terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5384: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (18): Referências de Bafatá - Figuras típicas

1. Mensagem de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 28 de Novembro de 2009, com mais um capítulo para a sua série A guerra vista de Bafatá.


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ

18 - Referências de Bafatá – Figuras Típicas


Depois do comentário à minha estória anterior, feito pelo nosso camarada Maltez da Costa:

…Reviver Bafatá, passados 40 anos, dá-me uma angústia enorme, porque tu consegues trazer-nos à memória coisas e factos, que parece que se passaram há 40 dias…

espero dar mais um contributo para esse reviver.

Bafatá era a segunda cidade da Guiné, muito menor que Bissau e de cariz perfeitamente provinciano. Toda a gente se conhecia. Passados quarenta anos recordo algumas figuras, bem conhecidas dos camaradas que por lá andaram nessa época.


O senhor Humberto, meu senhorio

Talvez menos conhecido que os demais de quem vou falar. Era um metropolitano proprietário da única oficina de automóveis lá existente. A tropa a ele recorria quando tinha alguma viatura de conserto inviável pelos meios militares. Para além disso era investidor imobiliário.

Eu próprio, em 1969 fui inaugurar uma das duas casas por ele mandadas construir, na tabanca da Rocha em frente ao restaurante do Sr. Teófilo. Em 1970 quando vim embora já estava a construir outras duas. Talvez por deformação inerente às minhas funções (informações) achava esquisito um metropolitano não guardar todo o dinheirinho para trazer para a metrópole …


O Chefe Religioso Muçulmano

Nunca soube o seu nome. No último almoço na Ortigosa mostrei uma foto dele ao Amadu Djaló e ao reconhecê-lo pronunciou o seu nome mas eu não o fixei. Tal como cá, os Bispos estão sempre presentes em actos oficiais relevantes, também lá isso acontecia com este chefe religioso. Costumava vê-lo nas cerimónias do Ramadão, sempre vestido a rigor, bem como em recepções, despedida do Cor. Hélio Felgas, etc.

O Chefe Religioso Muçulmano em dia de Ramadão, junto da mesquita de Bafatá.

O chefe Religioso Muçulmano discursando na despedida do Cor. Hélio Felgas. 04 de Outubro de1969



O Administrador

Era outra figura omnipresente nas cerimónias oficiais. Não sei o seu destino depois da guerra, mas lá não deve ter ficado, pois creio que não era muito estimado pelas populações nativas. Penso que não gostariam muito que o Administrador as obrigasse a andar calçadas. Como já referi noutra estória, presenciei várias vezes os nativos que vinham das tabancas próximas, ao entrarem na cidade, calçarem as sandálias que traziam ao ombro. Também não permitia que as mulheres andassem com os seios nus. Em determinada altura era preciso capinar as partes laterais da pista. Os militares eram insuficientes para executar esse serviço; tentou-se contratar pessoal nativo, o que não foi conseguido. Recorreu-se então ao Administrador. Dum momento para o outro apareceu uma camioneta com trinta ou quarenta nativos. Nitidamente foram obrigados a trabalhar, embora se lhes pagasse o salário praticado naquela altura.

O Administrador, com o seu bigodinho, junto do Cor. Neves Cardoso, numa qualquer festividade.


O Ourives de Bafatá

De seu nome Chame (não sei se é assim que se escreve o nome), era conhecido em toda a Guiné pelo seu trabalho de ourives. Executava peças de prata e de ouro como qualquer oficina de ourivesaria de Gondomar e digo isto porque o género de trabalho mais praticado por ele era muito semelhante à nossa filigrana. Por mais que uma vez estive na sua oficina, uma pequena palhota na tabanca da Ponte Nova. No chão uma pequena fogueira ladeada por duas pedras onde eram colocados os cadinhos para derreter os metais e onde, soprando com o auxílio de um maçarico de boca, se iam soldando os fios dos metais preciosos. Completava a oficina, uma pequena mesa com ferramentas rudimentares. Lamento não ter tirado uma foto das instalações, mas não tinha flash. Numa das vezes fui lá com a minha mulher e comprámos-lhe uma pulseira (ver foto). Mas talvez o mais espectacular é que era o artífice das coroas de ouro dos seus próprios dentes, serviço que não fazia a mais ninguém.

O Chame, Ourives de Bafatá, em dia de Ramadão frente à Mesquita, com os seus dentes de ouro.

Uma pulseira por ele executada, que adquiri numa das vezes que visitei a sua oficina.


O senhor Camilo

Tal como eu, oriundo do Nordeste Transmontano, suponho que de Mirandela, era muito sui generis. Nunca soube muito bem o que ele fazia em Bafatá e especialmente do que vivia. Que era endinheirado, isso era. Regularmente dava uns lautos jantares em sua casa (junto à sede do Batalhão), para os quais convidava todos os oficiais (do Agrupamento, do Esquadrão e do Batalhão). Várias vezes recebi esse convite mas nunca fui a casa do Sr. Camilo, essencialmente por duas razões. Primeiro porque ele só me convidava por eu ser oficial e, segundo, ironizando, não queria que, no caso de um atentado durante o jantar, todos os comandos de Bafatá fossem decapitados.


