quarta-feira, 1 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4119: FAP (21): Os meus sentimentos contraditórios no 'verão quente' de 1973 ... (Miguel Pessoa)

1. Texto que nos foi enviado, pelo Miguel Pessoa (ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74), com data de 22 de Março do corrente (última versão, corrigida):


QUATRO MESES DE... NADA
por Miguel Pessoa

[Titulo do poste, bold e cor, da responsabilidade do editor L.G.]

Pensei seriamente em não escrever sobre este assunto. Não parece ser "politicamente correcto" e pode merecer da parte de alguns uma certa incompreensão; mas a verdade é que, embora nunca tendo gostado de dar nas vistas, nunca me eximi a mostrar as diferenças na minha maneira de ser relativamente ao que é considerado o comportamento padrão, dito "normal".

Considero-me um narrador razoável quando se trata de descrever factos palpáveis; mas é para mim uma experiência nova quando toca a descrever sentimentos, afectos e outros quejandos. Para isso existem nesta panóplia de "escrevinhadores" exímios narradores do que nos vai na alma. Na vida militar estamos habituados a relatar factos ocorridos, enumerar as razões por que eles aconteceram, propor medidas com base em racionais que justifiquem a tomada de decisão; no que se refere aos sentimentos que sentimos em relação a um determinado problema, esses não são por norma apresentados. Por isso o meu desconforto ao abordar este tema.

Tem isto a ver com a troca de correspondência que tenho tido com o editor e co-editores do blog e que, na prática, tem resultado na apresentação a todos os seus leitores do meu ponto de vista sobre este e aquele assunto, relatando factos e tentando esclarecer (de acordo com o meu ponto de vista) o porquê da posição que em cada caso acabou por ser tomada pela Força Aérea.

Analisando detalhadamente o que se tem passado nestes últimos meses, vejo que os resultados desta exposição perante tantos interlocutores (sim, que todos podem comentar o que cada um diz - a comunicação é bidireccional) terão produzido em mim resultados mais significativos que umas tantas sessões de terapia com um psicólogo ou um psiquiatra (que, verdade seja, nunca utilizei, por não achar necessário - Seria?).

Vejo hoje que, expurgados alguns fantasmas que me habitavam, subsistiam alguns traumas que eu nem sabia estarem presentes no meu subconsciente. E um deles prende-se com quatro meses da minha vida que, sendo dos mais pacíficos, relaxantes e descontraídos que vivi, deixaram em mim uma sensação de vazio que tenho ainda hoje dificuldade em preencher.

Já tive a oportunidade de referir neste blog os factos que levaram a um interregno na minha comissão na Guiné por um período de quatro meses, o tempo que passei em Lisboa a recuperar das mazelas sofridas no decorrer de uma missão naquele Teatro de Operações.

Lembro-me que, no dia em que embarquei em Bissau com destino a Lisboa, para iniciar a minha recuperação, ainda na ressaca dos acontecimentos da véspera, em que a Força Aérea tinha perdido três pilotos e três aviões(+), tive um desabafo sincero mas que os meus camaradas não mereceriam:
- Desculpem lá mas, de certo modo, neste momento sinto-me satisfeito por não estar em condições de voar.

Tive oportunidade de me arrepender várias vezes destas palavras, pois nem eles as mereciam, pela solidariedade que lhes devia, nem as merecia eu, que sempre assumi as minhas responsabilidades e não tenho por hábito virar a cara a nenhum desafio, por mais que isso me custe... E tive também a oportunidade para tentar redimir-me desse momento ao longo do ano que ainda passei na Guiné, depois de recuperado fisicamente. Mas nunca consegui recuperar os quatro meses que estive afastado do Teatro de Operações.

Não podemos prever o futuro, por isso não sei o que me poderia ter sucedido naquele período, se lá tivesse estado (como diria o outro, prognósticos, só no fim do jogo...). O que sei é que foi uma "traição" que o PAIGC me fez ao limpar-me estes quatro meses de Guiné - e ao mesmo tempo, uma involuntária "traição" minha por não ter podido apoiar os meus camaradas de luta, num momento tão difícil para todos nós, que levou inclusive a alterações significativas da Força Aérea no modo de fazer a guerra.

