sábado, 22 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2672: De Guidaje para Bissau, trinta e cinco anos depois (Diário de Coimbra / Carlos Marques dos Santos)

Os restos mortais dos nossos Camaradas enterrados em Guidage

Enviado pelo Carlos Marques dos Santos


Diário de Coimbra, edição de 22 de Março de 2008.
Antropóloga de Coimbra chefiou exumação de restos mortais de militares portugueses

A antropóloga forense Eugénia Cunha, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, coordenou a missão técnica que terça-feira exumou os restos mortais de dez militares portugueses enterrados há trinta e cinco anos em Guidaje, na Guiné-Bissau, na sequência de violentos confrontos.

Na quarta-feira e depois de duas semanas de trabalho, chegaram a Bissau os restos mortais de dez antigos militares numa operação financiada pela Liga de Combatentes de Portugal no âmbito do programa Conservação de Memórias, que prevê sepultar com dignidade antigos combatentes portugueses sepultados fora do país.
Na Guiné-Bissau, mais de setecentos ex-militares portugueses estão sepultados pelo território, tendo a operação em Guidage a primeira fase desta operação de recolha e identificação de restos mortais de antigos combatentes no país.
A iniciativa que colocou no terreno quatro antropólogos, um geofísico e uma arqueóloga (irmã de um dos soldados exumados) conta com o apoio do Ministério da Defesa, da Universidade de Coimbra e do Instituto Nacional de Medicina Legal. Os resultados dos exames efectuados para ajudar a identificar os antigos combatentes serão conhecidos dentro de um mês.
A antropóloga Eugénia Cunha, conhecida também por ter pedido em 2006 para levantar o túmulo do Rei D. Afonso Henriques para fins científicos, explicou que o próximo passo, depois de exumados os restos mortais dos antigos militares, passa por uma “análise antropológica laboratorial e a realização dos relatórios e possível identificação das ossadas”. “Da parte antropológica dentro de um mês podemos ter resultados, da parte da genética é mais demorado”, sublinhou.
Questionada sobre a relativa rapidez com que decorreu o processo, em duas semanas, Eugénia Cunha comentou que “cada caso é um caso”, observando no entanto que a operação não foi rápida. “Conseguimos conjugar na mesma equipa competências diversas da geofísica, da antropologia e da arqueologia e tivemos uma equipa da missão que foi para o terreno uma semana antes e que preparou tudo, ou seja, em termos logísticos nós não nos preocupámos com nada”, explicou.
Sobre o processo de exumação de restos mortais, a antropóloga da Universidade de Coimbra referiu que decorre em três fases, sendo que a primeira é a detecção dos restos humanos, feita pelo geofísico com um radar, que aponta um local. “Depois entra a parte da arqueologia que consegue encontrar os limites das sepulturas e depois de delimitadas e definidas as áreas onde as pessoas estão enterradas, o antropólogo faz a escavação, que pode ser mais ou menos difícil, dependendo do tipo de solo, do terreno, humidade, temperatura, estado de conservação do corpo”, disse.
Sobre as dificuldades encontradas no terreno, Eugénia Cunha afirmou que foram “muitas, a começar pelo clima da Guiné-Bissau”. “Facilidades não houve nenhumas. Encontrámos foi uma equipa de missão que nos conseguiu proporcionar o melhor que conseguiram mas, obviamente, foi bastante complicado”, concluiu.
Os dez antigos militares portugueses serão sepultados no cemitério de Bissau. O vice-presidente da Liga dos Combatentes anunciou entretanto que a exumação de restos mortais de ex-combatentes portugueses na Guiné-Bissau vai continuar e que a próxima missão será na localidade de Farim, onde estão sepultados vinte e um militares.
Questionado sobre a eventual trasladação de corpos para Portugal, o general Lopes Camilo explicou que o que está “definido politicamente, e com que a Liga concorda, é que devemos recuperar e manter com dignidade os locais onde se encontram sepultados os combatentes que tombaram no estrangeiro”.
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Notas: A nossa homenagem a quem teve a ideia e a quem a está a pôr em prática.

Sublinhados da responsabilidade de vb. Sobre este assunto ver artigos de
1 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2600: Os Mortos de Guidaje nas Notícias Lusófonas. Rui Fernandes.

