quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5106: História da CCAÇ 2679 (28): Mais visões quotidianas (José Manuel M. Dinis)

1. Mais um episódio da série História da CCAÇ 2679 enviado em 11 de Outubro de 2009 por José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71.


Mais visões quotidianas

De alguma maneira, lá, a vida parecia-se com a de uma dessas terras do farwest americano: não havia xerife, mas havia a Sala do Comando; não havia o saloon nem duelos, mas havia a Cantina onde se produziram cenas de porrada por causa de um copito que extravazava a medida; não havia currais para leiloar o gado das planícies, mas havia o arame que delimitava a acção das bestas; não havia índios, mas havia a população de pretos que viviam como nas reservas; o pessoal não vestia os uniformes jeans, mas apresentava-se com característicos camuflados; o pessoal não usava coldres ou rifles, mas andava armado em parvo, ou de G3 nas unhas. Eram de facto muitas as semelhanças com o farwest que alimentava as nossas memórias da juventude, através de leituras e observação de desenhos alusivos a uma plêiade de heróis, Ciscos e Zorros, Tontos e Silveres. O avanço perene da civilização, todavia, fizera substituir o transporte com recurso a cavalgaduras, por esse invento mecânico das viaturas a gasolina ou diesel, desenvolvidas e adaptadas às dificuldades climatéricas e rodoviárias.

A incerteza do dia-a-dia em que viviam os homens que conquistaram o território americano, era comparável com a mesma incerteza dos militares que tinham por missão, defender e consolidar o território conquistado e demarcado havia décadas. Com algumas diferenças relativas às cenas que o cinema westerniano popularizou, não havia duelos de pistoleiros, mas aconteciam ataques à fortificação, genuínos, com recurso a armamento mais destruidor, muito mais excitante do que os tiros de pólvora sêca e os rebentamentos controlados que os filmes gravavam. Além disso, os atiradores da 2679 saíam para o mato, não em quadrilhas, mas em grupos de combate que procuravam pistas do inimigo, para os combater e aniquilar. Corriam-se riscos verdadeiros a troco de quase nada. Relativamente às lutas protagonizadas pelas estrelas de Hollywood, os nossos militares ainda corriam o risco suplementar de pisar minas anti-pessoais, que garantiam, no mínimo, a perda de um membro, ou, seguindo de viatura, minas AC, que provocavam deflagrações de alguns quilos de explosivos com consequências indeterminadas.

Feitas as anteriores comparações básicas, separadas por um século na medida do tempo e da evolução, deve-se acrescentar que aos nossos mobilizados, dentro das zonas de quadrícula, ainda competiam tarefas quotidianas próprias da vida aquartelada, dado que era preciso garantir as actividades mínimas necessárias, como a cozinha, onde se preparava o rancho, a padaria adjacente, a oficina mecânica, a enfermaria, as transmissões, os depósitos de géneros e armamento, o gerador, etc, bem como as guardas e sentinelas.

Quer-se dizer: em pleno século vinte, mal conviviam as duas comunidades: os portugueses, dominadores, conviviam com a população preta na medida em que precisavam da prestação dos seus serviços, principalmente da parte feminina da população, e de umas trocas comerciais básicas, em que, por vezes, tinham que adjectivar os circunstanciais vendedores e resmungar umas ameaças para conter a inflação, enquanto de outras vezes eram vendedores de verdadeiras especiarias, como o vinho, devidamente crescido com uma razoável percentagem de água, umas peças de roupa, e alguma quinquilharia que esbugalhava os olhos ávidos de novidades e de progresso, conjunto de acções, através das quais exerciam um quotidiano civilizador. Era mais ou menos assim e, não nos esqueçamos, os portugueses são, seguramente, o povo mais miscegenador de entre os brancos.

Sob os alpendres molengavam os rapazes-atiradores, sempre que lhes sobrava tempo de qualquer actividade. Aqui, vivia-se perto do leste mais distante, considerado o território da Guiné, e Bissau como epicentro. Em Bajocunda sofria-se na iminência do esgotamento de stoques. Distante dos centros de decisão, das exigências e formalidades, na dependência de um xerife bastamente nabo, eram os milicianos que garantiam alguma proficuidade naquele pequeno bastião.

