sábado, 29 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4878: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (12): O nosso Alferes Médico na vida civil...


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos mais uma estória, com pormenores "deliciosos", que faz parte do seu livro "Golpes de Mao's - Memórias de Guerra", com data de 25 de Agosto de 2009, que mais uma vez muito agradecemos:


Camaradas,

Quarenta e tal anos depois... os setenta!


O nosso Alferes Médico na vida civil...


O tempo passa e... há poucos meses atrás (em 12 de Abril de 2008) estive na festa de aniversário dos 70 anos do meu Médico.

Setenta anos!!!


Noutros tempos... 70 anos eram uma idade complicada, associada à ideia de um velhinho caquéctico, trôpego, que já não dizia coisa com coisa.

Nada mais errado quando o septuagenário em causa é o Dr.Alfredo Roque Gameiro Martins Barata.

Tirando algumas rugas, os cabelos grisalhos e umas gramas a mais continua na mesma: corpo de “alferes”, mexendo-se com desembaraço, tranquilo, afável e bem disposto.

Na família tem a fama de... distraído. Na vida militar essa”fama” não colheu e se algumas dificuldades teve... terá tido mais a ver com o facto de ser uma pessoa muito bem-educada.

E, como se sabe, na vida militar encontra-se filhos de... muitas mães com quem, muitas vezes, não resulta, um tratamento do tipo “português suave”! Mas... adiante.

Como não podia deixar de ser na festa dos seus 70 anos recordámos a viagem acidentada do Rio Cacheu dos anos 65!«Ah sim, lembro-me. Foi do género da estória "da ida à guerra do Raul Solnado”».

Os filhos a seu lado olhavam-no espantados pois não conheciam essa aventura de seu Pai.

Dei-lhes a ler a “estória” do Diário da C.Caç. 675.

De espantados passaram a... pasmados.

Além de excelente Médico foi, mais tarde, “Anjo da Guarda”de muita gente – desde os tempos da Guiné até aos dias de hoje ajudou inúmeros ex-militares da sua Companhia – .

Sempre compreensivo e de extrema bondade, “apagando” propositadamente a sua importância nas ajudas que concedeu a quem o procurou.

Os “suplementos” biográficos que se seguem são da responsabilidade do seu irmão mais velho, José Pedro. «História do meu irmão mais novo, contada pelo irmão mais velho…

Ao irmão mais novo, sentado nos degraus do pátio, contava eu histórias inventadas ali.

Já nessa altura era muito distraído e perdia coisas. Gostava de guardar as caixinhas e os “jornalinhos” dos remédios, o que já apontava para uma vocação diversa da familiar, virada para os bonecos e as pinturas. Não viria a arrepender-se!

Já crescidote, observava com muita atenção uma menina loura que descia a Rua ao vir da Missa, acompanhada pelo irmão (dela, claro).

Mais tarde, distraído, mas esperto, tratou de casar com a menina loura.

Foi depois para a escola dos médicos, como era de esperar...

E saiu enfim Médico, o que significa que foi logo direitinho para África, pois!...

Iniciou a sua carreira hospitalar em África, assegurando o funcionamento do Hospital de Binta.

Nesta parte poderemos dar uma “ajuda” porque tivemos por perto...

Além dos militares que frequentavam o “Posto de Socorros" (no “Largo da Tomada da Pastilha”), havia também grande número de nativos, que apresentavam o mais variado tipo de enfermidades.

Tivemos casos de lepra (uma doença que era suposto já estar então erradicada...), elefantíase e um terrível surto de sarampo, que causou a morte a mais de seis dezenas de crianças da tabanca de Binta.

No que respeita aos nossos militares havia uma doença muito comum antes das idas para “o mato”, com sintomas muito habituais tanto ao nível de praças, como sargentos e oficiais...

Vómitos, diarreias e repentinas dores de cabeça que tinham muito a ver com uma coisa chamada "cagaço", medo e/ou receio.

Com o tempo aperfeiçoámos uma “mezinha” que atenuava a “doença”: o comprimido nº 8 do L.M.(aspirina), fornecido em diferentes embalagens, conforme a graduação do “paciente”, que ia resolvendo quase todos os problemas.

Tivemos também momentos bem dramáticos aquando da morte dos nossos militares.

Lembro-me particularmente de ter chorado abraçado ao meu Alferes Médico a morte do soldado Nascimento, quando soubemos no dia seguinte “via rádio”, que já tinha chegado cadáver ao Hospital de Bissau.

No que respeita a Binta não chegámos a ter um Hospital mas quase...


