quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P5006: O segredo de... (8): Joaquim Luís Mendes Gomes: Podia ter-me saído caro aquele pontapé no...

1. Mensagem de Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins, (Como, Cachil, Catió, 1964/66) (*), com data de 6 de Agosto de 2009:

Caro Luís

Aqui te mando o relato duma vivência real que vale o que vale para ser ou não publicada. Vós o direis.

Um abraço
O blogue continua um monumento de História!
J.Mendes Gomes


Guiné > Região de Tombali > Catió > Quartel
Foto: © Vítor Condeço (2006). Direitos reservados


PODIA TER SAÍDO CARO AQUELE MEU PONTAPÉ NO…

Eu era um simples Aspirante a Oficial. Não tinha culpa de levar a sério a minha posição. Já tinha estado no RII 19 no Funchal nos meus primeiros meses de activo depois do curso de Oficiais Milicianos em Mafra.

Destacado para Évora para preparação da Companhia que me iria levar para o Ultramar, eu levava as minhas responsabilidades muito a sério. Se era para ser Oficial de Dia ao Batalhão, era mesmo Oficial de Dia.

Pela Porta de Armas passava toda a tropa do quartel. Da graúda à miudinha. Ai do sentinela que não cumprisse o seu papel.

Volta e meia era chamado a passar revista ao grupo de soldados que se juntava à Porta de Armas, mortinha por sair.
- Dá licença, meu Aspirante? Está tudo pronto para a revista. – dizia-me o Sargento de Dia, bem perfilado à minha frente.
- Já lá vou - respondia.

Eram p’raí uma dúzia. Em sentido. Em linha rigorosa. Passava diante de cada. Mirava-lhe a barba. O cabelo. A farda. As botas. Tudo tinha de estar a brilhar.

Um dia, um deles, provocador, apresentava-se desalinhado. Boné à rufia. Barba por fazer. As botas baças. A farda suja.
- Ouve lá. Por acaso viste-te ao espelho, lá na caserna?
- Não, meu aspirante. Na caserna não há espelhos. – respondeu prontamente, pensando que tudo estava resolvido.
- Ouve lá. É preciso um espelho para veres o estado dessas botas? Há quanto tempo não vêem graxa?
- Ó meu Aspirante, o meu pré não dá para graxa, muito menos para dois pares de botas… ainda esta noite, voltámos de madrugada de correr montes e vales... não consegui melhor. – adiantou ele, todo triunfante.

Nesse momento, ocorreu-me perguntar:
- Está aqui algum camarada de pelotão deste soldado?
- Estou eu - respondeu uma voz.

Abeirei-me dele. Vi-lhe as botas e a farda. Impecável. Chamei o outro à frente.
- Conheces?
- Conheço. É do meu pelotão.
- Olha para as botas dele.

Ele olhou. Eu olhei-o. A cara manteve-se-lhe inexpressiva. Nenhum sinal de concordância ou desacordo.

Podia cortar-lhe a dispensa de saída. Não. Preferi agarrar-lhe os ombros. Voltei-o de costas e desfechei-lhe um pontapé no…
- Agora, vais para a caserna, arranjas a barba, limpas as botas e apareces cá quando tiveres tudo em ordem.

Tudo voltou ao normal.

Quando voltei para o meu gabinete, senti-me um pouco perturbado com a atitude que tomara. Não era muito frequente. Mas acontecia, de vez em quando, com outros oficiais. Fazia parte da cultura militar.

Não deixei de dormir. O soldado tinha sido arrogante demais. Bem sabia que não estava em ordem. E ousou.

Nunca mais foi preciso repetir. Quando eu estava de oficial de dia, tudo corria às maravilhas.

O tempo passou. A recruta e a especialidade foram tiradas e chegou a hora de partir para o Ultramar. O meu Batalhão foi desmembrado. Duas Companhias destacadas para a Guiné e uma para Moçambique. Coube-me a Guiné.