28 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P919: Vamos trasladar os restos mortais dos nossos camaradas, enterrados em Guidage, em Maio de 1973 (Manuel Rebocho)

25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto
9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1488: Vídeos (1): Reportagem da RTP sobre os talhões e cemitérios militares no Ultramar (Jorge Santos)

28 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1468: Mortos que o Império teceu e não contabilizou (A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P2671: Ser solidário (8): O regresso da expedição humanitária a Bissau (Diário de Coimbra)


Coimbra, Taveiro > 21 de Fevereiro de 2008 > A caravana larga, às 9h da amanhã, a caminho de Bissau, aonde espera chegar a 29, depois de fazer quase 5 mil quilómetros... Esta expedição humanitária irá entregar a diversas escolas e instituições materiais didácticos e desportivos, livros, vestuário, calçado, e bens de primeira necessidade para unidades de saúde (soro, desinfectantes, ligaduras, compressas e medicamentos), que foram recolhidos até 8 de Fevereiro. O volume mais importante deste material já tinha seguido por via marítima, num contentor de 20 toneladas. Ao todo são cerca de dois mil caixotes recolhidos. Luís Graça. 23 Fevereiro 2008.

Missão regressa à Guiné no próximo ano


A expedição humanitária à Guiné-Bissau que partiu há um mês de Coimbra já terminou, devendo os últimos voluntários chegar este fim-de-semana. Gravados na memória trazem os sorrisos de agradecimento de um povo a quem falta quase tudo.
Missão cumprida, pelo menos até à próxima expedição humanitária, já no ano que vem. O grupo de 25 voluntários que partiu de Coimbra a 21 de Fevereiro, levando 21,5 toneladas de donativos (roupa, equipamento médico e material didáctico, etc.) e uma enorme vontade de ajudar Guiné-Bissau, está de regresso.
Fernando Ferreira foi um dos primeiros a regressar – outros só chegarão a casa este fim-de-semana – e contou ao Diário de Coimbra como decorreu a campanha, dos percalços na alfândega aos sorrisos e manifestações de agradecimento de todos a quem levaram ajuda, ainda que pouca para as grande necessidades do país.

A expedição, formada, essencialmente, por membros da Associação Humanitária Memória e Gentes, partiu de Coimbra no dia 21 de Fevereiro. Ao todo, foram 25 voluntários, com cinco jipes e mais dois carros de apoio, viajando por terra, uma vez que a maior parte dos donativos seguiram por mar, num contentor de 40 pés, o dobro do conseguido no ano anterior.
Segundo Fernando Ferreira, por terra, a comitiva foi deixando algum material em escolas e instituições já referenciadas, até chegar a Bissau. Aí, a Casa Emanuel, que acolhe crianças órfãs e filhas de seropositivos, a AD, uma ONG que aloja 400 crianças, e a missão católica de Quinhamel, que presta apoio médico e formação a crianças, foram algumas das instituições beneficiadas.
Temos de entregar o material a quem dele faz o melhor uso, lembra o membro da equipa, justificando a escolha de missões religiosas, de professores e projectos de cooperação com interlocutores portugueses.
A Bissorã, uma povoação do interior, levámos equipamento para uma biblioteca que estava a ser construída e material didáctico para as escolas da zona.

Fernando Ferreira recorda os acessos difíceis e as grandes carências da população. No que se refere a equipamento médico (cadeiras de rodas, canadianas, medicamentos, etc.) além da missão da Associação Saúde em Português (parceira da expedição) em Bafatá, foram apoiadas três associações de ex--combatentes.
Houve inclusive alguns reencontros, já que muitos tinham combatido ao lado de Portugal na guerra, adianta Fernando Ferreira, salientando, todavia, o abandono a que estão hoje votados por parte das entidades oficiais.

Travão da burocracia

O contentor com o material oferecido por empresas (Ambar e Babu, por exemplo), pelo Governo Civil de Coimbra e ainda com os donativos recolhidos durante dois meses e meio em Coimbra e no Norte do país - verificados, peça por peça, para que seguissem apenas coisas úteis e com mínimo de qualidade - chegaria a Bissau no dia 2 Março, mas só a 12 o grupo conseguiu retirá-lo da alfândega.


Mais do que os responsáveis políticos ou os superiores hierárquicos dos serviços, Fernando Ferreira aponta os níveis intermédios, que burocratizam ao máximo os procedimentos.
Há sempre que ajeitar algum dinheiro, para desbloquear as coisas, diz, lembrando outras passagens em zonas de controlo e verificação de documentos, com esperas que atingiam as sete horas.
O material do contentor foi descarregado em território da Cooperação Portuguesa, encarregando-se as diversas instituições de o ir buscar, mas outro material destinado a escolas foi distribuído pelos próprios voluntários da expedição.

