quinta-feira, 2 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4630: Destas não reza a História (Manuel Maia) (4): História da esgraçadinha

1. Mensagem de Manuel Maia, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74, com data de 30 de Junho de 2009:

Caro Vinhal,
Espero possa estar dentro dos parâmetros requeridos.


HISTÓRIA DA ESGRAÇADINHA

Chamava-se Sousa, Zé Sousa, casado, pouco mais de vinte anos, estaria a entrar nos vinte e dois...

As saudades roíam, traço comum a todos quantos por essas terras de África suportavam a canícula e o afastamento dos seus...
Para o Sousa, as saudades da família, pais e muito recentemente mulher, essa Maria Rosa que lhe aquecera a cama e afogueara o corpo uns vinte dias antes do embarque eram algo que não conseguia superar...

Dera o nó lá na igreja da terra pouco antes de o meterem naquele pássaro de metal que o levaria à Guiné.

O Zé e a Rosa, a Maria Rosa, haviam sido imprudentes, tentações do diabo...

Coitada da Maria Rosa, orfã de pais desde tenra idade, vivia com a avó, a Ti Clarinda, uma mulher de armas que criara os filhos (quatro que não vingaram além da idade escolar, e a Felismina, mãe da Rosa, que morrera ao dar à luz o seu rebento...

O genro, pai da Maria Rosa acabaria cadáver à mercê do pó das minas, profissão que abraçara faz tempo para dar melhor vida à família...

A Ti Clarinda lá foi levando a água ao seu moinho, que é como quem diz, criando a neta.
Foi avó e mãe de Rosa...

Agora, coitada, estava quase cega, cansada de uma vida de trabalho, de atribulações...

O Zé que lhe namorava a neta, era um bom rapaz, trabalhador.
Andava à jorna de lavrador em lavrador para ganhar o seu pão honestamente, ele também, filho de gente muito humilde e de trabalho.

Até que um dia, o Zé e a Rosa, a Rosa e o Zé, passaram além da Taprobana, descontrolaram-se e... a solução foi casar...

Nunca passara na cabeça do Zé fugir à responsabilidade...

Até porque a Rosa, coitada, era orfã de pai e mãe...

Mas agora que o sr. padre Olegário os casara, impusera à Rosa que fossem viver para casa dos seus pais.

- E a minha avó, Zé?

-Vais visitá-la quando quiseres, mas o lugar de uma mulher casada é na casa do marido... Quando entenderes passas pela sua casa. Não te preocupes que os vizinhos são gente boa e todos lhe põem uma mão, está descansada. Depois de eu regressar da tropa, da guerra, logo que a gente possa, fazemos uma casinha naquele cibo de terra que o meu pai comprou ao sr. António Regedor, e depois a tua avó vai viver com a gente... podes dizer-lhe.

-Coitada da minha avó!

Partira uns escassos vinte dias, três semanas, do enlace (tinham-lhe dado 15 dias de licença e o capitão deu o resto...)

As saudades roíam-no, e a falta daquele corpo quente colado ao seu com um cheirinho tão apetitoso, empurravam-no para o copo, que no seu caso específico de homem do campo passava obrigatóriamente pela água pé dos lavradores ou pela mistela de uvas que se fazia na casa do seu pai com predominância para o vinhão ou jacqué, para dar cor, e muito americano que não precisa de tratamento...

À falta disso e como não conhecia as bebidas de sociedade, nunca tinha provado scotch, gin ou algo similar, refugiava-se na popularíssima cerveja - que à altura ainda não sustentava jogadores da bola nem as sads do mesmo - emborcando garrafa atrás de garrafa, numa procissão de 33cl que acabaria por derivar para a chamada bazzoka de litro...

Foi este o começo de vida atribulada do Zé Sousa, um militar como tantos, que até à submissão face à cerveja, se pautara sempre por um comportamento perfeitamente normal, senão mesmo exemplar...

As saudades moíam-no, era assaltado pela dúvida.
O que estará ela agora a fazer, a sua Rosa?
E se algum bandalho lhe dirigia palavra quando ia visitar a avó?

Os ciúmes roíam-no deixando-o à beira de um ataque de nervos.
Tornava-se irrascível.
O álcool fazia o resto.
A sua vida encontrava-se agora num patamar de perigo dada aquela dependência evidente.
O capitão proibe que lhe vendam álcool.
O Zé inicia uma fase complicada de ressaca...
Não tem dinheiro para poder sequer pensar em férias na Metrópole.
Logo, a ideia era beber até cair na esperança de ver o tempo voar...

