quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 – P5528: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (26): O “regresso” do Soldado Manuel



1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias (a 26ª), com data de 20 de Dezembro de 2009:


Camaradas,

O autor desta história é desconhecido e o meu "mérito" terá sido encontrá-la num jornal da minha região, jornal esse que foi publicado já lá vão 45 anos.

O texto - posso dizê-lo porque não é meu - é muito bem escrito.

UM EPISÓDIO DE GUERRA NA GUINÉ PORTUGUESA
(O “regresso” do Soldado Manuel)

Na parede de adobe, mal caiada, e onde esverdeadas manchas de humidade alastravam, o calendário (Ano de 1963) marcava uma data: 24 de Dezembro.

Com a janela aberta, por onde apenas entrava, na abafada, sufocante noite tropical, uma suspeita de frescura, o jovem oficial miliciano, à luz de uma vela, escrevia: «… Minha Querida Mãe, são 21 horas e 40…

À luz de uma vela, porque a chama do petromax é alvo demasiado visível para qualquer atirador especial terrorista, alcandorado, ao longe, no cimo de alguma árvore. Mas ouve-se um estampido. Podia bem ser a rolha de uma garrafa de champanhe a saltar…

Ao estampido segue-se, porém o assobio quase imperceptível de uma bala que vai cravar-se na húmida parede de adobe, coisa de um metro acima da cabeça do oficial. Este apaga logo a vela. Depois, às apalpadelas, no escuro, procura o capacete e a pistola.

Quando finalmente sai já o duelo – a tiros de espingarda e rajadas de metralhadora - está a travar-se entre os terroristas (ocultos na floresta) e os seus soldados abrigados por detrás da muralha – só aparentemente frágil – de velhos bidões de gasolina cheios de areia. Entre uns e outros a cerca de arame farpado.

Está isolada a pequena força do destacamento de Caçadores.

O posto mais próximo é a muitos quilómetros de distância. Antes que amanheça, nenhum auxílio podem esperar estes homens. Mas será que os terroristas se aprestam para um ataque frontal? Horas iguais de uma noite abafada e húmida.

Aos soldados e ao oficial também, o que sobretudo os irrita é que aquele inoportuno tiroteio aconteça em noite de Natal, já com a mesa posta para a consoada.

E havia broas, uma galinha assada, algumas garrafas de bom vinho.

A noite, entretanto, povoa-se de clarões – as armas de fogo que disparam incessantemente, assinalando cada segundo com um tiro. E as horas passam.

Mas o jovem oficial nem tempo tem para ver as horas no pequeno mostrador luminoso do seu relógio de pulso. E nem sequer pensa no perigo – ali entrincheirado e tendo pela frente um inimigo bem armado, que a palmos conhece o terreno e vê de noite, como o jaguar.

Agora só pensa naquela carta que teve de interromper: «… são 21 horas e 40…».
Mas quando é que isso foi?

Era noite de Natal. Ele escreveu à luz discreta de uma vela de estearina, algures no mundo , nesse mundo onde não há clarões de armas de fogo, nem assobios de balas, ardiam círios nos altares, centenas de círios, milhares de círios, que não era preciso apagar à pressa no princípio de uma carta…

E agora? Sim. A meia-noite deve estar próxima. Talvez o padre, algures, já esteja a encaminhar-se para o altar. Mas o jovem oficial não o sabe de certeza – e não pode ter um olhar para o mostrador luminoso do seu relógio de pulso. A pistola-metralhadora palpita-lhe nas mãos como se fosse dotada de vida própria e chispas de fogo, desdobradas em leque, correm, segundo a segundo, em direcção à negra cortina de arvoredo.

No mundo em que não há guerra já decerto agora o sacerdote acabou de celebrar a Missa do Galo.

Aqui, o fogo começa, enfim, a esmorecer.

Naturalmente, os terroristas principiam a retirar, para que os aviões ao amanhecer, se viessem bombardear a floresta, já não os encontrem…

Uma a uma, calam-se as armas automáticas do inimigo. Uma a uma, a intervalos certos, como se houvesse, algures no mato, a batuta de um maestro.

