sábado, 10 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3716: A literatura colonial (2): Auá, novela negra, de Fausto Duarte, uma obra-prima (Beja Santos)

Capa do livro de Fausto Duarte, Auá, novela negra, 2ª ed. Lisboa: Livraria Clássica (1ª edição, 1934, 223 pp.).

Imagem: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados


1. Mensagem de Beja santos, com data de 8 de Outubro último:



Auá, de Fausto Duarte: A obra-prima da literatura colonial guineense

por Beja Santos


Coube a Leopoldo Amado (“A Literatura Colonial Guineense”, Revista ICALP, Julho – Outubro de 1990)(*) o mérito de destacar a importância do romance Auá, de Fausto Duarte, contextualizando-o ao sabor das transformações operadas na Guiné portuguesa a partir dos anos 20 do século passado.

Dera-se a “pacificação” ou estava em processo terminal; surgiam os primeiros jornais publicados na Guiné e com eles surgia a literatura jornalística; Maria Archer e Fernanda de Castro (**) escreviam sobre a Guiné em Portugal, e com relativo sucesso; uma elite cabo-verdiana (Fausto Duarte, Juvenal Cabral e Fernando Pais Figueiredo) promovia os interesses africanos pugnando pelo alargamento do ensino aos guineenses.

Fausto Duarte [1903-1955] (***) apareceu como repórter, colunista e cronista desportivo numa Bissau que já é capital comercial da colónia; participou na primeira Exposição Colonial de Paris, dedicando um número especial ao evento no jornal O Comércio da Guiné onde destacou a etnografia guineense.

É um homem culto que capta as novas contradições da assimilação colonial e do gosto pelo exotismo. A Guiné que ele vai descrever em Auá é completamente diferente da retratada quer por Maria Archer e Fernanda de Castro e outros. Pela sua formação, revela atenção e um elevado espírito de observação pelas tensões de civilização: entre as etnias no mato remoto e em Bissau; entre o trabalho agrícola de sobrevivência e o trabalho ao serviço do colono em Bissau; mesmo ao de leve, refere estados de identidade de aproximação entre a realidade colonial e a adesão das populações guineenses. Tudo leva a supor que Fausto Duarte escreveu sinceramente e de acordo com o seu compromisso cultural de hibridação e de exaltação dos valores africanos.

Auá foi galardoada com o 1º prémio de Literatura Colonial em 1934, ano em que aparece editada pela Livraria Clássica Editora, de Lisboa, e com prefácio de Aquilino Ribeiro (ele escreve: “O primeiro que viu a Guiné foi Nuno Tristão, o segundo foi o autor de Auá... Com simplicidade encantadora, vai nos pintando o que é a vida naquele trato de terra e humanidade... Fausto Duarte é pela civilização, mas a sua sensibilidade não cala a ternura que lhe merece o homem escravizado. Os que sonham com um Portugal de além-mar engrandecido hão-de de ficar gratos à pena colorida, equilibrada, emotiva sem excesso que escreveu Auá, estreia literária de maior realce e obra de elevação lusíada”).

Aquilino Ribeiro exaltou o romancista mas também foi excessivo. Fausto Duarte era tudo menos simples: cita Schiller em alemão, Paul Morand em francês, conhece profundamente a cultura europeia e tem uma riqueza vocabular espantosa. Não acredito que a sua Novela Negra, como lhe chamou, tenha sido popular quer na Guiné quer em Portugal. Basta ver como se inicia a sua obra:

“As águas tranquilas do Impernal acariciando o debrum da paisagem dormente, anquilosada pelo sol adusto, áscua viva que se reflectia na opacidade plúmbea dos céus, espreguiçavam em torcicolo ocultando-se entre o tufo emaranhado dos mangais. A vazante tinha posto a descoberto a orla mádida e lamacenta do rio, e uma variedade abjecta de moluscos deslocava-se sobre a terra lodosa, aquecendo-se ao calor estuante de Novembro”.

De que versa Auá ? Malam é um fula que trabalha em Bissau, tinha trabalhado como criado de alemães. Frau Wrede não resiste à beleza de Malam e fazem amor. Depois pede a alguém para escrever uma carta ao administrador de Bissau a oferecer os seus préstimos, quando os alemães partiram. Foi admitido ao serviço e agora vai a caminho do Gabu, vai casar com Auá, a mais bonita bajuda do leste da Guiné. É uma viagem longa, atravessam o Impernal, seguem para Mansoa, depois Mansabá, depois Bafatá. Leva na mala muitas prendas para a sua noiva: lenços, panos, bandas, missangas, manilhas de prata, um fio de ouro. Fica a descansar em Bafatá em casa de um tenente de 2ª linha.

