segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5327: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (17): Apanhado pelo clima

1. Mensagem de Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70, com data de 21 de Novembro de 2009:

Caro Carlos:
Mais uma estória, desta vez pequena e de pouco interesse, mas foi o que se pôde arranjar de momento.

Aproveito para dizer que acompanhei as sessões, no Clube Literário do Porto, (anúncio postado no Blog), de que gostei muito.
Aprendi mais umas coisas sobre a Guiné, através de alguns estudantes guineenses lá presentes.
Já tinha ouvido tocar cora várias vezes na Guiné mas num ambiente fechado e sem ruidos é simplesmente divinal.
Ontem assisti à projecção do filme Nha Fala, que achei de nível internacional, comparável a muitos outros filmes que tenho visto nas salas de cinema. Achei-o com certos ares do filme Gato Preto Gato Branco do Kusturica.

Um abraço
Fernando Gouveia


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ

17 – Apanhado pelo clima



À saída de Bafatá em direcção a Geba ficava a tabanca da Ponte Nova, onde tirei esta foto. (dois segundos depois só fotografaria a janela!)

Foto e legenda: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados.



Nasci ainda durante a 2.ª Guerra Mundial e comovo-me ainda hoje ao saber, por mo terem contado pois tinha dois ou três anos de idade, que o meu pai ia propositadamente ao bar da esquina, tomar um café sem açúcar, para o poder trazer ao filho, dado que nessa altura tudo estava racionado.

Quando fui estudar para o liceu em Coimbra, tinham passado uns escassos oito anos do fim da dita guerra. Lembro-me de ver em algumas janelas de edifícios públicos cruzes de papel colado, para os vidros não estilhaçarem muito no caso de um ataque aéreo, isto apesar de o nosso país ser neutral.

Tudo isto para dizer que quando fui mobilizado para a Guiné, só ainda tinham passado também uns escassos vinte e poucos anos do fim daquela guerra. Se ainda agora, passados quarenta anos, discutimos a nossa guerra, nessa altura, pelo menos em mim, ainda estava muito presente a guerra de 39/45.

Em Bafatá cedo fiquei a saber que na tabanca de Geba havia um comerciante alemão. Haveria por toda a Guiné muitos comerciantes metropolitanos e talvez muitos mais libaneses, mas existir um alemão metido em semelhante buraco logo me cheirou a esturro. Seria que era um fugitivo nazi?

Durante toda a comissão fui pensando no assunto, principalmente quando regularmente Geba era atacada e o nosso senhor Landorf aguentava firme no seu posto.

Como já várias vezes referi, muita sorte tive na Guiné. Em matéria de ataques fui um privilegiado. Em Bafatá era o que se sabia, paz. Em Bambadinca dormi lá uma noite mas o ataque foi no dia seguinte. Madina Xaquili, onde estive quinze dias, só começou a ser atacada passado um mês de ter saído de lá. Quando muito, de Bafatá via muito bem os ataques a Geba que, como era costume, eram sempre ao princípio da noite.

Estando eu a um mês ou dois do fim da comissão, apanhado pelo clima quanto bastasse, resolvi, no dia seguinte a um desses ataques, ir com a coluna de reabastecimento a Geba. Dois propósitos se impunham: Um era ver como tinha ficado a tabanca depois daquele fogachal todo, o outro era ver o Sr. Landorf e perscrutar, se possível, se realmente tinha ar de nazi ou de um simples civil alemão que teria vindo para aquele buraco refazer a sua vida.

A coluna de reabastecimento, feita pelo Esq. Fox. aquartelado à nossa beira, partiu só ao fim da tarde contando regressar no mesmo dia. Eram pouco mais de 10 Km e a picada era muito boa.

Pedi autorização aos meus superiores e lá salto para cima de um Unimog com a farda que trazia vestida e completamente desarmado. Um autêntico turista. O que aquele clima provocava! É certo que sabia que além dos ataques nunca tinha havido problemas no itinerário Bafatá/Geba, nem emboscadas nem minas.

