domingo, 9 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4804: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (1): "Os Elefantes"

1. O nosso Camarada Carlos Adrião Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676 (Bissau, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), que se apresentou na nossa tabanca em 6 de Agosto pp, enviou-nos a sua primeira estória, com data de 4 de Agosto de 2009:
Camaradas e Amigos:

Imagino que todos os dias devem receber, montes de estórias, fotografias e documentos vários. Eu só tenho isto e quem dá o que tem a mais não é obrigado. Oportunamente mandarei mais.

Os Elefantes
(Memória de Madina do Boé – Novembro de 1964)

O tempo estava a chegar ao fim. Tínhamos vindo só por uma semana e hoje era a última patrulha.

Amedalai, o guia que o régulo da aldeia nos tinha arranjado, parecia entusiasmado com o caminho que estávamos a percorrer. Falou durante todo o tempo, para nos fazer entender que naquela zona já não estávamos na Guiné, a que estávamos habituados.

Aqui começava uma outra Guiné, pouco povoada, misteriosa. De facto esta região, a Sul do rio Curobal, de Beli até Madina do Boé, era a zona “montanhosa” da Guiné. O chão era diferente, rochoso, erguendo-se, aqui e ali, em suaves ondulações, formando, por vezes, uma colina mais proeminente que nós nos apressávamos a trepar para ganharmos um melhor ponto de observação.

Para lá da fronteira, para onde nos dirigíamos, começava, segundo ele, uma vasta planície ocupada por uma nova espécie de selva, a savana. A lendária savana africana reino das feras e das manadas de todas as raças de bovinos que povoam a África. Terra dos elefantes também.

Em silêncio, como para melhor suportar o calor que gradualmente ia aumentando com o passar das horas da manhã, a coluna de soldados embrenhava-se por caminhos e pistas quase despercebidas no meio da mata, obedecendo às directivas habituais neste género de situações.
A missão consistia apenas em dar uma vista de olhos pela mata, investigar qualquer indício da presença de guerrilheiros. Mas a mata era um labirinto infernal, e o que houvesse de verdadeiramente suspeito, de certeza, não estaria ali para se deixar ver, principalmente pelos nossos olhos.

Hoje faltava ir até ao Sul de Madina do Boé. O mais possível ao Sul, evitando, no entanto, entrar no território vizinho da Rep. da Guiné. Como os mapas de pouco ou nada nos serviriam, a ajuda do guia era indispensável.

- “Meu alfero, hoje, com sorte, vai poder ver elefantes, só daqui se podem ver elefantes na Guiné”, afirmou a certa altura, o nosso guia, como se estivesse numa turística expedição de caça.

- “Tens a certeza?”, indaguei eu, incrédulo, mas ao mesmo tempo, esperançoso de que, finalmente, iria ver aquela África idealizada nos meus sonhos de aventureiro juvenil.

- “Sim, meu alfero, verdade! Eu já vi!”

Mas à medida que nos íamos embrenhando naquela mata cerrada a convicção nas histórias que o guia contava, ia diminuindo. E o Amedalai perante o nosso descrédito ia antecipadamente alinhavando desculpas, com a época das chuvas que este ano ainda não tinha chegado, com as confusões da guerra que mudam tudo, etc., etc.

- “Bichos não quer confusão! Quando soldado chega, eles tudo foge! Mas se houver sorte…” – continuava a afirmar ao mesmo tempo que exibia um amplo sorriso de orelha a orelha.

Quando finalmente chegámos ao minúsculo ribeiro que, naquela zona, faz parte da linha de fronteira que separa a Guiné-Bissau da Guiné-Konakri, um tal rio Capege, tão minúsculo que se ultrapassava com uma pernada mais esticada, a paisagem continuava na mesma. Nada de savana.

Mas Amedalai, subiu a um pequeno morro olhava na direcção de Leste, fixou a vista e dava a perceber que lá ao longe, bem ao longe, já na linha do horizonte onde a selva clareava e parecia esbater-se com o azul quase branco do céu, seria ali a savana.

E aquelas manchas que se moviam na linha do horizonte, como uma miragem, não seriam elefantes?

- “Está a ver, meu alfero? Está a ver?”, gesticulava o bom do guia apontando insistentemente para o interior da outra Guiné, tentando convencer-nos de que, algures, no meio daquela neblina lá bem longe, estariam os famosos elefantes. Ali era a terra deles, dizia.

