segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5377: Blogoterapia (132): Fotos, recordações e divagações (Juvenal Amado)

1. Mensagem de Juvenal Amado*, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 28 de Novembro de 2009:

Caros Luís, Carlos, Virgínio, Magalhães e restante Tabanca Grande:
Hoje apeteceu-me falar dos meus avós, de bajudas e coisas simples que contribuíram para o que sou hoje.
Um abraço
Juvenal Amado



FOTOS, RECORDAÇÕES E DIVAGAÇÕES

Começou por ser um punhado de fotografias mais um monte de recordações mal alinhadas na minha cabeça.
Eram recordações e vivências rejeitadas, fora um tempo de que não me orgulhava particularmente.

Tudo em que acreditava rejeitava o que ia fazer em terras estranhas. Mas o poder da aventura o sentir que passado esse tempo voltaria às ruas e praças da minha juventude, fez-me conformar com a sorte e lá embarquei para aquele destino desconhecido, um entre milhares de anónimos.

Oriundos de um país com muros altos, onde a paz podre se definia popularmente pela politica do três F, com os ideais do meu avô republicano das barricadas, condenado à deportação e salvo pela instauração da Republica, éramos amarfanhados por uma polícia política, onde se falava à socapa da merda mole ou da propriamente dita...dura.

Homem nascido lá para Mangualde,  que serviu sem se servir, que deu aos filhos somente os ideais pelos os quais lutou, sofreu e fez sofrer. Casa simples e pobre, embora parente de famílias endinheiradas, (os pobres gostam de ter família rica, os ricos acham que aqueles parentes foram com o mesmo nome registados por engano),  solidário, repartia o que tinha para 7 (sete) filhos da altura, (chegou aos onze) , com quem chegasse à sua modesta casa.
- Deolinda, põe mais um prato na mesa.

A minha avó levantava a cara da camisa onde cozia um botão, olhava para o retrato dele e depois para mim,  com aqueles olhos míopes, através das lentes grossíssimas, talvez para ver o efeito que as suas recordações tinham em mim, que o não cheguei a conhecer.

Dele também herdei somente o nome, o seu amor às causas do Homem pela justiça e distribuição mais equitativa da riqueza.

Os netos combateram nos três teatros de operações, o mais novo com idade militar participou no levantamento das Caldas da Rainha,  em 16 de Março 1974.

A rudeza das condições de vida dos nossos jovens nos campos e nas fábricas, forneceram as condições físicas para aguentarem,  sem revoltas, o que mais nenhuns por essa Europa livre e próspera suportariam.

São muitos os actos de coragem calados pelos  próprios intervenientes, esses são valentes a dobrar. Muitos nunca tiveram consciência da bravura dos seus actos. Não se escolhe o momento, a acção justifica o acto.

Passados trinta e quatro anos sobre o regresso, apeteceu-me reviver e contar o que nunca tinha contado a ninguém. Se calhar,  também nunca ninguém tinha querido ouvir. O chegar ao blogue deu-me essa oportunidade de assumir,  fora de um pequeno grupo de pessoas, que tinha lá estado e que a vontade de lá voltar era uma realidade.

Leio os postes concordo, discordo com alguns, emociono-me com outros, vejo este espaço como um espaço de liberdade aceite e consentida, onde cada um tem a sua visão. Não é obrigatório que não se mude de opinião.

Bebo toda a informação que me chega. Lamento que as nossas televisões filmem em locais restritos, que foquem mais as pessoas que os sítios. Tento ver aquele pedaço de Bafatá, de Gabu, Bissau, etc, que possa reconhecer, mas as grande angulares das câmaras de filmar ficaram esquecidas e normalmente só nos chegam imagens,  as quais não conseguimos referenciar.

Revejo as fotos. Como estará a minha lavadeira Mariama. Era uma menina quando no início da comissão a aceitei, duvidei sempre que fosse ela que me lavava a roupa.

Na Tabanca com a minha lavadeira, Mariama,  e irmãos

Aparecia sempre com crianças mais pequenas de olhos grandes e barrigas inchadas da subnutrição. Pedia-me sempre um peso para comprar sabão ou linha para coser botões. Mentira, nunca comprava sabão e os botões eram cozidos com fios de várias cores que elas tiravam dos seus panos.

