segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4913: Notas de leitura (22): Gilberto Freyre na Guiné, em 1951 (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos, (*), ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data de 3 de Setembro de 2009:

Queridos amigos,
Aqui vai mais uma peça.
Retomarei o vosso convívio depois do dia 20, quando vier de férias.
Estou ansioso por acabar a "Mulher Grande", a minha heroína guineense bem merece descanso...

Um abraço do
Mário


Gilberto Freyre na Guiné, em 1951

Beja Santos

Gilberto Freyre é um nome cimeiro dá antropologia, à escala mundial. Autor de teses estudadas nas principais universidades, a partir dos anos 50, foi um escritor consagrado com obras como Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos, Aventura e Rotina e O Mundo que o Português Criou. A ele deve-se-lhe a paternidade do termo luso-tropicologia, uma interpretação da miscigenação dos portugueses pelos três continentes onde tiveram colónias. Para Freyre, o português andou pelos brasis, pelas áfricas e ásias acasalando, adaptando às novas situações o seu modo de habitar, comer, falar, rezar e comerciar. Não é possível entender esta aventura sem um termo de comparação, e ele existe, é o dos árabes fora da Arábia. Se é facto que os portugueses importaram e exportaram palavras, como grumete, saudade, caravela, alpercata ou engenho, e também caravana, batuque, quinino, chá e mandarim (entre milhares) deve-se ao génio de Afonso de Albuquerque o convite à mistura de sangue, de onde terá derivado o orgulho nessas terras longínquas de ter nomes de família provenientes do quadrilátero europeu.

Compreender-se-á, por conseguinte, como é que estas teses foram entusiasticamente abraçadas pelo regime de Salazar, que necessitava de um quadro doutrinário para interpretar a essência da colonização portuguesa. Freyre estava traduzido nos principais idiomas, formara-se em Columbia, era disputado para reger cursos e docências nos mais reputados espaços de ensino e investigação. Note-se que estas teses de Freyre não colidiam com a ascensão dos movimentos de libertação, interpretavam a gesta de um povo que estivera na vanguarda científica, que esquadrinhara três continentes de uma assentada, fazendo chegar à Europa ouros, pimentas, cânforas e sândalos. Esse português comportara-se singularmente nos trópicos, explorando novas culturas nos brasis, transaccionando em centenas de entrepostos africanos, levando missionários às chinas e japões. Em todas as suas obras, Freyre destaca um fenómeno único dentro de todos os comportamentos colonialistas, o dos lançados, gente que irá correr riscos por conta própria, lançando-se nas florestas, aceitando a assimilação, criando fidalguias mulatas.

Em 1951, o ministro do Ultramar, comandante Sarmento Rodrigues, convida Freyre a confirmar as teses que elaborara visitando as parcelas do império, fazendo conferências no continente e ilhas. Fará uma conferência em Coimbra sobre a cultura luso-tropical, irá à Madeira, Guiné, Cabo Verde, Angola, São Tomé, Moçambique, Goa. Sarmento Rodrigues irá pedir a Teixeira da Mota que o acompanhe à Guiné. Viajarão juntos em Outubro de 1951. Fará uma conferência no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, não escondendo o seu agrado pela gentileza africana, impressionado com a galhardia e a dignidade de certos régulos, dizendo mesmo: “Entre eles encontrei autênticos fidalgos. Aristocratas da cabeça aos pés. Negros finos e angulosos de cabeças tranquilas e enérgicas de antigos lordes ingleses e pés longos, bonitos, bem arqueados de dançarinos russos. De um régulo desses recebi de presente pulseiras de bronze destinadas à minha esposa e à minha filha. De outro, um espada de guerreiro mandinga”. Antes, tinha sido saudado pelo médico João Leal da Silva Tendeiro, presidente do Centro de Estudos. O primeiro-tenente Teixeira da Mota tirou fotografias, das quais reproduzimos duas, tal como segue.

Em 1953, todos estes textos da viagem a Portugal e ao seu Império deram matéria para o livro “Um Brasileiro em Terras Portuguesas”. No prefácio, Freyre procura responder aos seus detractores que o acusam de estar “vendido ao fascista Salazar” ou a “serviço do decadente Portugal”, desafiando os seus críticos com a notícia dos convites que recebera da URSS e da União Indiana para ir expor nesses países as suas teses.

Hoje, a proposta luso-tropical é uma relíquia da ciência antropológica, resta saber como é que os antropólogos das ex-colónias portuguesas irão analisar, com a independência e o rigor do verdadeiro distanciamento, a presença deste colono ao longo de séculos nos seus países.

Este livro ficará a pertencer ao espólio do blogue.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Setembio de 2009 > Guiné 63/74 - P4904: Notas de leitura (21): Grandes Batalhas Navais Portuguesas, de José António Rodrigues Pereira (Beja Santos)

1 comentário:

JD disse...

Caro Mário,
A tua divulgação é um magnífico contributo para a compreensão da expansão portuguesa.
O português é assim, aventura-se e desenvencilha-se. Parece que está, e pode estar, mas, se necessário, depressa estabelece novas raízes em lugares desconhecidos, insinuando-se, conquistando o seu lugar, geralmente com humildade e trabalho, aculturando-se, sem necessidade de arrogar-se poderoso.
Também é pertinente recordar-nos o aproveitamento político dessas aventuras, quer pela divulgação e apoio de obras científicas, como promovendo diversas exposições, como pela filatelia, afinal, provocando a admiração das capacidades de um pequeno país.
Mas capacidades malbaratadas, pois ainda falta percebermos que, por incompetência e oportunismo a governar, através das grandes companhias coloniais, os grandes colonos tinham base nas grandes capitais, N.York, Londres, Berlim, e nós, pobres e odiados, pouco mais éramos que feitores e gestores administrativos, evidenciando alguma incongruência com as propaladas preocupações do regime.
Será o trabalho de quem quiser saber, procurar informação, comparar e sistematizar esses conhecimentos.
Um abraço
J.Dinis