domingo, 5 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4141: Os Bu...rakos em que vivemos (2): Bula, CCCAÇ 2790 (António Matos)

1. Mensagem de António Matos (*), ex-Alf Mil da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, com data de 1 de Abril de 2009: Caro Luís Graça, Perante o teu desafio, não podia deixar de me alistar de imediato na descrição de mais um buraco da Guiné, desde logo o único que conheci. Talvez o ideal fosse, antes de mais, definir o que entendo por buraco neste contexto. Assim, buraco, seria todo e qualquer local onde, o militar em comissão de serviço, se via confrontado, diariamente, a desenvolver a acção que lhe fora confiada com grande probabilidade de ser vítima atingida na sua integridade física ou moral durante aquela guerra. Nesse sentido, a Guiné, toda ela, era um imenso buraco. Não limitarei, portanto, a designação ao(s) local(ais) onde a intensidade das acções inimigas tivessem sido mais assíduas ou desferidas com maior acutilância. É, pois, com essa postura realista e humilde que reinvindico a minha zona de actuação como um buraco de dimensões enormes não esquecendo todos os outros camaradas que passaram as passas do Algarve em missões de grande stress e quantas vezes com a dor do ferro a trespassar-lhe a carne e a arancar-lhe pedaços... Estive em Bula cujos limites (grosseiros) seriam, a Norte o Cacheu (S. Vicente), a Oeste, Ponta Matar, a Este, Choquemone e a Sul o Mansoa.

Bula > Mercado Foto: © Luís Faria (2009). Direitos reservados De 1970 a 1972 foi uma zona de grande actividade guerrilheira com passagens constantes de Este para Oeste e vice-versa a desencadear constante perseguição da nossa parte e originando-nos diversas baixas. Na tentativa de minorar essa movimentação do IN, foi montado o maior campo de minas de todo o ultramar (cerca de 16.000 minas) em cuja equipa de técnicos me encontrava na qualidade de alferes atirador e minas e armadilhas. A montagem demorou bastante tempo e o desgaste físico e psicológico a que fomos submetidos leva-me a confrontar essa realidade com qualquer outra na Guiné. Lá, vi caírem vários camaradas de pernas decepadas; Lá, vivi momentos de inolvidável apreensão ao temer flagelações sem hipótese de grandes defesas, pois não estávamos armados uma vez que se tornava incompatível o transporte da G3 com aquela actividade; Lá, vi indígenas igualmente vítimas daqueles engenhos; Lá, voei com o sopro da deflagração duma mina que tinha sido accionada por outro camarada; De lá, falei com o meu Deus a implorar protecção; Do meio de todo aquele inferno lembrava os pais, irmãos, namorada... Naquele campo de ferros e trotil alienei parte da minha capacidade de ser inteligente para sobreviver e poder, um dia, vir a um blog contar como foi... Os dias começavam bem cedo para que o calor não perturbasse tanto os movimentos cirúrgicos que as nossas mãos executavam... Quantas vezes, mal chegados à arena, regressávamos de imediato fruto de acidente com um camarada... No dia seguinte, qual trapezista que cai do seu equilíbrio e se estatela no chão, voltávamos, maquinalmente, estranhamente calmos, sem reinvindicar nada, até que (quantas vezes, meu Deus!) o PUM se ouvisse e os gritos nos dilacerassem as entranhas... E os dias sucediam-se... E os acidentes também... E os erros que se cometiam aquando de deslocações pelo campo a fim de permitir operações que nos eram atribuídas... E com que trágicos resultados... E quantas vezes, depois de regressar ao quartel após esse part-time eu tomava o comando do meu Pelotão para o acompanhar em operações de maior melindre... Mas nem só de minas era constituído o nosso dia-a-dia! No nosso buraco cabíam outras realidades... O nosso camarada António Matos manuseando uma mina portuguesa. Foto: © António Matos (2009). Direitos reservados Estive destacado em Augusto Barros cuja população, hostil por excelência, era verruminosa. Às nossas ofertas de arroz e mão de obra para a construção de tabancas, agradeciam com flagelações. A essas, respondíamos com galhardia e de todas saímos vencedores e impusemos a autoridade. As picadas de acesso a Bula cedo se tornaram suportáveis pela adopção de critérios psicologicamente traumatizantes: as viaturas da frente eram cheias com as mulheres e crianças que necessitavam de se deslocar aproveitando as disponibilidades militares. Porém, a hipótese de contacto era sempre admitida e o ambiente tornava-se fechado, de dentes cerrados, olhos prescutando o inimigo e o mergulho para o chão estava à distância de um clique. Quando os mísseis assobiaram por cima das nossas cabeças, a dimensão da guerra tomou outra envergadura. Quando as Panhards demoravam mais um bocado e a luta tomava foros de coisa de homem-a-homem, a nossa meninice perdia mais uns pontos e os homens iam-se formando com a bitola das leis da selva. E quantas vezes era solicitado o heli-canhão que, ao aparecer, permitia que muitos soldados chorassem de alívio e Lhe agradecessem a benesse de continuarem vivos... E para culminar a configuração do buraco, chegados ao quartel, quantas vezes encarávamos uma hierarquia militarmente incompetente, balofa, désputa e estúpida! Esta hierarquia que perguntava pelos estragos materiais e esquecia os mortos e os feridos! Isto não são figuras de retórica, sr. Almeida Bruno! Se do alto do seu pedantismo tiver dúvidas (não as devia ter, falando como fala!) recordo-lhe o 19 de Janeiro de 1971 na estrada Bula-S.Vicente. Documente-se e limpe-se a esse guardanapo, meu caro senhor! Nem só de Guileje viveu a guerra da Guiné! E heróis, houve-os nas mais insignificantes situações! Nos mais miseráveis e recônditos buracos desabrocham estórias dum dramatismo incomensurável que a morte, só por si, deveria fazer erguer monumentos individualizados a cada uma das vítimas! (in http://sekanevasse.blog.com/). Camarada Luís Graça, por aqui me fico na identificação do meu buraco na expectativa de que esta prosa, pouco cuidada, possa ser motivadora de outras fotografias que envergonhem os homens do ar condicionado, calcanhares em cima da mesa, arrotando estrondosa e etilicamente nas reuniões da socialite! Um grande abraço, António __________ Notas de CV: (*) Vd. último poste de António Matos de 4 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4139: Comentários que merecem ser Postes (1) As vacinas da tropa ou as doses cavalares (António Matos) Vd. Primeiro poste da série de 31 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4115: Os Bu... rakos em que vivemos (1): Banjara, CART 1690 (Parte I) (António Moreira/Alfredo Reis/A. Marques Lopes)

5 comentários:

António Matos disse...

Apenas uma emenda ao site de referência ao sekanevasse.
Dever-se-à escrever http://sekanevasse.blog.com
Somente
António

António Matos disse...

Também aproveito para esclarecer que, de facto, sou eu quem se "entretém" a desmontar aquela mina.
António

António Matos disse...

Isto vai às mijinhas mas vai ...
A mina não era IN mas sim nossa.
António

MANUEL MAIA disse...

PARABÉNS PELA FRONTALIDADE EVIDENCIADA RELATIVAMENTE AOS ALMEIDAS BRUNOS QUE ANDARAM NAS MARGENS DA GUERRA,NO BEM BOM DO AR CONDICIONADO,LONGE DOS TIROS E DAS DIFICULDADES DO QUOTIDIANO QUE OS MILICIANOS COMO NÓS CONHECERAM DE PERTO.
MANUEL MAIA

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.