Mas havia vida para além da tropa. De facto, ali residia uma população que se dedicava a trabalhos de subsistência. No geral, os locais dedicavam-se a tarefas agricolas ou à pastorícia, e eram sedentários, e pouco conheciam do mundo para além do seu torrão. Deslocavam-se em visita a familiares, de um lado e outro da fronteira, ou em busca de uma qualquer mezinha. Não havia meios de transporte, pelo que faziam grandes distâncias a pé, auxíliados pela estimulante cola, que obviava à fome e à sede, garantindo energia. As comunicações sobre o mundo escasseavam e, na época, naquelas latitudes vivia-se os primórdios da rádio e as pessoas ainda não tinham despertado para as notícias em geral. Viviam no seu modo ancestral e quase fechado. A bicicleta era outra raridade a que poucos tinham acesso.

Na loja do Silva, prenhe de novidades e artigos de iminente necessidade, gastavam os parcos pesos na compra de panos, velas, fósforos, óleo, sal, sabão, tachos, panelas, e outros produtos básicos. Sob o alpendre da loja trabalhavam dois ou três alfaiates, que dominavam a técnica das máquinas de costura a pedal. Ao Silva vendiam parte das suas colheitas que ele intermediava com as grandes casas exportadores. Ainda funcionava outra casa comercial, e existia uma terceira de portas fechadas por força da idade avançada do proprietário branco. Noutro local funcionava irregularmente o talho, uma estrutura de paus, onde o magarefe suspendia as peças de carne, retalhava e vendia. Os animais eram abatidos no mato, e carregados às costas até ao sítio da venda. Na falta de frigorificos, o magarefe tinha que garantir a venda no dia de abate, pelo que era frequente deslocar-se a três ou quatro aldeias, para não ficar com sobras, onde os clientes compravam pequenas quantidades. As moscas redemoinhavam em redor das carnes ensanguentadas, como no Portugal antigo.
Outra romagem diária das populações era a visita à Enfermaria, em busca de cura para febres e inchaços, feridas e mezinhas que não tinham dado os resultados pretendidos. Eram sobretudo mulheres e crianças, que se juntavam numa algaraviada e choros incessantes. Lá, aplicava-se o que de melhor era produzido pelo Laboratório Militar, numa profusão de compressas, tinturas, comprimidos e injecções.

A meio da manhã ouvia-se a batucada de pilões, que transformavam o milho em pirão, a que se sucedia e espalhava o perfume característico dos cozinhados africanos com dendém. Era a hora de ponta, quando os militares começavam a deslocar-se para o centro, agrupavam-se em conversas e dichotes, a fazer tempo para o rancho.

A loja do Silva, com os alfaiates e clientes sob o alpendre

Estrutura de paus que servia de talho

Fotos: © José Manuel M. Dinis (2009). Direitos reservados



Outras vidas, outros caminhos

A vida estava a correr-me bem. Certamente que um imperativo de guerra podia provocar algum dano em algum de nós, que as colunas auto e as flagelações constituiam riscos consabidos, mas a minha vida melhorara bastante. Por um lado, o pessoal não me obrigava a especiais cuidados, quando o Pelotão estava escalado para o serviço interno, cada elemento sabia sabia o que tinha para fazer, e fazia; por outro, a actividade operacional, no que a saídas a pé dizia respeito, diminuíra consideravelmente, pois não havia saídas repentinas, conforme os palpites ou informações do Major de Piche. E não sei, se por distrção do COT-1, se por opção do Capitão, se por qualquer pressão ou relaxação, a verdade é que, apesar da tropa disponível, as coisas amainaram, e não tinham comparação com o que se praticara na sede do Sector L-4,

Queixas constantes eram as relativas à qualidade do tacho, na base da bianda com estilhaços, com algumas variantes para o esparguete e as salsichas de conserva. Alguém se enchia, seguramente, e como o Trapinhos era meio tonto, denunciava a ganância dos sargentos que tentavam ludibriá-lo na negociata, como se a partilha justa entre os três desse legitimidade ao gamanço. Era rídiculo, mas era assim, o mais alto responsável pela Companhia, o Capitão, confessava-se através de acusações espúrias aos capangas, o Primeiro e Segundo Sargentos.

Indiferentes a estas guerras, o pessoal continuava a dar o seu sacrifício em todas as circunstâncias e necessidades.

