terça-feira, 1 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4890: Estórias do Fernando Chapouto (Fernando Silvério Chapouto) (2): As minhas memórias da Guiné 1965/67 – Escolta a barco para Farim

1. Do nosso Camarada Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 1426 (1965/67), Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda, publicamos neste poste a segunda parte das suas memórias. A primeira parte está no poste P4877 e é referente ao embarque da sua Companhia, no navio Niassa, e à sua tranquila 1ª patrulha em Bissau:


Escolta a um barco com géneros para Farim

Passados uns dias sobre a minha primeira patrulha sem incidentes fui chamado para o cumprimento de uma missão muito delicada, que segundo me foi comunicado era escoltar um barco e dois batelões carregados de géneros, destinados às tropas estacionadas na zona de Farim.

A escolta constava da minha secção com um enfermeiro, um cozinheiro e um radiotelegrafista.
O barco, lá seguiu a “dez à hora” na praia mar, porque na baixa-mar parava completamente. Entramos no rio Cacheu e começaram a surgir os problemas. O rádio não funcionava, talvez por falta de experiência do operador e os alimentos estavam todos estragados.

O arroz estava cheio de bicho, o feijão idem aspas, o azeite rançoso, etc. Além das rações de combate que obviamente não dariam para todo o percurso, restavam-nos em bom estado comestível algumas conservas e chouriços, que tivemos de começar a racionar, pois ainda faltavam muitos dias para chegarmos a Farim.

Quando chegamos à povoação do Cacheu pedimos que nos dessem pão, que nos foi fornecido em grande quantidade. Conseguimos contactar com Bissau, transmitindo que estava tudo a correr bem, excepto no tocante à alimentação. A resposta foi a que esperávamos, que nos desenrascássemos pois mais nada havia a fazer.

E lá fomos rio acima, ao sabor das marés, até S. Vicente, acompanhados de perto por uma lancha da marinha, que entretanto nos veio ajudar na escolta, e que ia e vinha, sempre de “olho” em nós.

Em S. Vicente, permanecemos um dia e meio à espera do barco patrulha, Durante esse tempo dedicamo-nos à pesca no rio e acabamos por pescar um peixe parecido com um tubarão (ou da sua família), que deu para uma ou duas refeições.

Regressado o barco patrulha, o comandante alertou-me para o perigo que íamos enfrentar rio acima.

Voltamos a seguir viagem de noite (o barco patrulha circulava para cima e para baixo) até que o inesperado aconteceu.

Estava eu a passar pelas brasas quando, de repente, ouvi umas rajadas de tiros, aprontei a G3, mas nada mais me chegou aos ouvidos. Um dos cabos chegou junto de mim e disse:

- Furriel que está aí a fazer? - Temos um ferido!

- Mas eles já se calaram! - disse eu.

- Não são terroristas, foi o “preto” (piloto do barco) que adormeceu e deixou o barco entrar pelo arvoredo dentro, e as árvores ao partirem é que pareciam rajadas de tiros. Temos um ferido.

O soldado feriu-se na roldana do mastro, que ao embater nas árvores se soltou e caiu-lhe em cima de uma perna partindo-a. Este soldado não pertencia à minha secção, ia para Farim cumprir mais uma comissão como voluntário.

Tirei o raio do homem do leme do barco e mandei para lá o meu 1º Cabo, que era de Portimão e tinha carta de navegação. Lá seguimos viagem até BINTA, onde deixamos o ferido, e continuamos até Farim, onde chegamos ao meio da manhã.

Depois de cumpridas todas as formalidades habituais, fui ter com o sargento de dia que era um furriel do meu curso, para nos dar uma refeição em condições, contando-lhe a história dos nossos alimentos.

Por ele, furriel, não havia entraves, mas o encrenca do oficial de dia só nos colocou problemas. Perguntei-lhe se era preciso ir falar com o seu comandante de batalhão, para ultrapassar o impasse.

Não foi preciso, lá se ultrapassou este “entrave”, mas perdi nesta “ultrapassagem” mais de uma hora. Acabamos por comer uns restos do tradicional prato da tropa - feijão com chouriço -, mas como a fome é “negra”, ninguém se queixou que era “feijão” como diziam na Metrópole e toca a comer.

Para nossa sorte, Farim tinha sido atacada na manhã anterior com morteiradas e bazucadas, que certamente estavam programadas para nós. Valeu-nos o atraso do tal dia, por causa do barco patrulha, e assim nos safamos desta.

No regresso tudo foi mais rápido, paramos em Binta para carregar os batelões de madeira, que decorreu célere com a ajuda da maré, após o que continuamos o nosso rumo à capital, sem mais problemas, até à entrada da barra.

Uma vez aí chegados, já noite, instalou-se uma grande tempestade, pois estávamos na época das chuvas, acompanhada de uma estrondosa trovoada e ondas de elevada altura que desamarraram os batelões. Com estes à deriva, permaneci no “meu” barquito com mais dois ou três soldados e a tripulação (constituída por nativos).

Bom, se não morrer de um tiro, morro afogado – pensei -, saber nadar nada me adianta aqui. Pensei que o meu fim tinha chegado, os nativos rezavam, aqueles minutos pareceram-me uma eternidade. Com o clarão dos relâmpagos via o lamaçal da margem, e só pensava como é que nos safamos se o barco se volta. Ficamos ali atolados e… de repente o pesadelo terminou. A tempestade passou.

Ao romper do dia, a primeira tarefa foi detectar e atrelar os batelões, que haviam ficado à deriva distantes um do outro. Os nativos lá os amarraram e fomos atracar no cais de Bissau.

Comuniquei a chegada ao comandante de companhia, que nos enviou viaturas com prontidão, mudamos homens e “tarecos”, para as mesmas, e ala que são horas e a fome já apertava. Um bom banho, mudar de roupa que o “perfume” ganho naqueles doze dias era óptimo, a banhos de balde, chuva e fome.

Conclusão, comecei apreensivo a perceber o que se me iria deparar pela frente, pois isto ainda era o início de uns longos meses de comissão.

Importa referir que este foi o primeiro abastecimento de barco a Farim desde o início da guerra na Guiné.

Pensei que parava por ali, no quartel, uns dias, mas bem me enganei pois fui destacado para mais uns patrulhamentos nos arredores de Bissau, a fim de contactar com as populações e detectar eventuais sinais de anormalidade, entre a buliçosa e animada população.

Militares que fizeram parte da escolta a FARIM. Da esquerda para a direita:
Em baixo: 1º Cabo Vitorino, 1º Cabo Enfermeiro Coimbra, 1º Cabo Alfredo, Soldados Costa e Guerreiro.
Em cima: Eu e os Soldado Matos, Radiotelegrafista, Cozinheiro Júlio, Paixão e Duarte. Na foto faltam dois Soldados, o Leonel e o Valter.

Um forte abraço do,
Fernando Chapouto
Fur Mil Op Esp/Ranger da CCaç 1426

Foto e legenda: © Fernando Chapouto Direitos reservados.
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Nota de MR:

Vd. último poste desta série, do mesmo autor, em:


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