quarta-feira, 1 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4623: Histórias de Juvenal Candeias (3): Um Manjaco em chão Nalú



1. Terceira história de Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde, 1971/74.

UM MANJACO EM CHÃO NALÚ

A estória seguinte gira à volta da Palmeira Dendê (ou dendém) e de um dos seus principais produtos: o vinho de palma.

O vinho de palma é a seiva da própria palmeira e obtêm-se com incisões transversais na árvore, a partir do topo, de forma a libertar a seiva que escorrerá para um recipiente devidamente acondicionado e preso à palmeira com cordas.

Bebido fresco, logo pela manhã, é uma bebida irrecusável. Passadas algumas horas, sujeito ao calor tórrido, fermenta e transforma-se numa bebida do diabo, capaz de fazer desprender a língua ao homem mais calado.

A exploração intensiva do vinho de palma apresenta, contudo, o inconveniente de enfraquecer a palmeira, provocando o seu envelhecimento precoce.

Da palmeira dendê é possível extrair ainda outros produtos:

Dos cachos (chabéu) extrai-se o óleo de palma, produto saboroso utilizado nos mais diversos pratos.

Das sementes - o coconote - obtém-se o óleo de coconote (ou de palmiste) e o sabão, sendo os resíduos usados como combustível.

As folhas da palmeira servem para fazer cordas, cestos e vassouras e o tronco utiliza-se na construção de casas e canoas.

A região de Cacine dispunha de enormes recursos em vinho de palma, embora a etnia Nalú, predominante na zona, efectuasse uma tímida exploração deste produto. Razão suficiente para que, esporadicamente, aparecessem membros de outras etnias que viam no vinho de palma de Cacine, uma oportunidade de negócio a explorar.

Assim surgiu um Manjaco em chão Nalú!

Etnias diferentes eram recebidas em chão Nalú, com pouca simpatia e alguma indiferença, o que não impedia que pudessem ter alguma actividade - como no caso da nossa estória - ou realizar algum comércio.

Havia mesmo comércio através da fronteira, desenvolvido pelos gilas, oriundos da Guiné Conacri, algumas vezes Nalús – o chão Nalú estendia-se para lá da fronteira – muitas vezes de etnias diferentes, que vinham negociar os seus produtos em Cacine e, – quase sempre?! – Utilizar esta actividade como pretexto para recolher informações para o PAIGC.

Mas voltemos aos Manjacos!

Os Manjacos eram os maiores especialistas na exploração da Palmeira Dendê, em todas as suas vertentes! Nesta perspectiva, o nosso manjaco iniciou a sua actividade subindo às palmeiras, mais rápido e seguro do que um macaco, permanecendo no topo apenas auxiliado por uma corda que o envolvia, a si e ao tronco da palmeira, extraindo o vinho que negociava em plena tabanca de Cacine!

O negócio progredia sem crise! Até ver!...

Em Cacine havia um PIDE – eles andavam por todo o lado – que mantinha uma má relação com o Exército e que não gozava da simpatia da população. Dispunha de um grupo especial, operacional, de nativos – os GE’s – que efectuavam operações, normalmente sem conhecimento do exército.

O líder deste grupo, um matulão vaidoso e arrogante, ter-se-à apercebido dos ganhos do manjaco e que estaria ali a oportunidade de sacar uns significativos pesos, sem grande risco!
Terá preparado cuidadosamente a acção e, quando o manjaco se encontrava em cima de uma palmeira, no mato, perto da tabanca, G3 em punho… pum! Já está! Manjaco redondo no chão de uma altura de 10 metros, pesos a mudarem de bolso e ala que se faz tarde!...

Só que… a cena tinha sido presenciada por dois nativos, que mostrando a sua indignação, mas sobretudo a antipatia que tinham para com o matulão GE, de imediato denunciaram o ocorrido à Administração Civil e ao Exército!

O GE foi ouvido, confessou, embora considerasse que não tinha cometido qualquer crime uma vez que apenas tinha morto um manjaco, foi preso e enviado para Bissau!

Depois de alguma indecisão sobre quem deveria continuar o processo concluiu-se que seria a Administração Civil – o crime tinha, efectivamente, sido cometido por um civil – com o apoio do Exército!