Mas será de facto a retirada? Não será antes o silêncio de mau agoiro que sempre antecede a gritaria de um assalto frontal?

Não. É efectivamente a retirada. E devagar, como se lhe custasse a acordar de um pesadelo, o jovem oficial recolhe ao seu quarto, risca um fósforo, acende a vela, atira para um canto o capacete, que está a queimar-lhe a testa, e suado, exausto, com os nervos num feixe, senta-se, de novo, à mesa para escrever: «… pois agora, minha querida mãe, são 3 horas e 20.Eu e os meus soldados tivemos uma noite de Natal muito divertida .Nem imagina… As broas que nos mandou souberam a pouco. E das garrafas mandadas pelo pai diga-lhe que não ficou nem uma gota».


21 horas e 40. 3 horas e 20.

Menos de seis horas na vida de um homem. Mas deitado numa padiola, com uma bala na cabeça, o Manuel, o seu impedido, é um corpo que rapidamente arrefece, como no verso de Fernando Pessoa.
_________

Agora, no hotel, em Bissau, sentado ao meu lado, almoça. Está no porto o barco que o vai levar de regresso a Lisboa. Trouxe este barco 800 homens. Vai partir com outros tantos, aproximadamente. Os que chegam passam, em camiões, a cantar.

Também cantam os que partem. Entretanto, o jovem oficial diz-me, com simplicidade:

- À minha mãe é que nunca hei-de contar o que foi aquela noite…

Mas logo acrescentando:

- «Agora uns meses à boa vida e depois a África outra vez, como empregado em qualquer empresa de Angola ou de Moçambique: este veneno de África entrou-me para sempre no sangue».

__________

Artigo não assinado. Publicado em «O ALCOA» em 8 de Fevereiro de 1964 (Ano XVII-Nº.876)


A partir daqui é comigo.

O subtítulo «O “regresso” do Soldado Manuel» é da minha responsabilidade.

“Regresso” no sentido de pesquisa e homenagem à memória deste militar português que terá morrido na noite de Natal do longínquo ano de 1963.

Desde há cerca de 2 anos que tento descobrir dois mistérios que resultam deste artigo de O ALCOA”:

1) Quem é o Alferes Miliciano?

Só pode ser da região de Alcobaça. Regressou à Metrópole num navio que deixou Bissau em Janeiro de 1964.Há um navio que saiu de Bissau em 17 de Janeiro de 1964.

Já localizei as Companhias e Pelotão de Morteiros e AAA que regressaram nessa altura. Esses militares estiveram cerca de dois anos na Guiné onde a guerrilha começa a ter importância no terreno a partir dos primeiros meses de 1963.
(C.Caç. 600, C.Caç. 512, C.Caç. 506, C.Caç. 513, C.Ca. 356, C. Caç. 599.)

Para se ser Alferes Miliciano nesse tempo era preciso ter habilitações literárias no mínimo equivalentes ao 3º. Ciclo dos Liceus (antigo 7º. Ano).

Pesquisei no arquivo da C. M. de Alcobaça os registos de mancebos respeitantes aos anos de 1958, 1959, 1960 e 1961.

Encontrei vários nomes, consegui alguns contactos pessoais mas... nada.

Ou, por outro lado, é o narrador que é da região de Alcobaça e o Alferes Miliciano é de outra região qualquer!?

Passaram mais de 40 anos e posso andar à procura de uma pessoa que já não esteja neste mundo.

2) Quem é o militar que morreu na véspera de Natal de 1963?
Nos registos oficiais do E.M.E. só há um militar das milícias locais que morreu por acidente em 24 de Dezembro de 1963 – JARGA SEIDI, soldado-atirador da CCS/Bat. Baç. 508, em Contubel.

