segunda-feira, 16 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4038: Fauna & flora (19): Também os babuínos dizem Nós na pidi paz, ka misti guerra (Joana Silva)

1. Mensagem, de 5 de Março, da Maria Joana Ferreira Silva (*), membro da nossa Tabanca Grande, amiga da Guiné-Bissau, aluna de doutoramento da Universidade de Cardiff (Reino Unido).... [ Está a desenvolver um projecto de doutoramento no campo da genética do babuíno da Guiné, mais conhecido pelos bissau-guineenses por macaco Kom]:


Caro Sr. Doutor Luís Graça,

Envio a compilação dos testemunhos postados no blogue. Sei que talvez a altura não será a melhor (a Guiné está em observação por outros motivos) e entendo se a publicação deste meu contributo for demorada.

Queria agradecer-lhe toda a ajuda dispensada e mais uma vez desculpar-me pelo desaparecimento momentâneo. A avaliação por aqui ainda não terminou, mas pude respirar nas ultimas semanas!

Em anexo envio uma fotografia da manifestação de paz que assisti em Novembro de 2008.

Os meus melhores cumprimentos,

Joana Silva



2. Fauna & flora (19) > Também os babuínos dizem Nós na pidi paz, ka misti guerra
por Joana Silva


Caros bloguistas,

Nesta semana fatídica da história recente da Guiné-Bissau, em que este país apareceu nos noticiários das principais agencias noticiosas mundiais (foi um dos principais assuntos da Skynews aqui no Reino Unido), escrevo para vos agradecer toda a ajuda e empenho dos vossos testemunhos.

Devo dizer que me senti imensamente triste ver a Guiné-Bissau nas televisões pelos piores motivos possíveis (aqui foi descrito como um narco-estado, em que num fim de semana, dois principais líderes do país foram assassinados...). Com enorme angústia tentei explicar aos meus colegas ingleses e galeses a simpatia e gosto pela vida do povo guineense mas é complicado entender, quando nunca se visitou a Guiné e quando as poucas notícias que vêm são deste teor de violência.

Voltando ao assunto que me traz aqui. A vossa participação foi entusiasmante e, apesar alguns de vocês contribuírem com pequenas histórias que julgaram não ter relevância cientifica, todos os contributos foram úteis para a reconstrução da história dos babuínos da Guiné na Guiné-Bissau. Fico-vos imensamente grata!

Resumindo a minha compilação dos vossos testemunhos:

(a) Os babuínos eram vistos como “sentinelas” da presença de pessoas no mato. As suas vocalizações advertiam a presença de tropas inimigas e a presença dos babuínos chegaram a dar algum conforto a alguns combatentes.

(b) A carne de babuíno não era consumida com regularidade pelas tropas portuguesas. Todavia alguns bloguistas confessaram que consumiram babuíno: i) por escassez de recursos; ii) para experimentar; iii) por não saberem do que se tratava.

(c) As crias de babuíno, juntamente com outras espécies de primatas, foram mantidas como “mascotes” dos regimentos. O que não cheguei a perceber era se essas crias eram “encomendadas” ou órfãs, resultantes de caçadas a animais adultos. De qualquer forma, eram tratadas com estimação pelos combatentes (assim demonstram as fotografias que enviaram).

(d) As tropas do PAIGC consumiam a carne de babuíno com frequência.

(e) O consumo de carne de babuíno aumentou na capital , [Bissau,] depois dos anos 80.

Os vossos testemunhos coincidem com os testemunhos dos meus entrevistados na Guiné, o que torna a história ainda mais interessante. Segundo eles:

(f) Os babuínos estiveram sempre presentes na península de Cantanhez;

(g) Os grupos sociais começaram a diminuir depois dos anos 80;

(h) As tropas portuguesas não comiam carne de babuíno (muitos deles até referiram que as tropas portuguesas gostavam muito de porco do mato);

(i) O decréscimo (a partir dos anos 80) do número de babuínos deu-se devido à guerra (minas), caça intensiva pelas tropas do PAIGC, comercialização da carne em Bissau, armas mais baratas e fome generalizada;

(j) Durante o período de guerra, as tropas portuguesas compravam crias de babuínos mas não a sua carne. Ao contrário, as tropas do PAIGC caçavam e consumiam babuínos. (Sendo que os babuínos estiveram sempre presente no mato, os seus grupos eram grandes e as suas vocalizações advertiam a presença dos seus grupos sociais, faz sentido que as tropas do PAIGC utilizassem os babuínos como “ração de combate”.)

Houve ainda uma explicação alternativa para a presença ininterrupta dos babuínos: que utilizavam zonas de cultivo deixadas pelas populações obrigadas a deixar as suas aldeias. Do ponto de vista de um babuíno faz todo o sentido, já que eles são considerados oportunistas. A fome generalizada referida terá a ver com 3 anos de seca na década de 80, que provavelmente terá afectado a produção de arroz.

Devo acrescentar que achei particularmente interessante os contributos fotográficos que enviaram:

- Fiquei curiosa com os machos com pelo branco observados e fotografados pelo bloguista Joaquim Mexia Alves. Nunca vi babuínos com esse aspecto antes e estou ansiosa por amostrar no leste (e ver as diferenças físicas reflectidas em diferenças genéticas).

- Os "chapéus" feitos com peles de babuínos fazem parte de um ritual Balanta chamado "o Fanado". Não sei ainda a relevância de se usar peles de babuínos neste ritual (ou se se podem ser usados outros animais) mas este ritual simboliza a passagem à fase de adulto nesta etnia.

- As fotografias do leopardo (do bloguista José Brás) e do "irã cego" (do bloguista Mário Fitas) são fenomenais.

- As fotografias dos babuínos e dos seus curadores são espectaculares!

Devo deslocar-me à Guiné em breve (se a situação política assim o permitir). Caso desejem mandar mantenha (ou alguma encomenda) para algum amigo, tenho todo o gosto em poder ajudar.

Fico ainda a dever a cartografia das presenças dos babuínos indicadas pelos bloguistas. Será concluída em breve.

Em anexo envio uma fotografia da manifestação de paz que assisti em Novembro do ano passado, no dia seguinte ao atentado a Nino Vieira. A multidão gritava “Nós na pidi paz, ka misti guerra”. Mais actual que nunca.

Texto e fotos: © Joana Silva (2009). Direitos reservados
___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 10 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3714: Fauna & flora (1): Pedido de apoio para investigação científica sobre o Macaco-Cão (Maria Joana Silva)

Vd. último poste desta série > 13 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3883: Fauna & flora (18): Um macaquinho principiante na arte do furto (José Brás)

2 comentários:

Anónimo disse...

Companheira Joana:

É importante saber que a "vivência" no e do mato, é hoje motivo de estudo e de reflexão.

MACACO CÃO na minha zona,(Mansambo) - triângulo Xime / Xitole / Bambadinca, era "mato" em bom crioulo.

Nunca ouvi histórias de que alguém tenha comido ou sequer molestado tal animal. Nem vi.

Continuação de BOM trabalho.

CMS
Mansambo 68/ 69

Luís Graça disse...

A propósito do genuíno (legítimo, premente, fundamental, imprescindível) desejo dos nossos amigos guineenses - Pedimos a paz, não queremos a guerra - , soube através de um parente de 'Nino', médico, meu aluno, que o major Tcham, que - segundo se diz à boca cheia na pequena Bissau - terá morto o Presidente da República da Guiné-Bissau, com os requintes de malvadez que são exclusivos do 'Homo Sapiens Sapiens', a único das cerca de 200 espécies de animais primatas que mata por prazer, vingança e rancor... - não é médico, não chegou a completar o curso de medicina na União Soviética... Era um aluno do 6º ano, quando o Partido (o PAIGC) o mandou chamar a Bissau... Logo, por desgraça, aconteceu mais uma 'nineventona', em 1985... Paulo Correio, Viriato Pã e outros dirigentes do PAIGC, de etnia balanta, pagaram caro, com brutal sofrimento e depois a morte, a sua eventual discordância em relação em linha do poder (agora nas mãos de 'Nino')...

O 'Tcham' foi, desgraçadamente também, preso e torturado, provavelmente pelo seu único crime, o de ser um quadro superior, balanta... Ficou marcado para o resto da vida, é hoje major, e figurará provavelmente na história da nossa querida Guiné-Bissau como o terrível carrasco do último comandante da guerrilha do PAIGC... Uma morte ultrajante, à luz dos códigos culturais da Guiné-Bissau, de África, do Mundo, da nossa Aldeia Global... Difícil de explicar, por parte dos guineenses e dos amigos da Guiné, ao resto do mundo...

O meu amigo e aluno, que é amigo dele,'Tcham', diz que não compreende (nem aceita) como é que um homem - mesmo com todas as razões do mundo - pode chacinar outro homem, daquela maneira, cortando-o literalmente aos bocados...

Não comento.

Boa sorte, Lázaro, para ti, para a tua terra, para o teu povo, para a nossa querida Guiné-Bissau... Quero acreditar que há sempre uma luz ao fundo do túnel... da história... E que ainda não estamos no 'buraco negro'...

LG