domingo, 29 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4100: Blogpoesia (34): Regressei um dia / lavando a alma na espuma das lágrimas... (António Graça de Abreu)

António Graça de Abreu,
Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura
Lisboa: Guerra e Paz Editores,
2007, pag. 11

Durante dois anos, nas terras da Guiné,
a espingarda a tiracolo, aos pés da cama.
Lá fora, o calor, o canto das cigarras, o cheiro da guerra.
Éramos uma pátria infeliz combatendo um pobre povo,
na bolanha, no mato, no tarrafo dos rios.
O medo, os suores, a coragem, a amargura, soldados retalhados, queimados, encharcados em sangue,
homens sem cor e sem ventura.
Imberbes e puros como os guerreiros de Alcácer-Quibir,
as espadas de fogo dilacerando o bater dos corações.
Regressei um dia,
lavando a alma na espuma das lágrimas.

António Graça de Abreu
__________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série Blogpoesia > 27 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4087: Blogpoesia (33) : O bardo de Cafal Balanta (Manuel Maia)

1 comentário:

Anónimo disse...

E VIVA A POESIA!
Com um Abraço


UMA MINA EM SANCORLÁ

Segundos? Um Minuto?
O Tempo desta Morte
Meio corpo evaporado
Só resiste o olhar
Quem a terá pisado?
Fui eu que tive sorte
Ou ele que teve azar?

Depois a Raiva, o Medo
Sim, Beber
(Chorar só em segredo)

E para sempre o Luto!

Missirá, 14/Fev./1971

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ANIVERSÁRIO

Vinte seis ou Mil, conto pelos dedos
Os anos que vivi, eu não sonhei
Este tempo de Angústia e de medos
Que soletro e nunca sei.
Que Guerra é esta? Onde não estou!
Que rio aquele? Não cheira a Tejo!
Que combate? Combato, mas não sou.
E quando olho o espelho, não me vejo!
Aqui em Missirá, escravo e senhor
Invento-me. E guarda-prisioneiro
Bebo, fingindo em Alegria, a Dor.

Hoje faço anos... e continuo inteiro.
Missirá, 06/Nov./1970
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O HELICÓPETRO

Pelo ar lento que aquece
Um pássaro de ferro e aço
Leva um morto que apodrece
Na boca mais um abraço
A gente fica a pensar
Mas mais um morto que interessa
Já vêm mais pelo mar
Vêm muitos e depressa
A gente pensa mas fica
Com o dedo no gatilho
Na garganta um nó que pica
Na preta o ventre com um filho
Missirá, Dez./1970

Jorge Cabral