Uma das histórias clínicas mais espantosa passou-se com uma nativa que um dia se apresentou à consulta queixando-se de ter engolido uma cobra enquanto dormia!

O Dr. Barata já falava umas coisas dos dialectos locais e rapidamente percebeu que a sua doente devia padecer de lombrigas que, durante o sono, lhe teriam chegado à boca(?!).

Pensou num vomitório e na apresentação de um pequeno réptil à doente após a medicação, “cena” que ficou marcada para o dia seguinte.

Entretanto encomendou-se a captura de uma pequena cobra, o que não foi difícil de conseguir.

Tudo preparado chega-se ao dia seguinte e, conforme o plano estabelecido, é administrado à paciente o vomitório, tendo por perto a pequena cobra (já morta), para no “pós–vómito”convencer a nativa que... estava curada.

O pior foi mesmo o que se seguiu. O vomitório, durante alguns longos minutos, provocou vómitos sim mas a todo o pessoal do Serviço de Saúde menos à doente que... nunca mais vomitava.

Finalmente lá aconteceu e a cena da cobra resultou inteiramente.

Também um parto feito na tabanca, com a parturiente de joelhos, virada para Meca teve alguns contornos de surrealismo...

Na semi-obscuridade da morança (cabana), onde corriam galinhas e cabras, estavam vários familiares expectantes e uma velha parteira-feiticeira, que veio a cortar com um facalhão de “cozinha” o cordão umbilical...

Ainda me lembro do extraordinário sentido de humor do Dr. Barata referindo-se à sua “colega” parteira quando perguntou pelo bisturi para cortar o cordão umbilical!

Voltando aos “suplementos” biográficos do seu irmão mais velho, José Pedro.


Ainda em Binta... «Imagino que, absorto nas suas responsabilidades, distraído como é, não se tenha apercebido bem de certos inconvenientes e certos incómodos do momento, a ponto de ter convidado a senhora loura a passar umas férias, alojando-se no luxuoso Resort & SPA “The Derelict Madeiro’s House”, (de estilo colonial) – aproveitando a época baixa do turismo da Guiné, na região do Cacheu.

A senhora branca e loura causou grande sensação em Binta, tornando-se mesmo uma «atracção turística».

Mais uma achega da nossa parte: A chegada a Binta de Manuela Martins Barata foi, além de uma “atracção turística”, uma prova de afecto e coragem que não está ao alcance de qualquer pessoa.

Esteve ao alcance de uma jovem Senhora, que deixou Lisboa para ir ter com ao seu marido aos confins do mundo!!!


Além do desconforto das instalações do “Resort” é preciso uma coragem que, na altura, nos espantou a todos. E que teve efeitos benéficos na vida da Companhia, que rapidamente se habituou à senhora branca e loura, que nos trouxe de novo a possibilidade de ter, por perto, uma “procuradora” das nossas mães e noivas que tínhamos deixado na Metrópole.

E a senhora branca e loura esteve em Binta sete meses, o que é uma proeza extraordinária.

Voltando aos “dados” do irmão mais velho, José Pedro.

«... Mas ele não se distraiu, não se esquecendo de a trazer de volta... (da Guiné)... e providenciou depois para me dar dois magníficos sobrinhos (Passei a ter oito! Nada mau!...)

Começou a entrar depois na Sociedade Internacional de Gentes de Artes e Saberes fora do alcance comum, que se encontra em reuniões obscuras e limitadas a iniciados (Simpósios, Congressos e coisas dessas, para disfarçar...); gente dedicada a práticas esotéricas e misteriosas, reservadas e ocultas.


É uma gente que se reúne frequentemente em cavernas fechadas, longe das vistas do comum onde, sob luzes cruas e intensas e trocando em voz baixa palavras crípticas, todas de cara tapada e vestindo burkas verdes, se dedica a rituais secretos ominosos.

Pelo menos é o que parece, aos não iniciados, que não em acessos àquelas celebrações inquietantes! (“Al-Quaeda”? Seitas tenebrosas?).

O meu irmão diz que não: que é apenas “cirurgia”, e como ele é seriozinho eu, enfim, acredito...

Entretanto, nos intervalos dedica-se a ouvir música ou a visitar países distantes nos 5 continentes, paraísos exóticos e longínquos, e até indo mesmo ao Algarve.

Com isto tudo, agora que ele faz 70 anos, acho que chegou a altura de ser ele a contar histórias ao irmão mais velho!

Nota – Este documento deverá ser actualizado logo que ele fizer 80 anos.»

Subscrevemos e... morra quem se negue!

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675



Gravuras: José Pedro Roque Gameiro Martins Barata (2009). Direitos reservados.
Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


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