É que é nos momentos difíceis que pomos à prova as nossas maiores qualidades e que sobressaem os nossos maiores defeitos ou limitações. Embora tenha tido oportunidade de testar posteriormente as minhas capacidades e de sair de lá com a minha dignidade intacta, não pude partilhar, naquele verão conturbado de 1973, todas as agruras, apreensões e dificuldades sofridas pelo pessoal da FA naquele período difícil, bem como a satisfação do dever cumprido que todos terão sentido no dia-a-dia e a solidariedade e camaradagem que tiveram oportunidade de partilhar, que lhes permitiu afinal ultrapassar essas dificuldades e prosseguir a sua acção no TO da Guiné.

Por isso, lamentando não ter podido estar presente, daqui lhes tiro o meu chapéu, por terem conseguido, pese embora todos os constrangimentos existentes, cumprir a sua missão nesse verão quente de 1973.

Miguel Pessoa

(+) Eu embarquei para Lisboa em 7 de Abril de 1973, os acontecimentos a que me refiro ocorreram em 6 de Abril. (**)

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd.último poste da série FAP > 28 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4088: FAP (20): Efemérides: 36 anos após a morte do Ten Cor Pilav Almeida Brito, abatido por um Strela em Madina do Boé (Miguel Pessoa)

(**) Vd. poste de 9 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3859: FAP (6): A introdução do míssil russo SAM-7 Strela no CTIG ( J. Pinto Ferreira / Miguel Pessoa)

7 comentários:

Luís Graça disse...

Miguel:

Deixa falar o meu lado de sociólogo da saúde... Rapaz, deixa-te de torturar, isso é típico do combatente que é ferido, que segue para a rectaguarda, para o hospital, e que passa por um processo de culpa, tremendo... Sente-se um safado, um inútil, quase um traidor... Os meus camaradas a sofrer, a combater, e eu aqui no "bem bom"(sic)...

Vamos exorcizar esse fantasma... Todos passámos por isso (a começar pelos doentes que são hospitalizados e que vivem essa experiência de internamento com um sentimento de culpa, por que representam um 'fardo' para a família, para o hospital, para a sociedade...).

Na tropa-macaca ou na tropa especial, todos fizemos pequenas safadezas, para lidar com o tremendo stresse da guerra: arranjar um bom pretexto para evitar esta ou aquela saída para o mato, 'adoecer', entrapar o pé ou a mão, apanhar uma borracheira, ficar atrás do poilão à espera que o dia acabe, desenfiar-se por uns dias para Bissau, planear bem as férias na Metrópole...

A nossa sobrevivência, física e mental, foi um também um jogo de pequenos cálculos, safadezas, sacanices, truques, ... apesar da grande CAMARADAGEM que nos unia a todos!!!

No teu caso, PORRA!, tu foste abatido por um Strela do Inimigo, uma arma nova que nos surpreendeu a todos, tiveste a felicidade de sobreviver, graças também à coragem e solidariedade dos teus camaradas da Força Aérea e do Exército...

CULPA ? TRAIÇÃO ? ... A partir do momento que és contabilizado como um "baixa", só te resta ir para o estaleiro, assumires o teu papel de doente ou incapacitado, portares como um menino bonito, entregar-te nas mãos pessoal de saúde (que nos infantliza, e o que também sabe bem, é como o regresso ao seio materno, à condição fetal...), esperar um bom e rápido restabelecimento, rezar pelos camaradas que continuaram a executar as suas missões e preparar o regresso... do HERÓI.

Não podes escamotear, ignorar, branquear ou negar estes quatro meses da tua vida!... Seria uma amputação intolerável, ficarias mais pobre. FAZ PARTE DO TEU CURRÍCULO E DAS TUAS MEMÓRIAS. No entanto, como eu entendo os teus sentimentos contraditórios!... Ainda bem que a blogoterapia te ajuda, nos ajuda, a todos nós, a 'exorcizar os nossos fantasmas'... Leste, de certo, a história da viúva de um camarada nosso, o António Ferreira, morto numa emboscada na picada do Quirafo 17 de Abril de 1972, e que está(va) há em 37 anos em "luto patológico"... É um tremendo sofrimento!!!...

LG

Luís Graça disse...