Os sorrisos e até as lágrimas de agradecimento dos que receberam o nosso apoio pagam o esforço e o sacrifício da viagem – nomeadamente financeiro, uma vez que cada voluntário vai às suas expensas e que todos os valores recebidos são convertidos em material para levar, resume Fernando Ferreira.
Enquanto mostra ao Diário de Coimbra algumas das imagens registadas durante a expedição humanitária, o voluntário não deixa de manifestar o seu descontentamento, pelo facto de existir ainda – e sempre - uma imensidão de necessidades.

Sentimo-nos impotentes, desabafa. Ainda assim, foram colmatadas algumas, pequenas, carências e colocados sorrisos nos rostos de tantas pessoas. O voluntário destaca as crianças. Queremos divulgar a língua portuguesa, mas queremos sobretudo ajudar a inverter um ciclo, apoiar o ensino e criar nas crianças objectivos de vida e de construção de um futuro, explica, considerando que o Estado português deveria permitir a ida de mais professores para a Guiné-Bissau.
Porque não 150, como em Timor, em vez dos cerca de 30 que lá estão, questiona.
De um passeio a uma associação

Tudo começou com um passeio informal, um regresso de ex-combatentes da Guerra do Ultramar à Guiné-Bissau, há cinco anos atrás. Segundo Fernando Ferreira, regressados a Taveiro, os ex-combatentes relataram as grandes diferenças entre o que os portugueses por lá deixaram e o que agora existia, o abandono, as grandes carências, a ausência de lusofonia.


Decidiram voltar daí a dois anos, levando medicamentos, material escolar e outros donativos à população de Saltinho, nas margens do Rio Corubal. Mas, quando lá chegámos era pouco. Seguiu-se então nova viagem, já no ano passado, com um apoio mais amplo e organizado, um contentor com cerca de 20 pés, novamente composto por material escolar e didáctico, roupa e equipamento médico.
Fernando Ferreira recorda os costumeiros problemas na alfândega e as três noites passadas no porto de Bissau, até conseguir retirar o contentor.

Este ano, o grupo de voluntários – de Coimbra e de outras regiões do Norte e Centro do país – partiu a 21 de Fevereiro e esteve um mês na Guiné-Bissau. Em mente estão já outras missões aquele país, mas não só.
A Associação Humanitária Memória e Gentes, entretanto criada, veio oficializar a actividade solidária do grupo, permitindo uma organização capaz de intervir em diversas situações de carência e catástrofe, diz Fernando Ferreira, presidente do Conselho Fiscal.
A Associação foi criada em Novembro do ano passado, como parceira especializada da Liga dos Combatentes.
José Moreira é o presidente da Direcção e Maló de Abreu o presidente da Assembleia-geral.
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Nota de vb: Transcrição do texto da notícia do Diário de Coimbra. Com a vénia devida.

ver artigos de
16 de Março de 2008 Guiné 63/74 - P2648: Notícias da Associação Humanitária Memórias e Gente (Rui Fernandes/Carlos Marques dos Santos)

23 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2576: Ser solidário (7): Vinte e tal amigos e camaradas, do Porto e de Coimbra, a caminho de Bissau (Luís Graça / A. Marques Lopes)

21 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2567: Ser solidário (6): Pimentel, Álvaro Basto e Xico Allen: Juntos a caminho de Bissau, na rota do Porto-Dakar (A. Marques Lopes)

17 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2548: Ser Solidário (5): Ainda a Expedição à Guiné-Bissau (Carlos M. Santos)

13 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2531: Ser solidário (4): Coimbra encaixotou o maior contentor de apoio humanitário à Guiné-Bissau

sexta-feira, 21 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2670: Fez-se História em Guileje (Nelson Herbert)

Mário Soares, Presidente da República de então, presta a Homenagem de Portugal aos Militares do Exército Português caídos no solo guineense.

Foto: © Nelson Herbert (2008). Direitos reservados.

É de facto no culto dos seus mortos que as sociedades humanas, procuram tradicionalmente os mais delicados símbolos da sua coesão e identidade. Era assim entre os antigos gregos. Nas sociedades tradicionais africanas, a homenagem aos entes e antepassados mortos assume igualmente um notável destaque nas práticas rituais. A convicção de que os antepassados podem ter influência sobre a vida de gerações, constitui uma arreigada tradição nessas sociedades.


Cícero dizia que os antepassados quiseram que os homens que tivessem deixado esta vida fossem contados no número dos Deuses. Nesta perspectiva seria de facto natural que nas relações Estado-a-Estado, a maturidade dos homens, dos outrora inimigos, pudesse incluir com toda a dignidade, o culto dos respectivos mortos. Mas alguns episódios demonstram o quão de facto ínvio e difícil foram, por vezes, os trilhos dessa desejável catarse.


