segunda-feira, 18 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4368: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (6): Raízes...

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > 1968 > CART 2339 (1968/69) > O nosso Alf Mil Torcato Mendonça, de peito feito às balas dos guerrilheiros do PAIGC (instalados ao longo da margem direita do Rio Corubal), em cima do capô de um burrinho, qual exímio equilibrista, na estrada Mansambo-Bambadinca (?). Nunca sei qual deles é o verdadeiro herói, o Torcato ou o José (à esquerda). (LG) Foto: © Torcato Mendonça (2006). Direitos reservados. 1. Mensagem de Torcato Mendonça, de 15 de Maio último: Olá, Camaradas Editores Com a tourada ao lado, fui escrevendo e vendo as pegas a não darem. Este escrito pouco tem a ver com o que costumo enviar. É para aliviar tensões e aquilo a que dizem ser "polémicas". Tenho disso escrito por aqui. Falta teclar. Há por aí textos vários. Um dia teclo e vai tudo. Estou a apanhar ritmo e a "acalmia" para a escrita. Mais uma pega falhada... Pois vai este escrito para ser diferente... Abraços do, Torcato 2. Mensagem de 16 de Maio: Amigos Editores. Ontem, depois de há muito nada mandar de escritos, enviei um com o Titulo - Passado e Presente. Estava "encrensado" com a tourada...e reli hoje. Se publicarem mudem ao menos o titulo para - Raízes. Estou com tentos na "forja": Musa Iéro; O Sexo em Tempo de Guerra; Pensamento Alterado (título a ser mudado) e etc. (...) Abraços e até ao meu regresso...Torcato 3. Comentário do L.G.: Há dias provoquei o nosso amigo e camarada José, alentejano-algarvio a viver no Fundão, a terra da melhor cereja do mundo (conselho de amigo: não venhas já a correr, Luís, que a primeira é para os pardais, os turistas e os apressados,; a melhor é a de Junho)... José: Vamos lá sair dessa morrinha... Daqui a um bocado tens aí o teu neto a querer jogar à bola contigo... Tens de ficar em forma... Vamos desenguiçar esses teus escritos... (...) Parece que a provocação resultou... O nosso camarada Torcato (re)começou a mandar-nos os seus textos, qu vamos publicar para contentamento dos seus admiradores (onde eu me incluo)... Alguns ficaram no limbo. Vamos recuperá-los. Combinei com ele que vai tudo para a série Estórias de Mansambo... tanto as de ontem como as das de hoje, tanto as histórias como as estórias, tanto o Torcato como o José... Simplex, bloguex... Obrigado, camarada. (LG) 2. Estórias de Mansambo (17)> Raízes por Torcato Mendonça Deixei a Auto-estrada, volteei pelo nó de ligação e preferi entrar na estrada secundária, procurando caminhos de infância ou, talvez melhor, de juventude. Tarde quente em Verão já, nesse ano, meio gasto mas aquecendo ainda forte os montes ligados uns aos outros, cobertos pela vegetação típica de estevas, medronheiros e sobreiros. A estrada serpenteava entre eles na fronteira entre Algarve e Alentejo reflectindo o calor. Conduzia devagar, com tempo só para mim e deliciando-me com a paisagem, sabendo que, alguns quilómetros à frente, a estrada seria mais larga e recta, correndo pela planície e charneca arenosa adentro. Mais uma curva e, antes de um cruzamento, aparecem umas quantas casas brancas, com as características barras azuis a debruarem portas e janelas, além das barras a subirem, menos de um metro, do solo xistoso do pequeno largo. Numa delas, à porta estava dependurado o característico garrafão já meio desfeito mas o suficiente para nos indicar a taberna ou a loja de tudo. Uma breve paragem, carro estacionado de traseira para o sol pois sombras eram falha da natureza e dispensável para os homens. Saí respirando o ar puro, sentindo o silêncio do calor, os cheiros daquela terra, o barulho das cigarras e a deixar entrar as recordações de um passado não tão distante assim. Devagar, como aquela terra nos exige, atravessei o largo em direcção à porta com o garrafão e entrei afastando as fitas de plástico da cortina. O fresco veio ao meu encontro e a penumbra obrigou-me a meter os óculos ao bolso. Dois velhos jogavam damas numa mesa a um canto. Ao balcão um homenzarrão, barriga proeminente, mãos apoiadas no balcão de madeira escura e usada, mangas da camisa aforradas e colete escuro. - Boa tarde a todos. - Boa tarde. - Resposta calma com olhares de interrogação. - Bebia uma cerveja preta se tiver e fresca, claro. - Cerveja só das ‘loiras’, grandes ou minis. - Mini, para já. Para não beber sozinho convido-os a beberem qualquer coisa. Agradeceram e recusaram. Bebi devagar, encostado ao balcão. Abri mais o colarinho do pólo e, sem dar por isso, deixei aparecer a tatuagem de um dos braços e disso me apercebi ao ver o olhar do taberneiro. - Isto parece ter cada vez menos gente. - Vai-se tudo. Uns para baixo para o Algarve e outros para cima para Lisboa e outros sítios. Só ficam os velhos e os que estão fartos do reboliço. -Vossemecê tem isso aí escrito no braço e, pela cara, se calhar andou por África. -Andei. Abanou um pouco e lentamente a cabeça. Depois devagar arregaçou um pouco a manga da camisa. Lá estava desenhado um coração com amor de mãe. Rápido baixou a manga. Não consegui ler o resto. - Então o senhor também para lá foi. - Andei pela Guiné. - Porra, que foi lá que eu estive. A cara abriu-se mais, o sorriso apareceu, os olhos ficaram mais vivos. Parecia outro. - Então, por onde? - Pelo Leste; Bambadinca e outros lados. - Eu, primeiro, fui para o Norte, Bigene e depois para Catió, lá pelo Sul. Quase não vi Bissau. Porrada e mais porrada, fome e febres e um calor de um cabrão. O tempo, esse, passava devagar demais. -Mais uma mini, loira e fresca. Riu-se. Tirou outra para ele e de um trago bebeu metade. Depois falou sobre a Guiné, as saudades ainda hoje dos camaradas e o regresso. Sentia-se a necessidade de falar, desabafar, mandar para fora as memórias retidas. Parou, bebeu o resto da mini e mais calmo, mais pensativo, voltou a falar: -Quando regressei, foi difícil fazer-me à vida. Andava por aí sem saber o que fazer. Andava inquieto. Um dia abalei até Setúbal. Estive lá uns anos bem bons mas tive que voltar. Não dava. Tomei conta aqui da loja do meu pai. Voltou a calar-se. Senti que regressara lá ou a alguma memória recalcada. Quanto dele lá teria ficado? Deu uma pequena palmada no balcão, olhou-me e com uma voz mais funda, mais grossa e pastosa, perguntou: - E vossemecê, deu-se bem com aquilo? - Ninguém se deu bem naquilo camarada. Vim e lembro aquilo como você. Pega-se á pele, entra cá dentro e fica para sempre. - Não tenha dúvidas. São lembranças fortes. - Tenho que ir. Quanto devo? - Porra. Nada, porra que até ofende. Então um homem está aqui a falar daquelas vidas e ia receber dinheiro ?! Quando passar aqui outra vez vem ao castigo’ e falamos melhor. Agora é de amigos… - Obrigado´, camarada. A malta que esteve na Guiné parece que tem uma união diferente, mais forte. - Não tenha dúvidas; não tenha dúvidas. Saí para o calor da tarde e senti-o atrás de mim. Voltei a apertar-lhe a mão forte e uma palmada correspondida no ombro. - Belo carro. Correu-lhe bem a vida não? - Nada disso. O carro é do patrão. Fui condutor na tropa e depois continuei na vida civil. Vou entregar o carro a Lisboa. - Pois…por aqui. Vai no caminho certo. Apareça um dia. E ria-se. - Até á próxima, camarada. - Até…lá. ____________ Nota de L.G.: (*) Vd. último poste da série > 10 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4171: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): Emboscada na Fonte de Mansambo