Perguntado sobre como está Bissau, responde: “Os brancos fizeram grandes coisas. Ruas largas por onde passam automóveis e grande caminhões; lojas enormes de panos de todas as qualidades que os brancos fabricam na sua terra; contas douradas, bicicletas e até máquinas de lavrar a terra. Há tempos, veio de Lisboa um aeroplano que parece um grande pássaro”.

O motorista da casa Gouveia leva-o para Contubo-El, daqui seguirá para Sare-Sincham onde vivem as suas famílias, a dele e a de Auá. É uma viagem onde Fausto Duarte aproveita para falar de usos e costumes, da religião e até das povoações. Por exemplo, Geba é descrita como uma vila tristonha, outrora berço do catolicismo heróico, tem o aspecto místico habitado por um povo indigente. De um modo geral, as povoações têm uma rua com casas e lojas comerciais, estão cercadas pelas moranças dos indígenas. Nisto, avista-se a tabanca de Sare-Sincham, onde ele vai ficar em casa dos pais, Braima e Tacô. Fausto Duarte polvilha a obra de frases em fula e até mandinga e crioulo. Mostra-nos Auá e o seu amor por Abdulai, os preparativos para o casamento, há grandes descrições das lutas dos fulas durante a festa, Abdulai desafia Malam para o combate, é derrotado.

A critica social também abundante: o colono que vive com indígena, a superstição e a feitiçaria, o peso da religião muçulmana entre os fulas, a profunda simpatia de Malam pela cultura dos brancos. Segue-se o casamento, a chegada de um feiticeiro, um hipócrita e arranjista que acabará por violar Auá. Malam e Auá irão viver em Bissau, cidade que é descrita por Fausto Duarte como um local de sensualidade, um permanente bordel. Em Sare-Sincham, virão os guardas-fiscais que levarão o curandeiro, Issilda, preso. Terminam entretanto as colheitas, Auá está grávida, dará à luz um filho de Issilda. Malam pratica justiça e mata o curandeiro. O conselho dos anciãos reúne-se para ouvir Malam e praticar justiça. Fausto Duarte é primoroso na descrição do choque de civilizações. Abdulai propõe comprar Auá, Malam aceita e deixa Sare-Sincham. As tradições sobrepunham-se a uma grande paixão. Malam vai trabalhar em Dakar e à noite tem saudades de Auá. A velha cultura conseguira vencer os sentimentos transbordantes de Malam, o criado dos brancos.

A despeito de uma escrita laboriosa e quase laboratorial, o escritor Fausto Duarte descreveu a Guiné com um olhar novo de grande desvelo pela paisagem, com rigor no registo das tradições, destacando os contrastes de uma Guiné onde a aculturação se transformou num problema maior da civilização. É uma pequena jóia literária e merecia ser reeditada tanto em Portugal como na Guiné-Bissau.

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Notas de L.G.:

(*) Disponível em formato pdf, 18 pp., no sítio do Instituto Camões: Amado, L. - A Literatura Colonial Guineense. Revista ICALP [Instituto de Cultura e Língua Portuguesa], 20-21 (Julho-Outubro de 1990): 160-178.

(**) 5 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3565: A literatura colonial (1): Fernanda de Castro ou a Mariazinha em África, romance infantil, de 1925 (Beja Santos)

(***) Vd. Breve resenha sobre a literatura da Guiné-Bissau, por Filomena Embaló (Novembro de 2004)

(...) "I. A fase anterior a 1945

"Autores marcados pelo cunho colonial

"Os primeiros escritos no território guineense foram produzidos por escritores estabelecidos ou que viveram muitos anos na Guiné, muitos deles de origem cabo-verdiana. A maior parte das suas obras têm um caracter histórico, com a excepção da de Fausto Duarte (1903-1955), que se destacou como romancista, Juvenal Cabral e Fernando Pais Figueiredo, ambos ensaístas, Maria Archer, poetisa do exotismo, Fernanda de Castro, cuja obra dá conta das transformações sociais da colónia na época e João Augusto Silva, que recebeu o primeiro prémio de literatura colonial. Porém a maior parte destes autores caracterizam-se por uma abordagem paternalista e/ou próxima do discurso colonial.

"Durante este período apenas uma figura guineense se destaca : o Cónego Marcelino Marques de Barros que deixou trabalhos no domínio da etnografia, nomeadamente 'A literatura dos negros' e uma colaboração com carácter literário dispersa em obras diversas. A ele se deve a recolha e a tradução de contos e canções guineenses em diferentes publicações e numa obra editada em Lisboa em 1900, intitulada 'Contos, Canções e Parábolas'. "
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