissorã