quinta-feira, 19 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4054: História da CCAÇ 2679 (15): Nova estadia em Canquelifá (José Manuel Dinis)

1. Mensagem de José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil (CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 17 de Março de 2009:

Senhores editores, Camaradas da Tabanca
Façam o favor de me aturar mais um bocadinho, que isto não aquenta nem arrefenta. A estória das abelhinhas era para ser integrada nesta ocasião e pode, por isso, ser cotejada com outros episódios de guerra.

Abraços fraternos do JD


Nova estadia em Canquelifá

Por decisão das forças vivas em Piche, os dois majores, CMDT do BArt e CMDT de Operações, o Foxtrot alinhou para nova estadia nas termas de Canquelifá, lugar quente e de águas salobras, muito apreciado do pessoal, com a missão de prestar auxílio na actividade operacional.

Ao contrário de Buruntuma, as idas para Canquelifá tornavam-se agradáveis, na medida em que se partilhavam tarefas com os Pelotões locais e isso significava um abrandamento da actividade, enquanto naquela localidade, a existência de um posto da Pide, com inerentes responsabilidades para justificar a função, obrigava ao incremento de saídas para o mato, prevenções, intercepções e emboscadas, que nunca deram resultado, mais parecendo objecto de jogos imaginários a que os peões conferiam a ideia da autêntica operacionalidade do IN.

Lá seguimos para o destino, sempre por prazo indeterminado.
À chegada ao aquartelamento aconteceram as usuais manifestações de simpatia por parte daquele pessoal e instalei-me no mesmo abrigo particular, que partilhei com um furriel local durante a primeira estadia.
Informaram-me que as coisas não corriam bem, que não havia géneros básicos, como o arroz, a massa e a batata, que racionavam cebolas, óleo, azeite e vinho, ao que parecia, em resultado do afundamento de um batelão no Geba. A essa dificuldade, juntava-se a relutância dos nativos para a venda de vacas, problema que fora superiormente solucionado, com a decisão de, pela madrugada, dar um tirinho certeiro numa vaca que se aproximasse do arame. E elas aproximavam-se.
Assim, com a natural determinação para o tirinho e a pontaria regulada pelas necessidades estomacais, até se estabalaceu uma jogatana correlativa, de apostar no abrigo brindado com a visita da ruminante. Sim, porque a partir de certa hora, só valia atirar sobre uma vaca.

De manhã seguia-se a reclamação do proprietário, a quem, mais uma vez, era referida a sua própria responsabilidade na manutenção do gado longe do arame, já que a aproximação dos animais podia encobrir um assalto do IN. Perante o quadro, o proprietário propunha a venda, como forma de evitar o prejuízo, mas a tropa manifestava desinteresse na aquisição do animal jazente, com a carne a estragar-se fora do frigorifico, até fazermos o grande favor de o comprar por metade do preço. Foi a política adoptada até à regularização das trocas comerciais.

O pior, porém, estava para acontecer, porque esgotados alguns géneros, o arroz, a massa e a batata, comíamos carne guisada com pão e a farinha ameaçava acabar.
Ao terceiro dia da minha estadia, do céu chegou o novo capitão que preenchia a vaga de vários meses. Foi à messe fazer a apresentação aos graduados. Não era propriamente comigo, mas tive um baque. O tipo, que era do quadro, fora o meu instrutor de tiro e usava uma linguagem brejeira e ofensiva. Não me reconheceu, mas impôs que na messe me apresentasse convenientemente vestido e barbeado. Mais tarde fiquei com a impressão de ser melhor Comandante de Companhia do que comandante de instrução.

Aeroporto Internacional das Termas de Canquelifá. Distinguem-se, da esquerda para a direita: Morais, Dinis, Gonçalves (Corvo) e Azevedo, a furrielada dos 1.º e 2.º Pelotões.

As abelhas

Num desses dias, coube ao Foxtrot acompanhar um Pelotão local numa extensa patrulha a sudeste de Canquelifá. Estávamos no fim da época sêca, o calor era imenso, a transpiração permanente, por isso a maioria levava dois cantis, já que os cursos de água apenas apresentavam poças estagnadas.

Partimos numa direcção perto da fronteira leste, com a Guiné-Conakri, enviezámos para o rio Caium (?) mais interior e depois flectimos para norte, de regresso. Não posso dizer que estivesse a ser devastadora, mas as sucessivas horas de missão, levaram-nos ao consumo dos alimentos carregados. Algures no mato encontrámos dois nativos que levavam favos de mel. Tamanha descoberta deixou-nos em grande excitação, já que a gulozeima passou a desejo colectivo, para comer logo ali. Conversou-se com os nativos, negociaram-se promessas de pagamento e a verdade é que quem quiz, teve oportunidade de enriquecer a dieta com o inesperado mel. Até vi alguém com um pedaço relevante de favo.

O resultado deste encontro foi a coisa mais inglória por que já passei. As mãos e os beiços ficaram rigorosamente peganhentos e a pouca água para as lavagens não produzia efeito, portanto, menos água e mais incómodo. Mas seria pior. Volvido pouco tempo de saborearmos o mel, aconteceu a tremenda reacção de sede e o mau estar da progressão acentuou-se quando esgotámos a água nos cantis. O mato sêco por onde caminhávamos não dava qualquer solução alternativa. O calor parecia aumentar.
A solução era andar dali para fora e depressa, chegar ao aquartelamento, à água e ao sabão salvadores. Nestas cogitações de sofrimento geral passámos, casuisticamente, por uma espécie de cortiço de abelhas que voavam num zum-zum, sem nos ligar importância, até que, alguém com espírito vingativo lhes atirou um pau. Nessa ocasião, as abelhinhas interessaram-se mesmo por nós. E com tanta dedicação que, como uma esquadra organizada, perseguiram e ferraram os mais infortunados na fuga. Qual fuga! Aquilo foi uma debandada, cada um em busca da salvação, já que a instrução militar não contemplava ensinamentos sobre este IN. A mim, a salvação chegou de baixo de uma manta, quando um Foxtrot deitado no solo e tapado por um cobertor me chamou, que havia lugar para outro. Eram muitas as abelhas, determinadas e aguerridas, que em formações massivas varriam a zona demarcando a autoridade no território. Qual tropa! Qual guerra! Ali mandavam as abelhas.

No fim das hostilidades uma boa parte do pessoal podia exibir as mazslas, alguns com inchaços que lhes conferiam ares carnavalescos, máscaras de disformidade acompanhadas de dor, sede e ansiedade. Não houve baixas, mas as sequelas deram para alguns dias.

Visita do IN às Dingas

A região de Canquelifá era pouco populosa, talvez pela aridez local. A mancarra, o caju e a pastoricia seriam as principais actividades esconómicas, mas com pouca expressão. Algumas aldeias dispersas já tinham sido abandonadas e não passavam de pontos de localização. Outras persistiam, como as Dingas, sem ligação especial às autoridades portuguesas. Ainda assim o agrupamento das Dingas foi saqueado, incendiado e abandonado pela população que rumou ao Senegal, em resultado de uma inopinada acção do IN. Durante a noite, o bréu foi rasgado pela luz emanada das chamas.

Quando ali chegàmos, com uns poucos milicias e populares, nada restava para além dos escombros em brasa que libertavam o fumo e os odores do fogo.
Pela proximidade fomos a Copá. A picada rija não apresentava dificuldades, para além de um pequeno desnível do piso tortuoso, a pedir compensações às suspensões, mas tivémos muita sorte, pois não a picámos, nem o IN se lembrou de a minar.
Da troca de informações não se inferia qualquer indicio de actividade especial por parte do IN, nem se descortinavam novas estratégias para a região.
As noites seguintes, porém, vieram a revelar novas incursões com o mesmo objectivo de despovoar a área. E assim, voltei a acordar durante a noite estrelada, não para me deslumbrar com a imensidão de astros luminosos e as fantásticas correrias das estrela cadentes, mas para observar o clarão luminoso das chamas que devoravam outra aldeia.

Passados cinco dias o Foxtrot regressou a Piche.
Marquei férias para Junho.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3971: História da CCAÇ 2679 (14): Operação Equino Salto, 28 de Maio de 1970 (José Manuel Dinis)

2 comentários:

Anónimo disse...

J M Dinis

Narrativa escorreita,gostei.

Achei piada à justificação do tiraço na vaca que,coitada, estava no sitio errado à hora errada.

Pela lado que me toca da FORÇA, quando por vezes nos apetecia um conduto diferente, ia-se à tabanca e disfarçadamente dava-se um biqueiraço na mona de um galinácio,que cacarejava,esdvoaçava,andava à roda ,caía... às reclamações histéricas,contrapunhamos a não culpa ,que a bicha estava doente e como eramos bons de coração,pagavamos dez pesos pela doente.Com os porcos ,de longe a longe,era diferente,era uma coronhada mas pagava-se mais um bocadito.
Por uma coisa destas (por acaso era inocente)o chefe de Posto de Bula fez queixa de mim e ia passando um mau bocado,por causa da psico

Um aabraço
Luis Faria

Hélder Valério disse...

Ai, ai, ai, ai, ai, ai, amigo José Dinis... então eu é que sou "reguila" e o "mê amigo" é que andava aos tirinhos às vaquinhas do pessoal da tabanca? Bom!
Agora a sério, continua com as tuas narrativas que assim se vai conhecendo melhor os vários locais em diferentes épocas.
Uma das virtudes deste blogue é poder proporcionar uma história transversal ao longo do tempo.
Um abraço
Hélder S.