O senhor Teófilo

Figura controversa. Já foi dito por alguns que seria informador da PIDE, por outros que sempre por essa polícia política teria sido perseguido. Eu fiquei com uma terceira ideia dele. A casa que aluguei ao Sr. Humberto, na tabanca da Rocha, era em frente ao seu restaurante e por isso muitas conversas mantive com ele. Era muito agradável estar na sua esplanada, local estratégico, cruzamento de caminhos. Ali confluíam as estradas que vinham do centro da cidade, do Batalhão, do Agrupamento e do Esquadrão, de Bambadinca, de Nova Lamego (Gabu). Muitas nativas (e nativos claro) por ali passavam com as suas vestes coloridas. Para mim era pura distracção, para ele talvez não fosse só isso. Devo referir que principalmente pelas minhas funções (Oficial de Informações) nunca nas nossas conversas abordei qualquer assunto militar. Ele, no entanto, fê-lo por duas vezes, o que deu origem às duas únicas informações (creio que B2) que produzi no âmbito das minhas funções.

Uma vez, mal me sentei na sua esplanada, logo me interpelou:

- Então senhor Alferes, vão fazer uma grande Operação lá para o Gabu? Claro que eu sabia que se ia fazer um grande bombardeamento e arrasar a tabanca (da República da Guiné) frente a Buruntuma. Como sempre, não lhe adiantei nada. Do seu posto deve ter assistido à passagem de todo o material bélico deslocado para a Operação. Diga-se que, por essas e por outras, a referida tabanca foi completamente destruída e nem sequer um ferido houve…

Doutra vez, já quase no fim da comissão, sem que eu lhe desse azo a isso, disse-me:

- Sabe, senhor Alferes, ouvi dizer que andaram aqui perto, nas tabancas a Norte da pista, elementos IN a contactar as populações. Ouvi, calei, fiz a respectiva informação B2 e continuei a minha vida com uma única alteração: Nunca mais fui à caça à noite e de dia ia sempre acompanhado.

O senhor Teófilo e a esposa contribuíram em muito para amenizar a minha (e da minha mulher) estadia na Guiné. Recordo que aprendi com o senhor Teófilo a forma de fazer secar uma verruga com o auxílio de uma crina de cavalo. Também aprendemos com a esposa, a confeccionar a cachupa e o chabéu e que este melhorava quando o óleo era extraído do coconote na altura. Foi também com o casal que ficámos a saber que as chocas (perdizes) só ficavam tenras se se lhes tirasse a pele.

Várias vezes me falou do Amílcar Cabral, com quem trabalhou, em Fá, antes da guerra, classificando-o como um homem fora de série. Chegou a indicar-me uma irmãzinha (meia irmã) do Amílcar Cabral e que penso (passaram 40 anos) ser a que reproduzo na foto, que tirei precisamente da esplanada do seu Restaurante.

A irmãzinha (meia irmã) de Amílcar Cabral. Bafatá, 1970.

Mais algumas figuras poderiam ser relembradas: A Dona Rosa e as suas filhas, o empregado do Transmontana, Infali e as suas quatro mulheres, mas como na próxima estória irei tratar o tema “Alguns Lugares de Bafatá” aí referirei essas pessoas.

Até para a semana camaradas.
Fernando Gouveia

Fotos e legendas: Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5327: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (17): Apanhado pelo clima

4 comentários:

Luís Graça disse...

Mais uma vez obrigado pelas tuas memórias de Bafatá. Tão vivas, tão frescas, tão quentes!...

Concordo contigo, o Teófilo era um homem, no mínimo, misterioso, intrigante, mal amado pela tropa que o c onsiderava "turra"... A malta de Bambadinca passava por lá para beber o último copo, antes do regresso a penates...

Quem privou com ele foi o Manuel Mata, do Esquadrão de Cavalaria, o ERec Fox 2640, do meu tempo (1969/71).. Já deves ter lido alguns dos seus postes, na I Série do Blogue (Infelizmente, ele desapareceu...):


26 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLIV: Bafatá: o Café do Teófilo, o desterrado

29 de Março de 2006 >
Guiné 63/74 - DCLVIII: Comerciantes de Bafatá: turras ou pides ? (Manuel Mata)


http://blogueforanada.blogspot.com/2006_03_26_archive.html

Anónimo disse...

Caro Amigo Gouveia tenho lido os teus comentàrios vindos de Bafatà. O Coronel Neves Cardoso foi o Cmdt do Bart do sector L4 em Piche Bart 2857 .Quanto à Operaçao de Boruntuma ela foi no dia 27 de fevereiro de 1970 .O aquartelamento de Kandica ficou totalmente destruido houveram pelo menos 07 mortos comfirmados do lado da Guiné Conacry e um das NT de Artilharia. um abraço josé rocha

Humberto Reis disse...

Cá espero as notícias dos anos 60 da D. Rosa. Felizmente ainda é viva.Sou amigo de infância de um dos genros, o Evaristo Cruz do BCAÇ 2856 (por questões profissionais encontro-me várias vezes com ele), da filha e do filho Danif(que foi alf pára quedista lá na Guiné e já passou à reserva como ten cor). Eu, o Cruz e o Danif de vez em quando bebemos um copo em casa dele aqui em Linda A Velha, arredores de Lisboa.
Um abraço
Humberto Reis

ruirodrigues disse...

caro amigo:
Estive com o coronel Danif, no colégio CNA de tomar, na guiné em bissau e cutia.
Era enorme satisfação obter o contacto dele, pois eramos muito amigos.
Agradecia resposta para o mail: rui7121949@hotmail.com.
Muito gostaria obter o telemovel
aguardo
Obrigado