segunda-feira, 25 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4414: Destas não reza a História (Manuel Maia) (2): Quem matou Inesa?

1. Mensagem de Manuel Maia, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, (1972/74), com data de 23 de Maio de 2009:

Caro Vinhal,
Caro Vinhal, hoje remeto-te uma história (não gosto de estória...) diferente em prosa...


Passou-se nos idos anos cinquenta da centúria anterior, período obscurantista em que o nível de iliteracia era absolutamente confrangedor...

Hoje, graças à dona Lurdes e à socrática figura, sustentado nas novas oportunidades, o país está em vias de dar o salto qualitativo largando definitivamente a carruagem fundeira para se tornar ele próprio, a máquina propulsora, o motor cultural europeu, quiçá mesmo mundial...

A revolução cultural socratiana ultrapassará, de longe, a visão do camarada Mao Tsé Tung, primeira figura das que o mundo conheceu a esse nível...

A engenhosa engenharia socratiana para a obtenção domingueira do canudo reluzentemente enquadrado em moldura de talha dourada, qual pergaminho medieval, bem como o não menos custoso e valorizado diploma Varense, igualmente alvo de tratamento especial que as paredes do, por certo, pomposamente decorado (a letra dirá com a careta...) espaço bancário reservado às altas esferas saídas de um balcão de província, são a prova provada da revolução cultural, que se espalhará, qual maná, por esse mundo fora...

Perdoe-se-me esta pequena divagação e retomemos o fio à meada, que é como quem diz, voltemos à cousa que motivou estas linhas...

Pois nesse negro período, havia uma certa apetência, nos meios rurais, pela nobre Arte de Talma...

O caso que ora narro passou-se não em Alguidares de Baixo, como depreciativamente se recorre à expressão sempre que se pretende omitir o local da ocorrência, mas sim em Terras da Maia, dessa Maia de Gonçalo Mendes e, perdoe-se-me a imodéstia, deste vosso escriba de horas mortas...

Os actores, todos eles amadores (porque amavam a representação, na verdadeira acepção da palavra...) quer porque a indumentária era apelativa - as peças reportavam-se sempre a períodos epocais já muito distantes, e óbviamente as roupas tinham um visual manifestamente diferente - quer ainda para alimentar o ego que a subida a um palco sempre aporta, (a luz da ribalta entontece...)

Os próprios estrados das salas de aula tinham esse objectivo de projectar o professor para umpatamar mais elevado, fazendo-o alvo das atenções...

Os actores, dizia, juntavam-se nas noites de sábado, no estabelecimento de barbearia local do Francisco Silva, alcunhado de Rôla...) onde o homem da navalha,também ele actor (normalmente protagonista dada a sua faceta de ter sido o unico a decifrar a "Pedra de Roseta" da "Cartilha Maternal" do grande João de Deus, por forma a aceder à leitura de carreirinha sem quaisquer sobressaltos...) tinha função redobrada...

Assim, o barbeiro Xico era quem tinha o esfalfante trabalho de ler, até à exaustão, todas as falas, todas as deixas, de forma a conseguir que os colegas actores (iletrados) decorassem os seus papéis...

Quando a coisa ficava afinada, aí vinha então o dia da estreia, com pompa e circunstância, até mesmo publicidade em cartazes onde os nomes dos actores eram apostos em letra miuda, à excepção do de Francisco Silva, que surgia num corpo enorme... A sala era a dos Bombeiros Voluntários, que apenas devia a sua existência à necessidade imperiosa de obtenção de fundos para a construção do novo quartel uma vez que o existente era simplesmente exíguo...

A sala não reunia portanto um mínimo de requisitos mas era por uma boa causa...

O guarda-fatos e os cenários eram eles também resultante de trabalho gracioso das gentis meninas da Maia e do pintor maiato, homem dos sete ofícios...

A peça de estreia foi "Inês de Castro" que ilustrava os amores proibidos do Infante D. Pedro (futuro rei D. Pedro I "O Crú" ) e Inês de Castro, aia de D. Constança, esposa do infante...

D. Afonso IV, pressionado pelos validos que o instigavam a matar a amásia de Pedro, pois segundo eles, Inês oriunda de família malquista galega, poderia constituir perigo para a coroa portuguesa acabou por incumbir dessa tarefa, Pêro da Covilhã, Álvaro Gionçalves e Diogo Lopes Pacheco...

Jazia Inês prostrada, em mar de sangue, após os golpes desferidos por Pêro da Covilhã e seus cumplices, rodeada de pajens e cortesãs num carpir contínuo, arrepiante, quando D.Pedro, regressado da caça, irrompendo na sala do crime e perante a evidência do quadro, pergunta:

- Quem matou a INESA ?

Face ao silêncio sepulcral, voltando-se para um dos personagens menores atirou:

- Fala minha besta!

