terça-feira, 30 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

1. Continuação da publicação das memórias de infância do nosso amigo Cherno Baldé (aqui, na foto, à esquerda, jovem estudante em Kiev, Ucrânia, em finais dos anos 80; e, na outra foto, à direita, o Engº Cherno Baldé, hoje, no seu gabinete de trabalho, no Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações onde exerce as funções de director do gabinete de estudos e planeamento).



Ataque ao aquartelamento de Cambaju

por Cherno Baldé (*)

Ainda hoje, a nossa mãe está convencida que este ataque foi obra dos primos do meu pai que viviam do outro lado da fronteira, não muito longe de Cambajú. (**)

Aconteceu que, no dia anterior ao ataque, o meu pai tinha recebido uma grande quantidade de mercadorias e, por coincidência, no mesmo dia tinha-se despedido uma pessoa que estava hospedada em casa para tratamento e que voltara junto dos tais primos da outra banda.

Assim, nesse dia do ano de 1966, na calada da noite, pouco depois das quatro horas de madrugada, ouvimos tiros. Primeiro os disparos se fizeram ouvir a oeste para os lados do quartel, fazendo pensar que o objectivo era militar, depois se espalharam rapidamente contornando a aldeia.

A primeira reacção do meu pai foi juntar toda a família dentro da casa onde funcionava a loja que, ao menos, por ter uma cobertura de zinco, era mais difícil de fazer pegar fogo, porque uma das tácticas dos homens do mato era precisamente a de fazer arder as concessões para aterrorizar as pessoas e aumentar a confusão.

Pouco a pouco parecia que os atiradores se aproximavam cada vez mais perto da loja onde estávamos escondidos e aí se concentravam as suas forças. O meu pai estava postado na varanda, junto a porta que dava acesso à loja, defendendo-se conforme podia. Ouvíamos o barulho dos tiros que faziam vibrar as chapas de zinco produzindo um eco ensurdecedor e, no meio desse barulho infernal, ouvíamos as vozes de pessoas que falavam, quase gritando, lá fora.

Mais tarde, o meu pai nos contaria que do aquartelamento tinham vindo dois milicianos [milícias] nativos de Farim e que o tinham intimado a deixar o local devido a forte concentração dos atacantes, ao que ele tinha recusado sob pretexto de que não podia abandonar a sua família que estava dentro da loja. Na verdade, também não queria abandonar a loja que lhe tinham confiado.

Consternados e indecisos, sem saber como convencer o meu pai a deixar a loja que, de facto, estava cercado dos três lados, já estavam a deixar o local quando um deles, instintivamente, perguntou a meu pai:
- O Senhor não tem outra arma melhor que esta mauser ? - disse, apontando para a arma que estava nas mãos do meu pai cujo cano estava fumegante e quase vermelho rubro devido ao ritmo acelerado dos tiros da arma de repetição.
- Infelizmente, não, meu irmão, mas tenho granadas que os brancos me deram e as quais não sei usar.
- Muito bem - disse o jovem miliciano [milícia] -, dê-me a tua arma e vai trazer-me essas granadas para limpar o sebo a esses bandidos.

O meu pai voltou com um saco de granadas na mão e entregou ao militar que tentava afastar os assaltantes já muito perto da varanda da casa, parecia mesmo que o principal alvo do ataque era a loja, situada na entrada leste da aldeia.

De seguida, este intimou o meu pai a entrar para dentro, enquanto ele se perdia na escuridão da noite. O meu pai obedeceu à ordem e no instante seguinte a casa tremia com o choque do estrondo da primeira granada e passados alguns segundos rebentou outra.

Lá dentro, apesar do esforço, as crianças e as mulheres penduradas umas nas outras, não conseguiram conter os gritos de medo e de pânico. No entanto, lá fora, não foram precisas mais, os disparos de armas ligeiras cessaram e em seu lugar ouvimos claramente, na noite, gritos e choros em várias línguas de pessoas que fugiam, e mais perto ainda, os gemidos dos que ficaram destroçados pelos estilhaços das terríveis granadas expansíveis (?) [defensivas] que o miliciano [milícia] estratégica e tacticamente tinha sabido lançar mesmo a tempo e no lugar certo e que fizeram estragos irreparáveis no meio dos assaltantes, provocando a debandada geral e fazendo abortar o ataque, certamente preparado com o objectivo de saquear a loja e provavelmente, quem sabe, liquidar os seus ocupantes, entre os quais estava eu, ainda criança com pouco mais de seis anos de idade.