Em determinada altura do percurso, a uns 2 ou 3 Km de Geba, o Furriel que comandava a coluna mandou-a parar, ao que foi dito, por alguém se sentir indisposto ou coisa parecida. Quase todo o pessoal desceu das viaturas, tendo eu ficado em cima do Unimog. Já estava a anoitecer mas ainda deu para ver, a uns 200 ou 300 metros da cabeça da coluna, um elemento africano atravessar a correr a picada de um lado para o outro. De imediato dei conhecimento disso ao Furriel mas ele não valorizou o ocorrido. Poderia muito bem ser o abortar da primeira emboscada IN no percurso Bafatá/Geba à coluna de reabastecimento. Eu estava no fim da comissão mas os camaradas do Esquadrão, que ainda ficaram por lá muito tempo, é que podem confirmar se passou, ou não, a haver aí emboscadas ou minas a partir Junho de 1970.

Termino referindo que, pelo atraso provocado pela paragem da coluna, chegamos já noite a Geba e foi só descarregar os géneros e as munições regressando de imediato a Bafatá. Não tive pois oportunidade de ver os estragos e tão pouco o Senhor Landorf. Foi uma tremenda desilusão mas ainda hoje penso que, já no fim da comissão, não devia ter feito o que fiz. Muitos camaradas tiveram o azar só nos últimos dias.

Na próxima estória, e de regresso a Bafatá, vou falar de algumas figuras típicas da cidade.

Até para a semana camaradas.
Fernando Gouveia
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Novembro de 2009> Guiné 63/74 - P5262: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (16): O baptismo de fogo da Regina, ou um Capitão não é um Capitão

4 comentários:

Unknown disse...

Caro Amigo Fernando Gouveia

Quando estava-mos no termo da comissão dava-nos para descurar as mais elementares regras de sobrevivência. Não sei a que altura te referes, mas em Fevereiro de 1968
aquando da retirada da Minha Companhia de Madina do Boé no Esquadrão Fox que foi fazer segurança
à Compª que nos rendeu e trouxe a nossa de volta houve 2 voluntários
que segundo os tripulantes da outra Fox passavam à peluda daí a cinco dias. Ora como tinham passado uma comissão inteira sem nada lhe ter acontecido, iam sem o respectivo capacete. E então aconteceu o impensável. Como iam ao lado do Unimog onde eu seguia cairam numa mina. O apontador que ia em pé na torre voou e pouco lhe aconteceu, mas o condutor foi cuspido do banco
contra a estrutura da torre e ficou com a cabeça desfeita.Quando lá cheguei já não havia nada a fazer.
Foi morte instantânea com perda de massa encefálica.Mas mais desastres se deram devido ao facilitismo que nos atacava no termo da comissão.
Um abraço
Armandino Alves
Ex 1º Cabo Enfº
CCaç 1589

Hélder Valério disse...

Caro Fernando Gouveia

Apesar de pequenas, às vezes, as tuas histórias conseguem descrever sempre muito bem o ambiente em que se desenrolam.
Quanto à situação que relatas e que constactas que para o fim havia a perigosa tendência para descurar, isso certamente assenta na idéia peregrina que 'havíamos alcançado a imortalidade' e por tal nada nos aconteceria...
Mas, algumas vezes, o Diabo teceu-as....
Ainda bem para ti que nada te sucedeu.
Um abraço
Hélder S.

Maltez da Costa disse...

Caro amigo Fernando Gouveia: Reviver Bafatá, passados 40 anos, dá-me uma angústia enorme, porque tu consegues trazer-nos à memoria coisas e factos, que parece que se passaram há quarenta dias e não há quarenta anos. Eu embarquei para a Guiné em rendição individual em 10.06.1968 e o meu destino foi o Comando de Agrupamento em Bafatá, para trabalhar no Posto de Rádio que existia no Comando Esquadrão Fox, mais conhecido pelo Posto do STM. Regressei em Julho de 1970. Dormi durante muito tempo no Comando de Agrupamento. Recordo quase todos os factos que relatas, no entanto não me recordo de ti.Diz-me se é possível ter-se saudade de um tempo passado na Guerra, porque já não sei se serei uma pessoa normal, porque eu fico muito emocionado com os teus relatos. Bem hajas e continua.
1.º cabo do STM - Maltez da Costa

Anónimo disse...

Caro Maltez da Costa:
Gostava muito de trocar impressões contigo, mas não tenho nenhum contacto teu. Através do Luis Graça podes saber o meu endereço eletrónico. Também fui e vim da Guiné nos mesmos meses que tu. Penso que me lembro muito bem de ti. Vê as estórias que escrevi sobre Bafatá e nomeadamente a do Poste 5159 em que numa foto devemos estar a almoçar juntos, uns coelhos que tinha caçado juntamente com o Cabo Russo da Arrecadação.
Um abraço.
Fernando Gouveia