O figurante, de papel secundário, (pajem provavelmente...) esquecido do nome do assassino, ao invés de dizer que fôra Pêro da Covilhã quem desferira a primeira facada no estômago da vítima, balbuciando na sua gaguez, demora uma eternidade (o que leva Pedro a sair de cena...) para desabafar contra a fanfarronice do barbeiro/actor/ensaiador (que aqui fazia de Pedro e de Pêro...) acabaria por dizer:

- Foi, foi, foi o Xico da Róla (alcunha do actor/barbeiro que representava os papéis de Pedro de Pêro) com uma facadela no fole das migas...

Acto contínuo, o dito Pêro/Xico da Róla que deveria estar já a caminho de Castela para aí se refugiar a mando de D. Afonso IV, irrompe na sala dizendo:

- Um momento, um momentinho senhores espectadores que vou só f.... as ventas a um destes analfabetos sacanas f.... da p... que me chamou Xico da Róla... Estes piolhosos são uma autêntica ralé que não conhece a nobre Arte de Talma... Não passam de actores secundários que nem ler sabem... Ando aqui a dar pérolas a porcos dentro e fora do palco...

E foi o bom e o bonito...

O referido Xico começou a contenda mas acabou por ser o bombo da festa...

Ninguém o suportava pelo pedantismo que exibia enquanto barbeiro erudito e protagonista de vários papéis nas varíadíssimas peças de teatro já produzidas.

Apesar do papel importante junto dos homens da terra pois lia o jornal em voz alta, especialmente às segundas-feiras por causa dos relatos do futebol, acabou mesmo assim por ser o alvo da ira de todos, actores e público em geral que aproveitou para molhar a sôpa em tão pedante figura...

Subindo ao palco das suas frustrações, os pagantes não aceitaram ter de ir embora sem terem visto missa amén... mas fundamentalmente não aceitaram o enxovalho.

Alguém fez cair o pano e os gritos e algazarra continuaram até que a Guarda acabaria por fazer o gosto ao cacetete, malhando a torto e a direito...

Os bandos saídos do arame farpado da plateia atamancada não conseguiram digerir os insultos nem calar a ofensa... Pararam a representação e disseram basta ao Xico da Rôla...

Hoje tenho pena que não tenhamos parado nós também, actores forçados no palco do teatro da guerra da Guiné, (nome bonito que os senhores da guerra gostam de utilizar...) para acusarmos os Xicos da Rôla que ali nos colocavam aproveitando eles para serem os protagonistas...

Para os Xicos da Rôla éramos actores secundários, representávamos bandos, mas quem fez o espectáculo da guerra, fomos nós, os andrajosos, com barbas hirsutas e cabelos mal cuidados, cheirando a catinga, porque nos calhou o lado pior da cena, vivendo em tugúrios nojentos,em buracos escavados no chão, como ratos, sem água, sem condições de higiene (as miseráveis que existiam tivemos de ser nós a criá-las ...), sem comida digna desse nome despejada quantas vezes em marmitas sem limpeza eficaz, ENQUANTO os Xicos da Rôla cirandavam perfumados, de óculos Ray-Ban (não fosse o sol forte danificar-lhes as vistas...), de lenço dobrado e colocado com parcimónia, quais pavões ARMANIamente trajados, de penduricalho reluzente ao peito, arquitectando traições à Pátria e a nós próprios que lhes alimentávamos as promoções, longe do perigo e do arame farpado, enxovalando-nos outra vez, agora mais de trinta anos passados...

Pena não termos agido como os amadores da Arte de Talma...


Com a promessa de envio das sextilhas semanais despeço-me com um grande abraço extensivo a toda a tabanca.
Manuel Maia
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 24 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4408: Bandos... A frase, no mínimo infeliz, de um general (22): O desvendar do segredo (Manuel Maia)

Vd. primeiro poste da série de 7 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4154: Destas não reza a História (Manuel Maia) (1): Estou na Guiné há treze meses e a minha mulher está grávida

3 comentários:

Hélder Valério disse...

É isso aí!
Pode-se falar do que se quiser, começar por onde der mais jeito mas, se quisermos, podemos sempre "levar a água ao nosso moínho".
Foi bem apanhada essa comparação, esse paralelismo, para evidenciar mais uma vez quanto o silêncio do AB se pode tornar ensurdecedor e, talvez até mais do que isso, uma confissão.
Um abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Caro Maia,

Seja em prosa ou em verso é sempre interessante ver a forma como escreves e descreves as situações sem esqueceres o essencial. Mais uma pedrada, não no charco mas em cheio no "latoeiro", pela lata que tem e pelo passear do latão.
BSardinha

Anónimo disse...

Manuel Maia
Por mim tanto faz que escrevas em prosa ou poesia, com quanto continues a escrever como tão bem sabes.
E não o poupes que nós apoiamos-te sempre.
Jorge Picado