Passaram-se uns largos meses. Já estava na Guiné. A minha Companhia tomava parte numa grande Operação no sul. Na região de Catió. Para além dos Comandos e de outras forças, estavam no terreno a Companhia de Bedanda e a de Cufar.

No final do dia, depois de diversos contactos com o inimigo, a minha Companhia encontrou-se com a de Bedanda, iam ambas pernoitar, no meio da bolanha, num ponto bem longe das matas onde tínhamos andado em actividade. Ambas tinham saído do RI 16 de Évora. Éramos mais ou menos conhecidos.

Entretanto há um soldado da Companhia de Bedanda que se me dirige.
- Dá licença, meu Alferes?
- Sim. Que queres?

Olhámo-nos. A cara dele não me era estranha. Ele fitou-me nos olhos com os seus. Vidrados. Calado.
- Que pretendes? - Adiantei-me. O intervalo já era demais.
- O meu Alferes não me conhece?
- Sim. Não me és estranho.
- Pois não. - Acrescentou ele.- Conhecemo-nos de Évora. - Adiantou.
- Sim – respondi, já meio atrapalhado, cá por dentro.
- Pois é. Lembra-se do pontapé que me deu... Na Porta D’armas?
- Já me lembro. – Respondi.

Terei ficado pálido. Senti-me perturbado com a surpresa. Mas acrescentei:
- E depois?
- Depois, sabe, meu Alferes... às vezes há uma bala perdida da nossa própria tropa… não se sabe de quem… até pode ser sem querer…

Fiquei estarrecido. Não dei parte de fraco.
- É verdade. Eu sei disso. Não me digas que também és desses fracos?… Achas que é caso para tanto?...
- É tudo uma questão dum repente, na hora certa. – Respondeu lívido, a tremer.
- Oh diabo. Acalma-te. O que lá vai lá vai. É passado. Agora, sei bem que me excedi. Desculpa lá… Quando chegarmos ao quartel, vamos beber uma cerveja os dois e vamos lá esquecer. Se calhar, tu no meu lugar terias feito o mesmo. Não achas? Ou puxavas da pistola Walter e davas-me um tiro?
- Um pontapé era capaz de dar. Um tiro nunca. – Respondeu prontamente.

Fiquei mais aliviado. Foi o que eu quis ouvir.
- Então porque me estás a ameaçar, aqui? Já te pedi desculpa.

Fez-se um silêncio. Pareceu uma eternidade. Depois, veio a resposta.
- Pronto, meu Alferes. Isto foi só para apagar a revolta que senti em mim e me tem acompanhado desde aquela altura. Já me passou muita coisa má pela cabeça. Precisava de me confrontar com o meu Alferes. A ver como reagia. Reagiu bem. Pediu desculpa. Por mim, fica tudo esquecido. Pode crer. Agora, já sou capaz de dar a minha vida para o socorrer...como a outro camarada qualquer.
- Posso retirar-me?
- Dá cá um aperto de mão. Quando nos encontrarmos, em Catió ou em Bissau, seja lá onde for, temos de brindar com uma bem fresquinha. Okey?
- Okey!

Escusado será dizer que naquela longa noite eu não preguei olho, de guarda a mim mesmo.

Foi uma boa lição… para o resto da vida… Até hoje.

Aveiro, 3 de Agosto de 2009
Joaquim Luís Mendes Gomes
__________

Notas dos editores:

(*) O nosso amigo e camarada Mendes Gomes, jurista reformado da Caixa Geral de Depósitos, foi Alf Mil da CCAÇ 728. Sobre a História desta unidade, vd. os seguintes posts:

5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu

29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez

11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)

8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha

22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo

11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar

1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG

20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia

2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo

20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

Vd. último poste da série de 24 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5002: O segredo de... (7): Amílcar Ventura: Ajudei o PAIGC por razões políticas e humanitárias

9 comentários:

Luís Graça disse...

Deixaste-me sem respiração, meu grande Palmeirim de Catió!... Mas que lição de humildade, humanidade, liderança, arte, vida, sabedoria, camaradagem ... Como é que a guerra, aquela guerra, a Guiné, moldou, aprimorou, aqueles dois homens!... E que homens, e que camaradas!...