Com nome de Manuel há um registo em 28 de Dezembro de 1963:



MANUEL RAMALHO CAPELAS
1º.CABO-ATIRADOR
CCAV 567
BINAR
DATA DE FALECIMENTO – 28 DE DEZEMBRO DE 1963
FERIDO EM COMBATE
Mortos em Campanha – Guiné – livro 1, pgs.42


Não é impossível um engano nos registos mas não é nada vulgar…

Há outras “incoerências” que não encaixam na história: Binar não é um posto fronteiriço e um primeiro-cabo não era habitual ser “impedido” de um Alferes. Por outro lado a CCav 567 só acabou a sua comissão em meados de 1965!

Resumindo e concluindo:

Passo a minha angústia e o meu mistério à nossa Tabanca Grande.

Alguém alguma vez ouviu alguma coisa deste ataque a uma pequena força de um destacamento de Caçadores na noite de Natal de 1963?

«…Menos de seis horas na vida de um homem. Mas deitado numa padiola, com uma bala na cabeça, o Manuel, o seu impedido, é um corpo que rapidamente arrefece, como no verso de Fernando Pessoa.»

«…Malhas que o Império tece

(O Manuel)

Jaz morto e apodrece…».
___________

A minha intenção ao evocar o “Soldado Desconhecido” desta história – o Manuel – é acima tudo de homenagem e de respeito.

Se não houver respeito, melhor ainda, se não houver grandeza de alma e memória Portugal não merece os que morreram em seu nome.
Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


5 comentários:

Jose Marcelino Martins disse...

Caro JERO

Já em 16/9/2007 andavas "às voltas" com este texto.
Não será um texto de ficção?
Vamos ver se o autor aparece, que já mereces, com o esforço que tens feito sobre este assunto.
Porque não tentas que o jornal, se existe, publique de novo o texto com um comentáro teu?

Um abraço

José Martins

Anónimo disse...

Olá José Martins
Boa memória a tua. Efectivamente isto começa a tornar-se uma obcessão!
Como o texto foi publicado em 1964 não acredito que fosse um texto de ficção. Os ficcionistas são mais dos nossos dias...
Já fiz diversos apelos no meu jornal mas não deu nada.Se não fôr desta - com a ajuda das gentes do "nosso" blogue - dou o assunto por encerrado. E o Soldado Manuel descansará em paz.
Mais uma vez obrigado pela tua atenção.
Um grande abraço.JERO

Hélder Valério disse...

Caro JERO
É sempre um gosto ter o prazer de acompanhar o teu trabalho.
Não me recordo de nenhum que não tenha gostado.
Este texto, pese embora não sendo teu, está realmente muito bem escrito e mostra aquilo que foi muito comum em nós que 'fizemos a guerra', fosse lá em que circunstâncias fosse, em que, de um modo geral, para não preocupar desnessariamente os familiares (que na prática não podiam fazer nada e ficavam mais angustiados) não revelávamos as nossas dificuldades e até se ironizava com elas.
O teu trabalho em busca 'do autor desconhecido' pode ser infrutífera mas o gozo da pesquisa ninguém te pode tirar.
Um abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Caro JERO
Estou totalmente de acordo com a opinião de José Martins. Deve ser peça de jornalista, a partir de informações dispersas (até de outros TO), que juntou e lhe deu o carácter de crónica. Tudo aponta neste sentido. Aliás, não vindo assinado (nem mesmo com pseudónimo), a responsabilidade do texto é da redacção.
Um abraço,
Carlos Cordeiro

Anónimo disse...

Caro Carlos Cordeiro
Grato pela tua opinião mas, com o devido respeito, estás a pensar como um "homem" do teu tempo.O jornal é de 1964 e o artigo em causa tem algum melindre dado que se estava a viver em pleno "Estado Novo". Portanto de duas uma: ou o autor se "cortou" e não assinou ou foi a própria Redacção que entendeu "não dar pai à criança"...Volto a recordar que estávamos em 1964.
Voltando ao artigo está demasiado "autêntico" para ser peça de jornalista.Quem o escreveu viveu aquela noite de inferno ...em tempo de Natal.
É a minha opinião que não mudo até prova em contrário.
Um abraço.
JERO