A propósito da experiência de doença e de hospitalização, e da maneira como é sentida, vivida e representada socialmente, deixa-me citar aqui um texto meu, de resto disponível ma minha página pessoal (Saúde e Trabalho: hppt://wwww.ensp.unl.pt/luis.graca/)


(...) 4.2 A doença como 'punição e expiação' e o hospital como 'instituição totalitária'


Curiosamente, há um ditado (provavelmente velho... e "os ditados velhos são evangelhos"!) que nos vem lembrar que, apesar do dever de caridade e de hospitalidade, "o hóspede e o peixe aos três dias fedem", isto é, cheiram mal, estão a mais, tornam-se um fardo.

Não haverá porventura nada de mais cruel, na literatura da administração hospitalar, do que esta insinuação de que, sendo o doente um "hóspede", ele é sempre um encargo e, em última análise, é indesejável. E também não há discurso sobre a humanização do hospital que possa resistir ao efeito corrosivo e perverso desta ideia da doença como punição e expiação.

Médicos e enfermeiros falam muito da atitude regressiva do doente, em geral, e do doente hospitalizado, em particular. A infantilização seria um dos traços característicos da chamada psicologia do doente. Ora, a regressão foi, desde sempre, um mito criado e alimentado pelo próprio sistema hospitalar. Sabemos que nem todos os doentes são infantilizantes, nem todos os doentes se deixam infantilizar. Há doentes "difíceis", "reivindicativos", que exigem ser informados, no dia-a-dia, sobre o seu estado de saúde e o tratamento que lhe está a ser administrado, etc. Trata-se de um atitude que tem muito a ver com o status (social, económico e cultural) do doente.

A relação material de dependência, provocada pela doença, não deve ser confundido com regressão. Esta, sim, seria um produto do sistema hospitalar: "A desapossessão do doente em relação à sua identidade, a expropriação do seu corpo entregue à ciência e aos médicos, o mito do saber ao serviço do doente, o mito da solidariedade social fazem do doente um ser submisso, infantil e em estado de regressão" (Grasset, 1975: 217).

Tais noções (regressão e infantilização) serviriam, sobretudo, para ocultar a imposição de um modelo de comportamento, o da submissão do doente ao pessoal e à instituição hospitalares, o que põe o problema da permanência, mesmo no hospital dos nossos dias, de traços da 'total institution' (Goffman, 1967; Walton, 1988).

Segundo Goffman (1975), as instituições totalitárias vêm quebrar as fronteiras que separam habitualmente os três campos de actividade fundamentais do indivíduo, a casa, o trabalho e o lazer:

Em primeiro lugar, as pessoas estão colocadas sob uma única e mesma autoridade (por ex., o director do hospital psiquiátrico, o capitão do navio da marinha mercante, o comandante do aquartelamento militar, a madre superiora do convento, o reitor do seminário, o director do estabelecimento prisional);
Em segundo lugar, cada fase da actividade quotidiana desenrola-se, para cada indivíduo, numa relação de grande promiscuidade com um elevado número de outros indivíduos, submetidos às mesmas regras, procedimentos, deveres e obrigações (caso do recluso no estabelecimento prisional, do recruta na unidade militar, do idoso no lar de terceira idade, ou do doente crónico, moribundo ou terminal, acamado no hospital de retaguarda ou na ´clínica da morte’);
Em terceiro lugar, todos os períodos de actividade são regulados segundo um programa estrito, isto é, todas as tarefas estão "encadeadas", obedecem a um plano imposto "de cima" por um sistema explícito de regulamentos cuja aplicação é assegurada por pessoal técnico ou administrativo (guardas prisionais, prefeitos, vigilantes, médicos, enfermeiros, sargentos e oficiais, etc.).
Finalmente, as diferentes actividades assim impostas são por fim reagrupadas segundo um plano único e racional, concebido expressamente para responder ao fim ou missão oficial da instituição (custódia dos doentes mentais inimputáveis, tratamento psiquiátrico do doente esquisofrénico, reinserção social do jovem delinquente, recuperação do doente acamado, formação militar do recruta).
O traço essencial destas "instituições totalitárias" seria a aplicação ao indivíduo dum tratamento colectivo (e, nalguns casos, coercivo) de acordo com um sistema burocrático que cuida de todas as suas necessidades

Para a generalidade dos doentes, a hospitalização é sentida com um misto de culpa e de obrigação:

Culpa, por um lado, de estar doente, representando um encargo para os outros (a família, a empresa, a sociedade, o Estado, os médicos e os outros profissionais de saúde, etc.);
Obrigação, por outro, de se curar o mais rapidamente possível, de ser um doente colaborante, complacente, bem comportado, etc.
Estes dois sentimentos variam também em função da classe social e do sistema de saúde: quando o doente se sente, se reconhece e se assume como um utente, consumidor ou cliente, naturalmente que ele está em melhores condições para negociar, numa base mais equitativa. De qualquer modo, o poder dos profissionais assenta, historica e culturalmente, sobretudo neste duplo sentimento de obrigação e de dependência (Graça, 1996).