5 comentários:

Juvenal Amado disse...

A Guiné tornou-nos em irmãos.
O facto de lá termos estado anula desde logo estatuos siciais, paixões clubisticas e partidárias.
Vem a conversa de início timida, depois a despedida com abraço de velhos conhecidos e fica a promessa de reencontro.

Depois disso, o dia corre no silêncio das nossas recordações.

Foi o que nós soldados trouxemos na bagagem, um coração enorme, que bombeia mais forte,quando falamos daquela terra e suas gentes.
Um abraço para o Torcato e toda a Tabanca

Juvenal Amado

Hélder Valério disse...

Olá amigos, pode parecer desnecessário mas comento apenas para dizer que é exactamente assim como o Juvenal Amado retratou, que eu também entendo este "fenómono" dos "guineistas", de como o tempo nos foi aproximando desta forma fraterna, de que o Blogue é apenas uma amostra, bem válida, por sinal.
Um abraço para todos e em particular para o TM.
Fico com curiosidade em saber se esse episódio tem ou teve sequência e, caso sim, se esse camarada tem condições (meios técnicos, nada de juizos de valor...) para conhecer o nosso Blogue.
Hélder S.

jorge félix disse...

... eu sabia ... Aquela água da Bolanha ferra-nos marcas que nos identificam em qualquer chão.
Gostei muito do "guião",diálogos, que são teus mas também nos pertencem.
Todos,mas todos, (os Luso-guinéus), viveram esta história.É bom que alguém as escreva, aqui no Blog, para que a alma sossegue e o corpo relaxe. Boa escrita TMendonça.
Estou á espera de mais.
Jorge Félix

Anónimo disse...

Quase comovente... não fosse ver um alentejano a "pescar" alentejanos no Alentejo.
Espero que das próximas vezes seja um 2CV...
Albert Branquinho

Anónimo disse...

Bem...não tenham duvidas, não tenham duvidas que aquela terra vermelha e ardente, aquela neblina e, principalmente, as suas gentes ficaram marcadas dentro de nós. Não tenham duvidas.
Só que durante muito,muito tempo não tinha "vagar"...mas sempre, para mim, com ou sem vagar,para quem esteve na Guiné teve lugar no meu coração meu caro Juvenal e, ao Helder acrescento que há sempre sequência...sempre. Mas como disse alguém, no sitio para onde certas pessoas vão o dono, desse sitio, não sabe economia...e a net é desnecessária, penso eu...vidas... certas gentes dizem que, quase de certeza, o nosso blogue chega lá. Eu escrevo Jorge Félix, eu escrevo...teclar e enviar...??depois é com os nossos queridos Editores. Um 2CV vale um dinheirão...não me importava de ter um...Albert Branquinho "agente" por aquelas terras temos tempo...carro apropriado...nada de grande rebuliço...preferimos gente reboliça...mas eu, disso me penitencio,"abalei" há muito tempo e, por "mor deste feitio" estou sempre de passagem...Abraços TM