Mas, com o decurso da guerra, eles voltariam mais vezes, e numa dessas incursões, chegaram mesmo a incendiar a aldeia inteira e seria nessa altura que Cambajú beneficiaria de uma reabilitação completa com casas de zinco para todas as famílias vítimas do incêndio, no quadro da política da Guiné Melhor do General Spínola a fim de encorajar os cidadãos a resistir à guerra mesmo em condições difíceis.

Na altura, já nós estávamos na localidade de Fajonquito onde passei toda a minha adolescência e inícios da vida adulta, claro, já em constante vaivém entre esta localidade e as cidades de Bafatá e Bissau.

_________

Notas de L.G.:

(*)Vd. postes anteriores:

18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

(**) Dúvida: o pai do Cherno era mandinga ? Parecem ser mandingas os atacantes, do PAIGC, aqui referidos na história... Recorde-se que o pai do Cherno era empregado de uma casa comercial, em Cambajú... Mais tarde a família muda-se para Fajonquito.

4 comentários:

Anónimo disse...

Na faixa etária do Cherno existem imensos guineenses internautas.

Talvez o Cherno Baldé seja o primeiro de muitos.

E talvez oiçamos coisas que se viveram e que se contam na Guiné, desde as tristes até às hilariantes, mesmo em crioulo/português que ainda é mais interessante.

Luis e co-editores, um pouco de música guineense, que, tanto a de autores revolucionários a outros modernos, é riquíssima, tornava o blog ainda mais apelativo.

Luís Graça disse...

Amigo ou camarada anónimo:

Agradeço o comentário e a sugestão. Preferia, no entanto, que deixasses no fim o nome e o contacto... Quanto à música (guineense, caboverdiana, etc.), também concordo, mas há problemas de respeito pelos direitos de autor que me inibem... Ainda não sei como contorná-los ou resolvê-los... Vou ver o que se pode fazer...

Luís Graça

MANUEL MAIA disse...

CARO CHERNO,

É JÁ UM HÁBITO LER-TE E ISSO É BOM SINAL.

VIESTE TRAZER UMA LUFADA DE AR FRESCO AO BLOG.
ERA PRECISO "OUVIR" PARTE DA OUTRA PARTE E TU TENS CONSEGUIDO LEVAR-NOS ATÉ TI,GRAÇAS À INTELIGÊNCIA COM QUE O FAZES.

ÉS HONESTO NAS APRECIAÇÕES QUE PRODUZES. ESTÁS DE ALMA E CORAÇÃO SEM OS RESSABIAMENTOS DOENTIOS QUE NOS PRIMEIROS ANOS DO PÓS INDEPENDÊNCIA MINARAM AS RELAÇÕES ENTRE DOIS POVOS COM LAÇOS DE CONSANGUINIDADE,COM AFINIDADES A VÁRIOS NÍVEIS...

E FOI PENA QUE TIVESSE ACONTECIDO.

TU ESTÁS AÍ,DESEMPOEIRADO,DESPIDO DE PRECONCEITOS,A FALAR DE TI,DOS TEUS,MAS SEM PEDRAS NO SAPATO.

OBRIGADO CHERNO POR ESTA LIÇÃO DE HUMILDADE TÃO PRENHE DE INTENCIONALIDADE NO ESTENDER DA MÃO SEM COMPLEXOS, SEM SUBSERVIÊNCIA.

CONTINUA A ESCREVER COMO ATÉ AQUI, TRATANDO OS TEMAS COM O SENTIDO DE HONESTIDADE QUE TÃO BEM TENS EXPLANADO.
CONTINUA A SER TU PRÓPRIO,SIMPLES MAS DECIDIDAMENTE CONHECEDOR.

ESTE TEU RELATO DO ATAQUE ESTÁ BEM CONDUZIDO E ENVOLVE-NOS FACILMENTE NA CENA DO MESMO.

CONTINUAREI À ESPERA DE MAIS.

UM ABRAÇO

MANUEL MAIA

Anónimo disse...

Cherno

Gosto do modo como escreves e transmites recordações que te marcaram (profundamente),dado que passadas em idadade tão tenra não foram esquecidas e são agora descritas de maneira tal,que me(nos?)faz sentir fazer parte de cada um desses momentos.

Espero mais

Um abraço
Luis Faria