Mas era custoso.
Os dias arrastavam-se caracoleando ao invés de voarem como era a sua vontade e a de todos, afinal...

Um dia, o Zé fazia anos e estava em regime de abstinência total (claro que não era total pois a solidariedade não era palavra vã entre militares e havia sempre forma de controlar o obstáculo...
Especialmente depois de uma operação sabia bem uma geladinha e depois um cigarro.

o capitão comutou-lhe a pena por um dia e permitiu-lhe contornar o castigo ao deixar que comprasse uma grade de cerveja para si e os amigos mais próximos...

Estranhamente o número de amigos do Zé, diminuiu drásticamente e vai daí, ele para não desperdiçar o líquido, fez-se às outras 33, de g3 em punho, não para iniciar qualquer guerra mas porque com o gatilho abria rapidamente uma garrafa...
Foi o bom e o bonito...
Uma vez mais cirandou entre as duas fiadas de arame farpado (o tal onde os bandos se acoitavam...)

Trazia vestida a sua farda mais usual naquelas paragens... calção (fora do regulamento...) e faca de mato à cinta, numa reedição tarzaniana, a pedir meças a qualquer Weissmuller de pacotilha...

Deixáramo-lo à espera que os etílicos vapores fizessem efeito e vencido pelo cansaço entregando-se então nos braços de Morfeu, num amplexo do tamanho do mundo...

Depois de domado por Baco ou por Dionísio (consoante a apetência grega ou romana no desafio sistemático que este lhe fazia, e no qual era sempre apanhado, havia que deixá-lo dormir...

Não era nenhuma novidade este comportamento pelo que ninguém suspeitou do que pudesse via a seguir...

Subitamente o Zé Sousa saiu a correr em direcção ao mato.

Saíram uma meia dúzia em seu encalço, mas este mal os avistou, embrenhou-se naquela perigosa mata fugindo. Era um local perigoso para os escassos seis homens que haviam saído em seu encalce.
Haveriam de regressar uns quarenta ou cinquenta mas debalde...

Soube-se depois através da prisão de um inimigo que ele fora capturado por população hostil às nossas tropas e entregue ao PAIGC.

Nem a Maria Turra falaria nele...

Maria Rosa receberia o fatídico telegrama e caiu para o lado, fulminada...

A Ti Clarinda haveria de assistir ao funeral da neta...

Esta história correu mundo em romance de cordel, e foi cantada ao vivo nas feiras apoiada pela voz plangente de um violino.

Preparem as esponjas que a hora é de chorar!

Com um abraço a toda a tabanca me despeço hoje
Manuel Maia
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4610: Blogpoesia (51): História de Portugal em sextilhas (Manuel Maia) (VII Parte): De Pombal (1755) até ao regente D. Miguel (1828)

Vd. último poste da série de 14 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4519: Destas não reza a História (Manuel Maia) (3): Desertei depois de ter vindo da Guiné

2 comentários:

Anónimo disse...

Manuel Maia

Fiquei siderado com esta estória da “esgraçadinha!”
Julgo até que vi lágrimas a verter das pedras da calçada, cá na minha rua!
Lágrimas de comoção ,tristeza e solidariedade perante tão grande desdita, talvez maior que a do Fado!

Não sei mesmo é se vou conseguir dormir ,esta noite.!

Sei é que tens um talento muito especial para a escrita.

Com um abraço

Luís Faria

Juvenal Amado disse...

Maravilhosa estória.

Retrato dos Zés das Rosas e das "Tis" das nossas aldeias.
As nossas gentes humildes trabalhadoras e fatalistas.
Dramas por ventura decalcados para folhetos que contavam em primeira mão "a horrivel estória".
Vendiam-se em dia de mercado por um garoto que servia de bengala ao cego.
A maioria que passava nem ler sabia e assim, bebiam as palavras do arauto das desgraças.
Normalmente era assunto comentado nos lavadouros e nas tabernas.
Possivelmente alguém jurava a pés juntos, que era gente de uma aldeia perto e até conhecia uma prima ou um cunhado.
Também eu garoto levava a estória para casa, ficava todo lixado quando o meu irmão gosava comigo e me dizia, que aquilo era tudo mentira.
Maia trazes aqui uma estória sabosissima, muito bem escrita e retrato, mais um da nossa juventude.