Foram ouvidas as testemunhas… faltava apenas a autópsia! Não havia médico em Cacine!... Ele só passava por lá de vez em quando…como iríamos resolver este problema para podermos concluir o processo com sucesso?

Foi enviada uma mensagem ao Comando, em Catió, onde havia médico, solicitando a sua presença em Cacine para realização do acto em falta!

O médico nunca mais chegava! O manjaco tinha sido enterrado provisoriamente, isto é, com uma folha de zinco a proteger o cadáver, não havia outra forma de conservar o corpo, e já lá iam dois dias!

Ao fim do terceiro dia chegou, finalmente a resposta:

- Façam a autópsia com os vossos próprios meios!

Porra! Porra! O que é isto?! Estes gajos estão malucos! Foram estas as melhores expressões! As outras… inibo-me de as referir!...

E agora?! Que vamos fazer?

Bom! Tratando-se de um processo civil cabe à Administração Civil garantir a situação! (parece-me que me vou safar desta!). Só há uma possibilidade: o enfermeiro civil!...

O enfermeiro civil – o Armando – era um nativo de cerca de 35 anos, estatura média, pele muito negra, atlético, olhar esperto, simpático, comunicativo, não tinha o curso de enfermagem nem teria sequer a 4ª classe, mas tinha aprendido bem a profissão ao longo de muitos anos de experiência! Ele tinha todas as especialidades… era parteiro, dentista, gastro, grande especialista na arte de tratar o paludismo, enfim, um verdadeiro médico de clínica geral!

Cabia agora ao Administrador de Posto, o bacalhau (magricela cabo-verdeano de quem não consigo lembrar o nome!) o trabalho de convencer o Armando a completar a sua formação com a especialidade de medicina legal!... O bacalhau desfez-se em desculpas, que era mais fácil o Armando não recusar ao exército e tal… bréu… bréu … (caraças que não me safo!).

Chamemos então o Armando! Apresentado o problema com a maior diplomacia e jeito que jamais pensei ter, foi mais fácil do que imaginei! Veio de lá, apesar da originalidade da situação, a sua simpática habitual resposta: conta comigo nosso 2º comandante!

Marcou-se então a autópsia para a manhã seguinte. O acto deveria ser testemunhado pelas autoridades civil e militar (quem teria inventado esta?), pelo que, cerca das 10H 30M lá vamos nós: o bacalhau, o Armando – completamente equipado de bata, luvas, máscara e as ferramentas necessárias – dois ajudantes nativos e este vosso humilde contador de estórias!

A operação iniciou-se com o desenterrar do morto, e logo aí as camisas saíram das calças para poderem tapar o nariz! O cheiro era horrível, pestilento, pior que suinicultura, e apenas o Armando tinha máscara!

Apesar disso o acto continuou… o Armando cortou… cortou… cortou… falou… falou… falou… numa linguagem técnica que, provavelmente, só ele perceberia!...

Finalmente ouvimos o nosso técnico de medicina legal dizer, com pompa e circunstância, o que melhor percebemos: e agora vamos suturar!

A nossa odisseia chegara, enfim, ao seu epílogo!

Pela tarde, depois de muito bem preparado, o Armando apresentou o relatório da autópsia a anexar ao processo!

Era um manuscrito delicioso, com erros naturais em indivíduo com escolaridade elementar, recheado de termos técnicos, certamente nem sempre bem aplicados e que hoje lamento não ter copiado por não ser capaz de transcrever!

Contudo, jamais esquecerei a conclusão do relatório da autópsia:

O morto, foi, efectivamente morto com um tiro, disparado de baixo para cima, tendo a bala atravessado o fígado e o baço, provocando muitas feridas esquirilosadas.

Ah grande Armando! És um dos meus heróis! Homens como tu deveriam viver eternamente!

Juvenal Candeias
_____________
Notas de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

5 comentários:

MANUEL MAIA disse...

CARO JUVENAL CANDEIAS,

O ARMANDO ERA DESENRASCADO.

A TROPA FOI UMA ESCOLA PARA MUITAS PROFISSÕES MORMENTE A DE ENFERMEIRO.
ESSE CIVIL PROVAVELMENTE TERÁ APRENDIDO O B.A.BÁ NA TROPA E VIROU DEPOIS "DIPLOMADO".