- “Está bem, pronto! Parece que se vê qualquer coisa!” (Com um bocado de imaginação até lá estariam.)

E depois de darmos uma rápida olhadela em redor, viemos embora.

Quando chegámos ao quartel e pousávamos as mochilas, afirmávamos já, muito convictamente, que até tínhamos visto elefantes (mas muito ao longe, claro)!

- “E, vestígios dos turras viram alguma coisa?”

- “Não, não vimos nada!”

Mas mesmo assim, satisfeitos por mais uma missão cumprida, ala que se faz tarde e, “adeus e até ao meu regresso”, como se costumava dizer.

No dia seguinte pegámos nas trouxas, abandonámos o local, as crianças da escola, o simulacro de aquartelamento e os que, por sorte ou destino, teriam de ficar por lá, mais tempo. Esses, sim, iriam ter muito que contar.

Nós ficámos apenas com a vã glória de termos posto os pés do outro lado da fronteira, na outra Guiné (onde os turras se acoitavam), de termos bebido um pouco da água pura daquele inocente riacho e de termos “visto”, lá bem ao longe, mas muito ao longe, uns vultos de elefantes. Seriam?

Vamos crer que sim, senão esta aventura não teria sentido. Mas, se na verdade, nunca os chegámos a ver, no entanto eles deveriam andar por ali, tal como os guerrilheiros de Amílcar Cabral sempre lá estiveram, aguardando o momento certo.

Porque sem elefantes não há África. Eles são o derradeiro símbolo da força e do espírito de África.

Um grande abraço,
Carlos Geraldes – Viana, Mar.2009
Alf Mil da CART 676

__________
Notas de M.R.:

(*) Este é o primeiro poste desta série: "Gavetas de Memória".

9 comentários:

Unknown disse...

Pois é.
Se fosse hoje, mais "instruídos", mais exploradores, até veríamos elefantes na Guiné, nao interessa em qual. Mas naquele tempo a nossa única vontade era que o tempo passasse.

Hélder Valério disse...

Interessante história, Carlos Geraldes.
Realmente no nosso imaginário infanto/juvenil, África tem leões, elefantes, macacos, crocodilos, etc. Não estávamos muito "virados" para a sua descoberta mas de facto não deve ter custado muito "ver" o que se queria ver.
Um abraço
Hélder S.

Colaço disse...

Hélder se tu tinhas uma bazuca que disparava de rajada, porque é que o Carlos não há-de ver o queria ver.
Um alfa bravo Colaço

Anónimo disse...

Infelizmente em Missirá os elefantes escasseavam..Em contrapartida, abundavam os leões
as panteras e os tigres..Práticamente ,todos os
dias,eram caçados com a ajuda
do Tarzan que também lá vivia..
Abraço
Jorge Cabral

Joaquim Mexia Alves disse...

Tem graça que daquela vez que fui a Missirá, já só encontrei a Jane, porque o Tarzan tinha ido a Mato Cão apanhar o barco para o "puto".

Aliás "cruzamos-se" no caminho!!!

Abraço camarigo ao Carlos Geraldes e ao Jorge Cabral

MANUEL MAIA disse...

CARO GERALDES,


COM GUIAS DAQUELES,ATÉ O D.SEBASTIÃO PODIA SER AVISTADO COM A AJUDA DE UNS BONS BINÓCULOS...

UM ABRAÇO

MANUEL MAIA

JD disse...

Camaradas,
Os animais abandonam o seu ambiente natural sempre que neste se alteram as condições de tranquilidade, ou os meios necessários à sobrevivência. A guerra constitui uma forte motivação para ir ao encontro de novo território. Assim, a estória pode ter conteúdo verdadeiro, e nada de extraordinário um elefente aproximar-se da fronteira. Mas o elefente, por norma, é gregário. Li recentemente que na Guiné tem havido um repovoamento de algumas espécies mais exóticas.
Abraços
J.Dinis

Anónimo disse...

Enviei comentário ainda nem sequer aqui havia outro qualquer.
não era jocoso e daí...não saiu
um abraço

Anónimo disse...

Senhor Anónimo.
Embora não mereça resposta, primeiro por ser anónimo e depois por estar a insinuar que alguém evitou a publicação do seu comentário, tenho a dizer-lhe que nos é impossível evitar a publicação de comentários, logo se o seu não saiu, inabilidade sua.
Assina Carlos Vinhal
Co-editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.