(...)
In:
75. Graça, L. (2000) - Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica nos Provérbios em Língua Portuguesa. Parte III: 'Em Lisboa nem Sangria Má nem Purga Boa' [ Portuguese Sayings About Health and Health Care. Part Three ]

http://www.ensp.unl.pt/luis.graca/textos75.html

Anónimo disse...

M.Pessoa
Acho tambem que não tens que te continuar a martirizar "culpando-te" ainda, por teres sido "abatido ao inventário" dos Guerreiros da Guiné durante os quatro meses que deixaste de poder contribuir para a segurança de quem por lá ficou.
Pensa antes, que essa recuperação te ajudou ao fim desse tempo a voltar a dar essa contribuição (recordo o teu Poste que a isso se refere),o que inicialmente não deve ter sido muito fácil.

Força Miguel Pessoa e continua a contar-nos coisas vistas dos céus

Um abraço
Luis Faria

Anónimo disse...

O teu escrito merece uma reflexão pois, além do relato factual que já conhecemos e não é pouco, apresentas agora uma "questão" que, de forma diversa, tem acontecido a muitos de nós -malta apeada caro camarada voador.
Depois, sem promessa, tentarei comentar. Agora o tempo esgotou-se.
Acrescem ainda os comentários.
Um abraço Torcato

Joaquim Mexia Alves disse...

Coloco aqui o texto que sobre este "desabafo" do Miguel Pessoa, escrevi e enviei para o blogue dos Especialistas da Força Aérea BA 12.

Caros Camarigos, especialmente camarigo Miguel Pessoa

O texto do Miguel Pessoa é algo que só um homem de coração grande e alto espírito de camaradagem pode escrever.
Depois de ter sido abatido no seu avião, (uma experiência altamente traumática), de ter passado uma noite numa mata que não conhecia, em terreno hostil, muito hostil, (não é preciso um desenho para se perceber o que deve ter passado nessa noite e como isso o marcou), ainda vem quase pedir desculpa por não ter estado com os seus camaradas durante 4 meses.
Onde estão homens como este hoje em dia?
Numa nação que se recusa a reconhecer ex-combatentes nascidos na Guiné, Angola, Moçambique como portugueses, recusando-lhes o magro sustento que uma pátria verdadeiramente agradecida lhes devia dar, um país que obriga aqueles que deram a sua vida ou grande parte da sua vida na sua defesa, (politicamente correcta ou não), a andarem de “Herodes para Pilatos” durante 34 anos para verem reconhecidas as suas doenças, as suas incapacidades, contraídas numa guerra assumida por esse mesmo país, é reconfortante apesar de tudo ler testemunhos como este.
Ao ler este testemunho do Miguel Pessoa renasce-me um pouco de esperança, ao perceber que se nós, ex-combatentes, quisermos, ainda podemos obrigar o estado português a assumir as suas responsabilidades perante os que lutaram e mais não pedem que uma vida digna, para que não fique definitivamente inscrita na nossa história, (tão rica de passado), a vergonha do abandono dos filhos que por Portugal lutaram, como então se dizia “do Minho a Timor”.
Abraço camarigo ao Miguel Pessoa e a todos os que nesta “Linha da Frente” se encontram

Bem como, acrescento agora, a todos os atabancados camarigos.

João Seabra disse...

Momento de poesia, dedicado ao Miguel Pessoa, por alguém que também não é dado a "gritos de alma":
Cequi l'on conçoit bien s'énonce clairement, et les mots pour le dire anivent aisément
Nicolas Baileau (1936-1711)

João Seabra disse...

Peço ao fantasma do Boileau, além de ter estropiado o nome onde está "anivent", deveria estar "arrivent".