quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 – P5437: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (24): João Turé de “puto” a Homem Grande


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/66), enviou-nos a sua 24ª mensagem, com data de 9 de Dezembro de 2009:


Camaradas,

Como no nosso blogue estão a aparecer ultimamente histórias de guineenses que lutaram pela nossa Bandeira e tiveram como "recompensa"o fuzilamento, lembrou-me de vos enviar um conto verídico - e não romanceado - com final feliz.

João Turé de “puto” a Homem Grande
Guiné 1965/Alcobaça 2009

Quem havia de dizer que 40 e tal anos depois dois indivíduos de uma velha fotografia da Guiné se iriam reencontrar a milhares de quilómetros de distância, na evocação do regresso de uma Companhia que tinha estado na Guerra do Ultramar no período de 1964 a 1966!!!

Dois indivíduos que, pela ordem natural da vida, se afastaram e que, até pela diferença de idades, tinham tudo para viver... desencontrados!

Mas assim não aconteceu.

O miúdo em primeiro plano na foto, de veste azul, João Lássana Turé, tinha então 8 anos de idade. De raça mandinga tinha nascido em Binta, Norte da Guiné, então Província do Império Português, que se espalhava pelo Mundo, do Minho a Timor!!!

João Turé está acompanhado na fotografia de um irmão e primos.

O outro indivíduo, de camuflado verde, Furriel Oliveira, então um jovem militar de 24 anos, tinha nascido em Alcobaça.

E o que aconteceu ao João Turé depois daqueles militares terem saído da sua terra em Maio de 1966?Muita coisa – que quase daria para escrever um livro ou fazer um filme – mas encurtando “páginas e/ou imagens” pode-se resumir assim a vida daquele miúdo que, embora protagonista de muitos e variados dramas, consegue ser hoje uma pessoa de riso fácil, sem ressentimentos em relação às “coisas más” que lhe calharam na sorte até agora...

E quando já ultrapassou o meio século (conta 53 anos de idade feitos em 13 de Março de 2009).

À (relativa) estabilidade que os militares da CCaç 675 conseguiram para a sua aldeia, nomeadamente no segundo ano da sua acção da zona – o primeiro ano foi fértil em “acções de fogo” na quadrícula da Companhia, com algumas flagelações ao quartel de Binta – deixaram--lhe uma boa recordação – a si e aos seus familiares.

Com efeito a “tropa do Capitão de Binta” deixou saudades pelas melhorias que deixou na aldeia ao nível sanitário e social.Recuperou cerca de 900 antigos residentes, que tinham fugido para o Senegal, ajudando as populações na recuperação da aldeia (“a tabanca”) e das suas habitações ( “as moranças”), nas sementeiras e na pesca a aldeia situava-se junto ao Rio Cacheu).

Abrem-se ruas, faz-se um pequeno campo de aviação de terra batida (onde aterram e levantam avionetas tipo DO), um furo de captação de água, uma escola, uma enfermaria, uma capela, um campo de futebol e... depois de muitas canseiras... acordamos todos os dias numa povoação modelo onde, ao domingo, é hasteada, com a pompa possível, a Bandeira.

A Bandeira de Portugal.

Os militares da “675” trouxeram a paz e a dignidade a quem tinha andado fugido da guerra... !

Muita(s) da(s) história(s) da “guerra colonial” passaram por estas acções que não mais foram esquecidas pelas populações nativas.

Se não fosse assim porque é que hoje o João Turé procura e se sente em família com os antigos militares da CCaç 675, que estiveram na sua terra entre Junho de 1964 e Maio de 1966!? João Turé, que ainda viveu na sua aldeia até aos 16-17 anos, e conheceu militares de outras Companhias que passaram por Binta.

Depois da “675” voltaram os tempos difíceis pois a guerra instalou-se com redobrada dureza na zona Norte da Guiné (Binta ficava apenas a 20 Kms da fronteira com o Senegal).

Cresceu na inquietação da guerra com quem se habituou a conviver.

Um dia – anos mais tarde – vai para Bissau estudar e completa o antigo 5º. Ano do Curso Comercial.

Depois frequenta durante 12 meses o Curso de Fuzileiros Especiais em Bolama, fazendo uma pequena “batota” com a data do seu nascimento para ser admitido na vida militar.

É um militar distinto nesta tropa de elite onde até 1974 entra em mais de 140 acções especiais (desembarques e combates em todo o território) debaixo das ordens do Comandante Amadeu Cardoso Anaia.Foi louvado pelo Comandante do Dest. Fuz. Especiais nº. 22, em 5 de Outubro de 1973, que além de referir o seu excelente desempenho como encarregado de secretaria do destacamento, destaca ainda a sua grande coragem como operacional.

É um excelente atirador de ALG’s, arma que domina como poucos. A sua impetuosidade em combate e a sua serena energia debaixo de fogo são particularmente salientadas neste louvor, de que o João Turé particularmente se orgulha.

Casa com Binta Turé (natural da sua aldeia) em 8 de Abril de 1974.

Dá-se pouco depois a Revolução de 25 de Abril de 1974 e, poucos meses depois, é preso em Bissau pela Segurança do PAIGC.É acusado de ter servido nas Forças Armadas Portuguesas como fuzileiro e ter, eventualmente, conhecimento de “segredos militares” por ter desempenhado funções na Secretaria do Comando da Companhia.

