sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P5013: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (8): A Poderosa Rainha

1. Das Gavetas da Memória de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, saiu esta história/refexão sobre nós, como sentimos Áfica e como a vivemos naqueles longínquos anos.


Gavetas da Memória

A Poderosa Rainha

Acordei a meio da noite com uma sensação estranha que nunca tinha sentido. Saí da cubata para o meio da aldeia tentando adivinhar que mistério seria aquele que sentia crescer em volta de mim. A lua já se tinha escondido e dera lugar a uma espantosa toalha de luzinhas fulgurantes que se deixavam cair, langorosamente, sobre a minha cabeça, cobrindo-me como um manto da cabeça aos pés.

Foi então que me pareceu ouvir os sóis, as estrelas e todos os corpos celestes. Era um zumbido muito leve que apenas se deixava adivinhar. Era como um coro de anjos fabulosos, vindos lá do fim do Universo, afogando-me numa tal estupefacção que fiquei ali, pregado ao chão, de olhos esbugalhados.

Quando recuperei da surpresa procurei uma tosca plataforma de troncos onde os homens se reuniam durante o dia e ali me deitei, com os braços abertos em cruz, deixando que todo o céu desabasse sobre o meu corpo estarrecido.
Naquela tabanca, edificada numa pequena elevação que parecia estar no umbigo do Mundo, avaliei profundamente, a verdadeira dimensão de todos nós, pobres seres pensantes que julgamos tudo dominar. O tempo rugia nas roldanas do mundo que vogava pelo infinito, sem destino.

Num silêncio sepulcral toda a aldeia dormia sob um manto mágico que parecia proteger as casas, os homens, os animais e dar mais força às árvores dispostas agora em redor, velando por nós como sentinelas atentas.
Quando julguei que apenas eu era testemunha daquela revelação, vi um pequeno clarão e o acender de um cigarro de alguém que como eu, estava evidentemente com insónias.
Era o alferes Machado.

Na véspera tínhamos recebido uma mensagem de Bissau que o surpreendera tanto a ele, como a todos nós. Viriam brevemente buscá-lo para uma missão que diziam ser da mais alta responsabilidade. Acabara de ser nomeado oficial adjunto do Governador.
Naquela tarde, mal soubéramos da novidade, tínhamos ido todos festejar para a Cantina e ele acabou por pagar várias rodadas de cerveja como se estivesse fazendo as despedidas finais, como se tratasse do embarque de regresso à metrópole.
Mas o entusiasmo acabou por abrandar, pois era só uma mudança de morada. O pior seria depois, com as fastidiosas recepções oficiais, os salamaleques imbecis para agradar às gordas matronas dos oficiais superiores, sempre de ar muito cansado como se carregassem o enorme fardo daquele guerra absurda e irreal, dos salões com ventoinhas por todos os lados, dos olhares laterais da criadagem, das cozinheiras sempre na espreita de alguma oportunidade para consumarem a vingança por ancestrais humilhações (?)

Seria uma boa vida, claro! Mas o que diriam os antigos camaradas? Aqueles que ficaram roendo o capim debaixo de um sol pavoroso?
O preço a pagar iria ser muito alto. E isso atormentava-o como um ferro em brasa espetado no peito.

Em vão procurava ânimo e sossego na quietude da noite e viera comigo para aquela tabanca na tentativa de um esquecimento total que tornasse toda a realidade num mundo de brincadeirinha, de história em quadradinhos que logo arrumamos para o lado.
Agora sob a protecção de um magnífico manto de estrelas, sóis tão longínquos que a imaginação não pode alcançar, só assim podia acalmar a alma e sonhar que era outra vez menino, correndo de volta da saia da mãe.

Agarrou a arma e disparou uma rajada de fúria como se quisesse rasgar o véu negro da noite para deixar entrar de novo a luz da vida de verdade.
Ninguém respondeu. Ninguém se atreveu a acordar.
Ficámos ainda calados um bom pedaço. As palavras tinham desaparecido, apenas a memória matraqueava nos nossos cérebros.

- Quando eras pequeno também gostavas de revistas com histórias aos quadradinhos? - perguntou ele, rompendo de súbito o silêncio. - Era apaixonado pelo Tintim - continuou sem me dar tempo a responder. – O meu pai mandava-mo vir directamente da Bélgica, por intermédio de um parente que lá morava.

- Tem graça! - respondi, surpreendido pois nunca poderia imaginar vir encontrar alguém, aqui na negrura de África, que também tivesse tido uma infância parecida com a minha.

- Nos meus tempos de miúdo esfarrapava tudo o que eram revistas de quadradinhos ou banda desenhada como agora lhe chamam. Era o Cavaleiro Andante e o Mundo de Aventuras coleccionados religiosamente e rivalizando um com o outro. Que saudades isso agora me veio fazer!

E o resto da noite foi passado quase sem darmos por isso a evocar as doces recordações de infância, espantando com a maior das eficácias, os medos, as angústias que o mistério do futuro imediato, o inesperado da morte, há tanto tempo nos perseguia.

Dois adultos ainda com sonhos de criança, sob um céu cravejado de estrelas, no meio da imensa noite africana.

Nunca tinham estado tão perto do firmamento, nunca tinham sentido aquela estranha sensação de vertigem em direcção do espaço infinito, de sentir sobre os ombros o peso colossal do cosmos ali tão perto, quase ao alcance da mão.
Era então este o verdadeiro mistério da noite africana, a mágica iniciação da adoração de Mãe África, a poderosa Rainha?



Fotos: © Carlos Geraldes (2009). Direitos reservados
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Nota de CV:

Vd. poste de 21 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4988: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (7): A Mina

3 comentários:

Antonio Graça de Abreu disse...

Gostei muito do teu texto.
Mas "cubatas" não será em Angola?
Um abraço.
António Graça de Abreu

José Marcelino Martins disse...

Ao Antoine de Saint-Exupery


Quando o reescrever o "Principezinho", por favor incluir este texto.

Gostei imenso!

José Martins

Hélder Valério disse...

Caro Carlos Geraldes

Estas tuas reflexões são de facto muioto mais profundas do que porventura aparentam.
Para mim acabam mesmo por ser a verbalização de coisas, sentimentos, interrogações, que por vezes me inquietam.
Escreves:
"Dois adultos ainda com sonhos de criança, sob um céu cravejado de estrelas, no meio da imensa noite africana.
Nunca tinham estado tão perto do firmamento, nunca tinham sentido aquela estranha sensação de vertigem em direcção do espaço infinito, de sentir sobre os ombros o peso colossal do cosmos ali tão perto, quase ao alcance da mão.
Era então este o verdadeiro mistério da noite africana, a mágica iniciação da adoração de Mãe África, a poderosa Rainha?"

Acho que a resposta está dada e só pode ser SIM!

Um abraço
Hélder S.