sábado, 11 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4671: Histórias de José Marques Ferreira (2): Domingos – A Mascote da minha CCAÇ 462


1. Mensagem de José Marques Ferreira, ex-Soldado Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré 1963/65, com data de 11 de Julho de 2009:


Camaradas,



Hoje, passados todos estes anos, quando quero escrever uma estória sobre o Domingos, faltam-me as palavras, os verbos e é difícil juntar as sílabas.


Ainda me estão a martelar no cérebro as palavras escritas pelo Engº Pedro Moço, funcionário de uma empresa do grupo Soares da Costa, que, recordo o que disse em tempos, esteve 18 meses na Guiné, fazendo parte da equipa que dirigiu a construção da ponte “Euro-Africana”, que para nós será sempre a ponte (onde foi jangada) de S. Vicente.


Dizia então o Pedro:

"Penso que qualquer cidadão europeu devia viver em África, pelo menos 6 meses, para poder dar valor ao que tem disponível no seu país, coisas que para qualquer europeu são banais, tais como, o direito à saúde, educação, o poder dispor de electricidade, água potável, etc., etc. Aqui nada existe, a não ser a tentativa de sobrevivência do dia-a-dia.

Dói a ausência de futuro nos olhos das crianças, dói o nulo investimento na formação, na educação, dói o tipo de vida resignada, dói que a única solução seja emigrar, ainda que precariamente. Dói que o eldorado esteja sempre do lado de lá. Dói pensar nas desilusões de quem passa para o lado de lá e encontra o que não esperava. Dói a ausência de futuro e de estratégias de desenvolvimento. Dói que se morra de “coisas da Guiné”, espécie de doença generalista que agrupa tudo o que mata e se desconhece."

Vamos à história.

O DOMINGOS – UMA CRIANÇA SOLDADO

O Domingos era uma criança, em 1964, de estatura normal para os seus cinco, seis anos (talvez nem tantos na altura), os olhitos pareciam estar em permanente melancolia (como os de muitos putos guineenses), mas já o seu porte e presença eram um tanto diferentes.

O Domingos, fazendo fé nas recordações um tanto esfumadas, porque o tempo não perdoa e não é eterna a sua permanência nas minhas memórias cerebrais, começou a aparecer com a mãe, que lavava a roupa de alguns camaradas nossos, o que, como sabemos, constituía mais alguma fonte de sobrevivência para a família.


Ingoré - Edifíco de Comando

Tantas vezes lá foi que começou a ter contacto mais directo com os militares que, pelo seu feitio e postura simpáticas, eram afáveis para aquela criança de tenra idade. Ficou lá connosco um dia, depois outro e outro...

Todos o acarinhavam e brincavam com ele, e o Domingos ia demonstrando alguma sociabilidade, retribuindo simpaticamente com as peripécias próprias das crianças, o trato que lhe ia sendo dispensado.


Até que, para não alongar mais esta “lengalenga”, o Domingos foi adoptado, oficialmente, como mascote da CCAÇ 462. Passou a ter uma farda verde igual à nossa, com excepção do camuflado e do vestuário de trabalho. Comia connosco, e durante muito tempo, chegou a dormir na nossa caserna, tal como todos nós. Os pais sabiam desta situação, o comandante da Companhia também. Já fazia parte da nossa "família".

Por isso, as palavras do Engº Pedro Moço e que peço, voltem agora atrás e, releiam o primeiro parágrafo.Muitos de nós, estejamos onde estivermos hoje, lembramo-nos com certeza que conhecemos e convivemos com muitos simpáticos e afáveis Domingos, por toda a Guiné, e sei que, como eu, ficarão doentes ao lerem esta infeliz realidade: «Dói a ausência de futuro nos olhos das crianças, dói o nulo investimento na formação e na educação…»

Ao fim de dezasseis meses, a minha companhia foi “embalada” e enviada para Bula, pelo que perdemos o rasto do Domingos. Continuamos sem o ver quando fomos ocupar, pela primeira vez, o território de Có, Ponate, Jolmete e Pelundo.

E perdemos-lhe completamente o rasto, quando destas localidades seguimos para Mansoa.

Nunca mais soube nada do Domingos, aquele puto simpático e meigo, de olhar melancólico, que viveu connosco durante vários e saudosos meses.

Um dia, a Guiné tal como a conhecemos então, acabou para a nossa companhia, pois regressamos a casa no paquete Niassa…



Do Domingos ficou-me as naturais saudades do seu sorriso e traquinices, e a única foto que tenho dele…


Na foto podemos ver o Domingos sentado no chão, entretido a colcocar um capacete na cabeça.

Fotos: © José Marques Ferreira (2009). Direitos reservados.


Um abraço,
José M. Ferreira
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Notas de M.R.:

(**) Vd. último poste da série em:

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