Uma noite que me calhou passar em Tabassi, interroguei o chefe de tabanca sobre o destino das armas que lhe foram entregues para a auto-defesa. Tinha sido assim mesmo, cerca de vinte armas G3, novas, ali distribuídas, nunca mais foram vistas. Referi-lhe que queria inspeccioná-las.
Tranquilo, muito tranquilo, com ar quase zombeteiro, o chefe de tabanca respondeu que o pessoal que as recebera andava a trabalhar na mancarra, ou na pastoricia, ausentes, portanto, pelo que não podia apresentar as armas. Insisti com ele, tratei-o por mentiroso. Perguntei-lhe se não havia homens na aldeia àquela hora e exigi que me levasse à preseça deles nas moranças. Contrariado, arrancou à minha frente por um caminho que levava à bolanha, do lado sul. Já tinha escurecido, escuro mais acentuado pela sombra das frondosas árvores que se interpunham com o fraquíssimo luar de um quarto crescente ou minguante, que me deixava à deriva no breu, e obrigava-me a um esforço de perseguição orientado pelo ruído da deslocação daquele ordinário, cada vez com mais distância entre nós, por força de duas ou três cabeçadas que dei em obstáculos invisiveis.


O cabrão gozou comigo

Na vez seguinte da minha presença na aldeia, mal ali cheguei, ainda na vigência da luz solar, dirigi-me à tabanca do chefe. O homem, acompanhado de outros homens grandes, três ou quatro, esperava-me, altivo, pernas abertas e braços cruzados sobre o peito, deixando ver duas granadas defensivas suspensas do pano que lhe servia de cinto.

Entrei a matar e sem delongas, se era então que ele tinha as armas para me mostrar. Que não, foi a resposta. Dirigi-me a ele, tirei-lhe as granadas e adverti-o de que não o queria voltar a ver com aquelas bombas, enquanto de seguida o molestei ostensivamente, referindo que ele não prestava, que era um merda de chefe de tabanca.

À surpresa dos velhos, e ao olhar atónito do visado, virei costas e fui à minha vida. Das armas nunca tive notícia. Nem parece que isso fosse importante.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5012: História da CCAÇ 2679 (27): Da História da Unidade (José Manuel M. Dinis)

3 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Zé Manel
Mais uma vez dou por mim a ler os teus relatos.
Gostei da idéia da semelhança que arranjaste entre aquele "decor" e os filmes do faroeste do nosso tempo. Bem "esgalhado"!
Também gostei da descrição que fazes da rotina, do dia-a-dia, na tabanca e no quartel.
Agora, quanto ao teu encontro com o "homem das granadas", parece que não te deste nada bem...enfim, deu para contar, não é verdade? mas só isso!
Um abraço
Hélder S.

Juvenal Amado disse...

Zé Dinis
O blogue tem destas coisas.
Entre assuntos sérios aparece uma coisa saborosa, que se lê de corrida e quando damos por nós, estamos a rirmos com a boa disposição de quem escreveu.
Ente vários assuntos que focas, há um que me recordo e quando penso nisso, ainda fico um pouco "enjoado".
Um dia fui buscar uma vaca, que como de costume o quartel comprava e mandava matar.
Cheguei antes do animal estar morto e o que vi, foi o dito ser deitado com o pescoço torcido, com os cornos espetados no chão e a garganta ser cortada como quem serra um tronco de árvore.
Se fosse de um só golpe ainda vá mas o suplício infligido agoniou-me.
Bom um resultado final foram os ditos estilhaços feito pelo cozinheiro Nascimento ou o "Risinho".


Um abraço
Juvenal Amado

JD disse...

Caro Helder,
De facto só deu para contar. Mas se puxares pela parte encefálica, dá para pensar se a distribuição de armas era parte da política "Por uma Guiné melhor"?
Se foi, parece-me que a tropa devia ter preocupações, mas não sei se alguém estaria obrigado a qualquer coisa.
Também não sei se as armas se eclipsaram, ou se foram utilizadas contra nós.
Afinal, parece-me, entregar vinte G-3, e não ter preocupações com elas, parece-me objectivamente mais grave, do que entregar uns bidons de gasoil.
Do acontecido cheguei a ser acusado de mau procedimento, pois nunca se deve desautorizar o chefe de tabanca.
Mas ninguém se referiu à forma leviana da entrega do armamento, nem à passividade perante o desaparecimento.
Tal tá a moenga? perguntaria o compedre.
Como isto de ter, ou deixar de ter razão, é coisa subjectivíssima, não te prego dois pontapés, antes, um abraço.
J.Dinis