São estes pequenos, grandes segredos, que queremos que venham ao de cima... É uma lição de vida, é uma "história com mural ao fundo", como eu gosto de dizer, que nos interpela, nos incomoda, nos deprime, nos acicata, nos orgulha ... Porra, estamos ali todos, ce corpo inteiro, de alma e coração!

Não, não somos "sacanas sem lei", mesmo tendo nascido e vivido e aprendido e evoluído numa época de apagada e vil tristeza. Há valores (que também são de uiniversalidade e de portugalidade...) que transcendem o efémero, o transitório, o local, o temporal, os regimes, os líderes (em quem não nos reconhecemos, que contestamos, etc...).

Há valores, grande Palmeirim de Catió, que bebemos com o leite das nossas mães e que foram reforçados com o exemplo da gente humilde mas valorosa que foram os nossos pais (machos)...

Permitam-me que quebre, de tempos a tempos, a minha impassibilidade, a minha objectividade, de múmia, de cara de pau, de bonzo, de sacerdote que tem de velar pela paz, harmonia e pelas boas regras de sã convívio da santa congregação... (Às vezes, também me apetece mijar fora do penico!).

Tudo isto para vos dizer, caros amigos e camaradas da Guiné, tabanqueiros, vizinhos, irmãos...que tenho orgulho em estar no meio camaradas como o J.L. Mendes Gomes que têm a grande honestidade intelectual e a humildade de nos vir contar estas pequenas grandes histórias do tempo em que andávamos todos a aprender a ser homens!...

Que magnífico regresso à nossa Tabanca Grande, Joaquim!

Juvenal Amado disse...

Caro Joaquim Gomes

Não foram poucas as estórias, de ajuste de contas entre soldados e oficiais que não tiveram esse teu final feliz. Se foram reais não sei.
Como tu dizes muito bem, que era uma certa cultura da época.
Um tio meu no tempo da 2ªG. Guerra, deu uma pazada num superior, por ele lhe ter chamado filho da p.... Se não estou em erro foi mobilizado para Timor, não chegando a embarcar.
Nós soldados fomos por pisados no nosso interior por "pontapés", que não doeram, mas ficaram gravados na nossa dignidade.
Foi muito corajoso e mostra de que cepa és feito o vires agora confessar, o que te incomodou estes anos todos.
Não tinha ainda lido nada teu, mas vou ler tudo podes estar certo, pois agradou-me sinceramente o que escreveste.
Certos estão os que dizem, que não é só de tiros e morteirada, que vive este blogue.
Lições de humildade com a tua, também são muito importantes.

Um abraço
Juvenal Amado

António Matos disse...

Caro Joaquim Gomes,
Para quem se der ao trabalho de ler ou reler anteriores textos teus publicados aqui no blog, perceberá a natural grandiosidade deste onde referes o pontapé no cu do teu soldado.
É absolutamente avassalador o crescendo de suspense que culmina na ameaça objectiva que o homem te faz e te obriga a uma reflexão humilde e impregnada de medo mas que se esfuma como se se tivesse picado um balão com uma agulha, mal admitiste a prepotência e lhe pediste desculpas.
O meu entusiasmo por este teu texto ultrapassa o mero contexto literário ; prevalecerá na minha memória como um verdadeiro ensaio didático de reflexões morais e filosóficas sobre o exercício do poder e a capacidade ( ou não ) de se lhe fazer frente.
Parabéns, Joaquim Gomes.
Um abraço,
António Matos

Anónimo disse...

Grande Palmeirim,

Não sei se no final da tua linda história, já andáva-mos nas mesmas andanças, eu em Cufar na C.CAÇ. 763
pois muitas foram as operações conjuntas 728/763 e 4ªC.C. de Bedanda. Recordo perfeitamente aliás estão aqui descritas na história da Companhia C. CAÇ. 763 que o coronel Costa Campos me ofereceu antes da sua partida para outras pararagens.