Abandonado à sua sorte tem mais sorte que muitos guineenses que serviram o Exército Português e que são então perseguidos e fuzilados.

Quantos?! Ainda hoje não se sabe!

Mas não é seguramente uma página de ouro da história recente de Portugal que não soube proteger quem serviu sob a sua Bandeira!

João Turé cumpriu 9 meses de prisão – sem ser julgado – é libertado e “desenrasca-se” no novo País.

O seu País – a Guiné-Bissau – de que tem orgulho e onde continuam muitos familiares.

E depois de alguns anos sem “grandes recordações” vem para Portugal.

Chega sozinho em Agosto de 1982 e consegue emprego como escriturário na Secção de Contabilidade dos “Explosivos da Trafaria”.

Há alguma ironia do destino nesta fase da sua vida.Depois de vida explosiva (e de acção nos fuzileiros) vem trabalhar com papéis que dizem respeito a explosivos... para construção.

Continuou no ramo e passados dois anos já faz parte do sector comercial.

Estabiliza a sua vida e a sua família, já aumentada com quatro filhos, vive consigo na região da Amadora e cresce longe da “sua” Guiné.

Em 1990 transfere-se para a SPEL – Sociedade Portuguesa de Explosivos, S.A.

Trabalha duramente e em 1992 já tem responsabilidades no Departamento de Vendas. É aliás o principal responsável para os Distritos de Lisboa e de Leiria.

Nada mau para um rapaz de Binta, uma aldeia a 80 kms da Foz do Rio Cacheu, no Norte da Guiné!A vida não é só trabalho e vai de vez em quando visitar o seu País Novo, onde ainda vivem a sua mãe e seus irmãos.

Acompanha com interesse tudo o que se passa na sua Terra e... tem esperança. Esperança em melhores dias.

E um dia... muitos e muito anos mais tarde encontra os “tios mais velhos” da “675”.

Velhotes, carecas, barrigudos mas... encantados de reencontrarem o “puto” Turé.

Estamos então em Maio de 2001.A Companhia festeja em Évora os “seus” 35 anos do regresso da Guiné e o João Turé é recebido como “um Homem Grande”.

Na noite desse dia memorável este reencontro com os militares da 675 “abre” o telejornal da TVI.

João Turé assume-se publicamente como guineense e português e refere que a sua gente muito ficou a dever “à tropa do capitão de Binta”!

A reedição desse “momento mágico” voltou a acontecer noutros convívios dos ex-combatentes da “675 que todos os anos se reúnem no primeiro (ou segundo) domingo de Maio. Aconteceu também em 5 Maio de 2009 em Alcobaça no lançamento do livro “GOLPES DE|MÃO’s”.

João Turé usou da palavra e foi aplaudido de pé.
Numa vida em que, por vezes, os grandes valores são “outros” sabe bem recordar que a guerra não se fez só com tiros e que há “miúdos” que ainda hoje respeitam (e se sentem bem) junto dos “velhos combatentes”.

João para o próximo ano o nosso convívio é em Aveiro.

Vai calhar a vez ao nosso Furriel “Juca”, também conhecido por António Miranda Soares Correis.

Até lá não tem nada que saber: A AMIZADE NUNCA CEDERÁ.

675 SEMPRE!

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675

Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


4 comentários:

Antonio Graça de Abreu disse...

A vida fabulosa do João Turé, tão dura, tão verdadeira, tão de todos nós!...Esses meninos negros que cirandavam à nossa volta, de quem nós gostávamos e que ficaram para sempre nossos amigos...
Como a guerra pode irmanar melhor os homens...
Obrigado pela tua estória.
Um abraço,
António Graça de Abreu

Fuzileiro disse...

Da direcao dos Explosivos da Trafaria e Sociedade Portuguesa de Explosivos, que emprega e empregou varios Fuzileiros que fizeram as suas comissoes na Guine,fez parte o Comandante Alpoim Calvao, o "pai" dos Fuzileiros na Guine e comandante da Operacao Mar Verde, entre outras.

Anónimo disse...

O texto do Amigo e Camarada Jero e o comentário do António Graça de Abreu, sobre os lindo putos da Guiné, fez-me recordar um "poema" da autoria do nosso conhecido Afonso Lopes Vieira, que num belo fim de dia em Mansoa, me entreti a adaptar, e que passo a reproduzir:

Os pequenitos
Tão engraçados
Acercam-se... coitaditos
Com mil cuidados.

São com bandos
Que p'ra sobreviver
Em nosso redor
Procuram afazer.

Nas bocas trazem
Palavras pequenas,
Nossos recados fazem
Por uns troquitos apenas.

"Moedas cá tem..."
Putos... meninos,
Tão pequeninos,
Pr'ajudar a sua mãe.

E são maganos de raça...
Mesmo o pequenininho,
Que mais me dá a graça
De um passarinho!

Que sempre lembremos...
Que o fomos também.
Os filhinhos que temos,
E a nossa linda mãe!

Um abraço Amigo do,
Magalhães Ribeiro

Anónimo disse...

O Afonso Lopes Vieira deve ter dado uma boas voltas na tumba mas...o que interessa é a intenção.
Grande poeta é o povo e também o meu querido amigo M.R., a quem mando um grande abraço.
JERO