quarta-feira, 24 de junho de 2009

Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para mundo

Guiné > Zona Leste > Contuboel > Tabanca dos arredores > CCAÇ 2479 (1968/69) > Centro de Instrução Militar > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece...

A placa rodoviária assinala alguns das povoações, mais importantes, mais próximas, a norte: Ginani (17 km), Talicó (22 km), Canhamina (27 km), Fajonquito (30 km), Saré Bacar (39 km), Farim (96 km)...


Foto: © Renato Monteiro (2007). Direitos reservados.




1. Publicação da segunda de cinco pequenas histórias que o Cherno Baldé, novo membro da nossa Tabanca Grande, nos enviou, com memórias da sua infância e adolescência (*):


CAMBAJU: O primeiro contacto com o mundo exterior

por Cherno Baldé


Em Cambajú, pequeno centro comercial, começou o despertar da minha infância, altura em que, saído da pequeníssima aldeia de Sintchã Samagaya, fundada por meus pais, aterrei-me numa aldeia de muito maior concentração de moranças e de gente.

Cambaju estava situada mesmo na linha da fronteira com o Senegal, o que lhe emprestava um certo ar cosmopolita onde se cruzavam pessoas de várias origens e destinos e um certo movimento de vaivém de pessoas e mercadorias com as suas três ou quatro casas comerciais, algumas pequenas boutiques e o contrabando pra cá e pra lá das duas fronteiras.

O meu pai era encarregado de uma das casas de comércio, e aquele movimento a que não estava habituado, fascinava-me e me prendia a atenção ao lado do meu pai ocupado a atender as pessoas que vinham comprar mercadoria diversa. Ele nunca tinha tempo para mim e as minhas inúmeras perguntas.

Junto ao balcão, havia um velho aparelho de rádio que ora passava músicas do Mali em língua Bambara ora transmitia discursos intermináveis em Surua (Olof). Eu não gostava nem de uma nem de outra, todavia queria saber como é que aquelas pessoas tinham conseguido entrar lá dentro daquela caixa pequena e ficar por lá durante todos esses dias a falar e a cantar sem precisar de água ou comida, era a questão que me intrigava.

Todavia o meu pai não respondia às minhas questões ou porque não tinha tempo a perder comigo ou porque também tinha lá as suas dúvidas não esclarecidas, normais, na altura, para um aldeão iletrado como ele, mesmo trabalhando para gente da cidade. Quando não negociava com os comerciantes ambulantes que traficavam para o Senegal, atendia as mulheres que pediam conselhos sobre a escolha de tecidos para as próximas festas, no meio de risos e galanteios banais.

Ele tinha um jeito especial de atender as mulheres e via-se mesmo que o fazia com muito prazer. As mulheres, também, ao que parece, não eram indiferentes à simpatia do meu pai que todos consideravam um homem bem parecido. Ele raras vezes ficava irritado o que só acontecia quando alguém, de forma inesperada, mudava a sintonia do rádio e sobretudo se calhava que fosse a rádio da Guiné-Conakri onde de repente explodia a voz imponente de Sékou Turé.

Não era segredo para ninguém que as autoridades coloniais portuguesas não apreciavam aqueles que ouviam esta rádio e o meu pai, certamente, fazia parte das pessoas de bom senso. Ele tinha consciência clara da importância da formação escolar, numa altura em que o analfabetismo e o obscurantismo eram dominantes e se fazia sentir a entrada em força da religião islâmica na sua forma mais primitiva e intolerante importada por homens semi-letrados de Futa Toro e Futa Djalon.

Uma vez, ouvi-o lamentar, numa conversa com a minha mãe, a sua condição de analfabeto, pois este facto aprofundava a sua dependência e impotência 'vis a vis' dos seus patrões que vinham executar balanços regulares e que, não raras vezes, elogiavam seu desempenho financeiro, sem qualquer contrapartida, certamente, devido aos enormes lucros acumulados, numa zona de fronteira aberta ao tráfico e contrabando de mercadorias e de câmbio de divisas dos dois lados.

Esta constatação não será alheia ao facto de o nosso pai, insistir mais tarde, apesar da adversidade do ambiente reinante, na nossa educação escolar, já em Fajonquito, para onde o meu pai foi transferido, precisamente para trabalhar numa loja ainda mais importante, em jeito de prenda pela sua dedicação, mas também porque o acesso à localidade de Cambaju estava cada vez mais perigosa devido aos ataques e minas colocadas pelos guerrilheiros na estrada que ligava Fajonquito a Cambajú.

Cherno Abdulai Baldé, Chico
Natural de Fajonquito,
Sector de Contuboel, Região de Bafatá

__________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

3 comentários:

Luís Graça disse...

Chico (sem paternalismos...), meu amigo e irmão da Guiné-Bissau:

É (ou foi) um grande homem, o teu pai. Ele teve a clarividência suficiente, apesar de "analfabeto", de perceber nos anos 60 a importância que tinha a educação para ele e sobretudo para os filhos.

A educação não é apenas um meio para a mobilidade social, para podermos sair do "buraco" onde nascemos... É sobretudo uma condição fundamental para sermos livres. E no obscurantismos que os fundamentalismos e os movimentos messiânicos medram, crescem e progridem... Obrigado pela tua crónica.

Anónimo disse...

Chico
Deixa-me acrescentar ao comentário do Luis, que a educação que adquirimos, também a devemos pôr ao serviço da sociedade. Será dessa maneira, a partilha do conhecimento, que poderás ajudar ao estabelecimento de laços, ao encontro das melhores soluções, tendo em vista a melhoria da vida comum.
Com sensatez e paciência, na medida em que a tua visão das coisas possa ter outro alcance.
Com votos de felicidades, vai um abraço
José Dinis

MANUEL MAIA disse...

AMIGO CHERNO,

UM HOMEM QUE SOFREU UMA VIVÊNCIA DOLOROSA COMO TU,QUE SE AGIGANTOU QUAL TITÃ,VAI SER CAPAZ DE TRANSMITIR ESSA FORÇA INTERIOR BEM COMO OS CONHECIMENTOS ADQUIRIDOS À SUA GENTE POR FORMA A AJUDAR A MINORAR AS AGRURAS DO SEU FUTURO.

ESTOU CERTO QUE UM DIA O TEU PAÍS HÁ-DE FALAR,COM RECONHECIMENTO,DE UM TAL CHICO CHERNO QUE EM MIUDO CIRANDAVA,COMO TANTOS,POR ESSA TERRA VERMELHA À CATA DE ALGO COM QUE ENGANAR A FOME, E QUE PELO SEU PULSO SE FEZ NUM HOMEM DE H MUITO GRANDE, ONDE MUITO POUCOS CHEGAM.

CONTINUA SEM DESÂNIMOS,SEM RECEIOS.

FOSTE FADADO PARA SER GRANDE.