No fim da comissão fui com ela comprar-lhe um corpinho à venda que, para além de vender algumas coisas à população, também comprava mancarra aos agricultores, roubando deliberadamente no peso. Dizia ele que era para descontar a terra que vinha agarrada à casca do amendoim. Enfim, lá como cá, roubava-se sempre os mesmos, os mais pobres e desfavorecidos.

Mas voltando ao corpinho, máxima aspiração das jovens bajudas que assim teimavam em tapar o que nós mais gostávamos de ver. Lá escolheu e lá se tapou muito orgulhosa.

No dia da partida lá estava ela mais os garotos à sua volta com o corpinho vestido a dizer-me adeus quando passei a caminho do Xime, pela última vez trinquei e esfreguei os olhos do pó da picada.

Mas lá está imortalizada na minha cabeça e nas fotos que ganharam valor inestimável à medida que os anos passam por mim.

Como todos os que já se foram lá e cá, que por estranho que pareça continuam a ser recordados (os nomes de cada um é dito todos os anos num momento de recolhimento) como baixas do 3872, nunca lhes retirarão esse estatuto, pois eles estão no tal punhado de fotos e recordações.

Juvenal Amado

Fotos: Juvenal Amado (2009). Direitos reservados.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 1 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5041: Estórias do Juvenal Amado (23): O velho milícia

Vd. último poste da série de 23 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5328: Blogoterapia (131): Sobe a calçada, camarada, sobe (Luís Carvalhido, CCS/BART 3873, Bambadinca, 1972/74)

4 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Caro Juvenal

Ontem, como hoje ... há sempre um amanhã e, amanhá já será o ontem.

É como dizes: no passado se projecta o futuro. Todos nós temos um passado mas, será que ainda teremos um futuro?

Mesmo sem futuro faremos que o nosso presente seja humano.

Um abraço

Torcato Mendonca disse...

Gostei.
Ao ler senti e reli uma ou outra descrição.
Recorda e divaga Camarada.
Um abraço fraterno e bom feriado.
Torcato

Luís Graça disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Luís Graça disse...

Meu caro Juvenal:

"Não é preciso mudar de opinião" para se ser membro deste blogue, dizes tu. Não é, nunca foi, nunca será, garanto eu...

Se nos aguentámos até agora, desde Abril de 2004, é porque somos um espaço de liberdade, tolerância, respeito mútuo, crítica serena e objectiva, frontalidade, generosidade, solidariedade, camaradagem...

Tu és um bom exemplo disso: nunca te armaste em vítima nem herói, nunca precisaste de rebaixar um camarada para te mostrares no palanque...

Congratulo-me, por outro lado, que saibas aproveitar este espaço para, pegando nas tuas velhas fotos, nos transmitires as tuas memórias, histórias, emoções e inclusive segredos, sem o receio de vir por aí um "big brother", um "irmão maior", um "camaradão", a mandar-te calar ou a reprovar-te em público... "Por que não te calas, Juvenal?!"... (Espero que nunca oiçamos aqui frases infelizes como esta...).

Mau seria (ou mal será), squando tivermos a tentação (totalitária) de nos mandarmos calar uns aos outros, subvertendo totalmente o espírito e a forma deste blogue...

Também é verdade que estamos todos a aprender a "blogar"... e a conviver com as nossas diferenças. Às vezes temos dificuldade de pô-las em forma de letra, com a sabedoria e a elegância com que tu e muitos outros camaradas conseguem, felizmente, fazê-lo.

Não nego que não haja tensões e conflitos, entre nós... E é preciso que venham à tona, para a gente os poder enfrentar, abordar, partilhar, discutir, resolver, gerir... Para isso, temos que falar com franqueza uns com outros, como tu falas, como tu sabes falar...

Obrigado, amigo e camaradaJuvenal! Obrigado pela ternura com que falas do teu avô Juvenal, da tua avó Deolinda, da tua bajuda Mariama... Ou dos mortos do teu batalhão...