DURANTE 25 MESES DE GUINÉ O MÉDICO DO MEU BATALHÃO SÓ LÁ APARECEU UMA VEZ E TIVERAM DE SER OS ENFERMEIROS A "DAR CONTA DO RECADO".

AUTÓPSIAS NÃO FIZERAM MAS VI-OS FAZER OBRA DE PROFISSIONAIS QUALIFICADOS.

O ANTUNES(FUR MILº) OPEROU O MOURA
(FUR MILº) A UM QUISTO PILOSO NA REGIÃO ONDE AS COSTAS MUDAM DE NOME
E FEZ UM BOM TRABALHO.
PELO MENOS O OPERADO NÃO SE QUEIXA DA INTERVENÇÃO QUANDO LHE FALAMOS NISSO...E CONSEGUIU DESSA FORMA "FUGIR" AO MATO DURANTE UNS DOIS MESITOS...

CONSEGUISTE UM TRABALHO EM ESTRUTURADO, COM RITMO, CONSEGUINDO CATIVAR O LEITOR PARA AGUARDAR NOVAS HISTÓRIAS.


UM ABRAÇO E PARABÉNS PELO ESCRITO.
MANUEL MAIA.

Anónimo disse...

Caro Amigo

Tenho que reconhecer que temos um belo narrador. Li a tua ultima publicação e num dia para esquecer, aqui no Rio de Janeiro, consegui sorrir ao lembrar-me desses acontecimentos, fechei um pouco os olhos e senti-me em Cacine, vislumbrei as altas palmeiras, o episódio que descreves, e a sucessão de acontecimentos posteriores envolvendo o nosso pide, e o choque que tive com ele.

Acho que um dia, se eu conseguir tempo disponível, com as nossas fotos e eventualmente outros contadores de estórias, deviamos tentar publicar um livro da “nossa guerra colonial “, mesmo que só se vendessem 100 exemplares, seria um legado de memórias para os filhos e netos, que jamais imaginam o que nós passámos naquelas longas horas.

Felizmente não sofremos aqueles traumas de ver colegas desfeitos, ou horrores que nos afastassem de vez destas recordações, mas acho que estes escritos, sobretudo para as novas gerações, se não lhes acharem interesse, pelo menos devem perceber, que toda uma geração viveu situações que jamais lhes passariam pela cabeça.

Continua, pois tens jeito.

Um grande abraço do irmão de armas.

Alexandre Margarido

ex-Capitão Miliciano
Comdt da C.Caç 3520

jose rosario bernardes disse...

amigo candeias quando de cacine dispararam ganadas de obus para cameconde. havia msg urg e o telegrafista nao ligava o radio. um grande abraço telegrafista c 3520










ameconde.

jose rosario bernardes disse...

ao comdt da 3520

pelas lagrimas da despedida em bissau. que a vida lhe tenha sorrido um grande abraço telegraf. c 3520

Anónimo disse...

Amigo Juvenal
Parabens pela tua veia de escritor/narrador.
Li, com apreço, mais esta tua narrativa.
A ocorrência passou-se certamente já depois da minha transferência da CCAÇ 3520 de Cacine para a CCAÇ 6 de Bedanda (Compª Africana).
Há, no entanto, 2 personagens da estória que me trouxeram memórias:
O enfermeiro africano, Armando, que, sempre que folheio os meus albuns, lá está comigo e com um filho pequeno, numa fotogarfia tirada perto da enfermaria de Cacine. Fizeste uma boa descrição dele.
A 2ª personagem: o agente Vilar, da PIDE (branco, da Metrópole).
Nem lá na guerra conseguíamos livrar-nos do MAL...!
Lembro-me que, depois de "excomungado" da messe de oficiais, passou a comer na messe de Sargentos.
A partir dessa altura, acabou a "paz" na hora das refeições.
Eu e o Sá, não mais tivemos descanso: Guerra diária de ideias e palavras contra aquele defensor acérrimo do Salazarismo e Marcelismo e dos seus ideais ditatoriais.
Mais tarde, talvez para nosso bem , também foi "excomungado" da messe de Sargentos. Que alívio!!
Há memórias que não se apagam...!
Li também o comentário do Margarido

Um grande abraço para os dois
extensivo a todos os ex-camaradas de armas

José Pires Vermelho
Ex-Furriel Milº CCAÇ 3520 - Cacine