Encontro por vezes o Corn Oliveira e Silva em Elvas ou em Vila Fernando (minha terra) onde a família tem um Monte (monte da Defesa).

Isto tudo para constatar-mos que o mundo é pequeno e por vezes há histórias muito parecidas.

Esta foi passada entre o José Gameiro Pedrosa furriel da C.CAÇ. 763 e o soldado Santos Silva da sua secção.

Numa altercação entre os dois, o bom do Santos Silva sai-se com esta:
_O dia que saírmos para o mato acertamos contas leva um tiro nos cornos!
As coisas acalmaram, mas o pessoal da secção ouviu.
Não tardou muito no dia seguinte, saída para Cabolol.
O José Pedrosa ao informar a secção da saída, informa o Santos Silva que a sua posição na secção seria atrás dele.
O bom do Santos Silva começou a pensar na bravata que tinha dito e recuou com certeza não seria homem de fazer o que dissera. O certo é que ficou em pânico, porque um indíviduo levar um tiro na mata era mais que natural só que lhe tinha saído a ameaça na frente de muita gente e se houvesse um azar do Zé Pedrosa ser ferido ou morto? O Santos Silva estaria à rasca. Não achando outra alternativa dada a intransigência do José Pedrosa não mudar o posicionamento.
Veio estar comigo chorando para ou não ir, ou ir na minha secção. É claro que eu não iria interferir na disposição do Zé Pedrosa. Só que perante as palavras dele lhe disse:_Santos Silva se acaso algo aconter eu serei testemunha a teu favor só que agora aguenta. Lá fomos para Cabolol felizmente as coisas não correram muito mal e o Zé Pedrosa veio sem um arranhão, com um guarda costas de primeira. Com tudo isto se criou uma grande amizade entre os dois.
Infelizmente o Santos Silva já não se encontra entre nós.

Para um Palmeirim de um Lassa o AB do tamanho do Nosso Cumbijã.

Mário Fitas

Mário Fitas

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes disse...

Nunca esperei!...Fiquei embargado com tamanha generosidade. Obrigado!
Um abraço
Joaquim Gomes

Fuzileiro disse...

Esta estoria mostrou-me o grande contraste "cultural" entre a Marinha/Fuzileiros e o Exercito. Sem querer menospresar a cultura do Exercito, a cena do pontape NUNCA poderia acontecer nos Fuzileiros (ou nos Comandos), onde nao havia MEUS, mas Senhores.Havia uma dependencia mutua que nao permitiria tal comportamento por parte de um oficial.

Foi so um desabafo

Anónimo disse...

Não basta afirmar...presunção e água benta...Além disso, há muita maneira de dar pontapés...

António Matos disse...

Caro fuzileiro,
Não me movem intenções de defesa do exército e ainda menos da marinha ou da força aérea mas eu pertenci àquele e também era tratado por "MEU".
Como saberá se uns eram "MEUS" outros eram "NOSSOS" fosse quem fosse quem desse o pontapé a quem.
Portanto se a marinha tinha a sua cultura, o exército idem aspas, aspas aspas e, por favor, não queira agora limpar a vossa imagem à custa do pontapé que acaba de nos dar !
António Matos

Fuzileiro disse...

Tenho o maior respeito pelo exercito e pelo papel que desempenharam na Guine, sacrificando-se muito mais que nos, da Marinha. Contudo, ou por sermos "mais pequenos" e nos conhecermos uns aos outros e emvirtude de muitos terem feito juntos varias comissoes, o relacionamento entre os oficiais, sargentos e pracas da Armada era diferente do relacionamente entre as mesmas classes do Exercito. Os Sargentos, por exemplo, tinham varias comissoes o que fazia com que tanto as pracas como os oficiais procuravam os seus "saberes". Nao disse que era melhor, ou pior. So disse que era diferente e que prefiro o relacionamento que tinhamos na Marinha. Alias, pela leitura das muitas estorias no blog (que infelizmente tem pouca participacao de marinheiros) pode-se ver a diferenca de que falo.