Mário Soares recebido à porta do cemitério de Bissau por uma manifestação pacífica e silenciosa de antigos combatentes da luta pela libertação da Guiné e integrada por outras igualmente vítimas dessa guerra, nomeadamente antigos soldados nativos que combateram sob a bandeira portuguesa.

Foto: © Nelson Herbert (2008). Direitos reservados.


Estes últimos, o mesmo grupo cujos direitos os governos portugueses teimam há décadas, a ignorar. "Render Homenagem aos criminosos da guerra colonial é ofender a dignidade dos Heróis guineenses e portugueses”, lê-se no cartaz.

Na foto é visivel o jornalista Nelson Herbert, a escassos passos da retaguarda da comitiva.



Ladeado pelo então secretário de Estado da Cooperação Durão Barroso e por representantes dos principais partidos portugueses, Mário Soares quis na altura dignificar esse capítulo da História comum, que alguns sectores, de um e outro lado das outroras diametralmente opostas trincheiras, teimavam em fazer calar na Memória colectiva dos dois Povos.

De facto, quando em 1953 Felicien Challaye escrevia "a colonização talvez seja a instituição que mais lágrimas fez correr", vinha ainda longe a Guerra na Guiné.

A guerra colonial ou de libertação teve no caso concreto da Guiné (eu catraio, na altura, indiferente e inocente aos acontecimentos) um dos seus cenários mais brutais e que acabou por deixar cicatrizes e, provavelmente, algumas cravadas na alma que só o tempo e a maturidade dos homens acabariam decerto por enjeitar.

E hoje, praticamente concluída que está a primeira fase do processo de exumação dos restos mortais dos militares portugueses de Guidaje (que consistia na definição dos limites das sepulturas, na identificação e exumação das ossadas com o apoio de técnicas geofisicas) e perante o eloquente sucesso que foi o Simpósio de Guiledje...de trincheiras irmanadas (a globalização estendendo também por aí os seus tentáculos?) curvo-me em reverência, para louvar a maturidade dos outrora inimigos.

E assim fez-se História!

Quartel da Amura, em Bissau > 7 de Março de 2008 > Guarda de honra a apresentar armas na homenagem dos antigos combatentes portugueses aos Heróis Nacionais da República da Guiné-Bissau, junto ao mausoléu de Amílcar Cabral.

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

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Notas de vb:

Texto de Nelson Herbert

Voice of America
Washington, DC

1. Notícia do Vítor Tavares:

Hoje regressam os técnicos que estiveram em Guidage, na exumação dos restos mortais dos nossos camaradas, que já se encontram em Bissau onde aguardam os exames periciais. Pelas escassas imformações que tenho correu tudo bem.

2. ver artigos de

16 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2652: Guineenses da diáspora (3): Nelson Herbert, o nosso Correspondente nos EUA (Virgínio Briote)

14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2639: O Simpósio de Guiledge na Voz da América (Virgínio Briote)

14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2639: O Simpósio de Guiledge na Voz da América. (Virgínio Briote)

Guiné 63/74 - P2669: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (1): Desta vez fui voluntário e estou em paz comigo próprio


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > O Zé Teixeira com a Cadidjatu Candé.

Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Azalai > 29 de Fevereiro de 2008 > O Zé Teixeira cantando o Hino de Gandembel com o vocalista dos Furkuntunda... A actuação deste grupo musical animou a nossa primeira noite em Bissau, na sequência do cocktail oferecido a todos os inscritos no Simpósio Internacional de Guiledje pela Ministra dos Combatentes da Liberdade da Pátria e Presidente do Comité Interministerial de Pilotagem das Comemorações do 35 Aniversário da Morte de Amílcar Cabral, Senhora Isabel Mendes Correia Buscardini (*).


Fotos: © José Teixeira (2005). Direitos reservados.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > Visita dos participantes do Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > O Zé Teixeira fez questão de levar, para casa,. como recordação, uma planta chamada matchundadi di branco (ou pila de branco, em crioulo) (*)... "O silêncio continua a imperar em Gandembel. Ninguém da população ousou recriar vida neste local. Só o machundadi di branco – flor estranha, surgida da terra, que os autóctenes de imediato batizaram, para relembrar aos vindouros que os Portugueses passaram por ali e sofreram duro, pela sua teimosia" (JT).

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.



1. Mensagem do Zé Teixeira, acabado de chegar da Guiné, por terra...


Caríssimos Editores:

Apesar de já haver muita coisa ecrita sobre o Simpósio [Internacional de Guiledje], nomeadamente graças ao excelente trabalho do Luís, junto uma crónica, que vai ter continuidade, se merecer.
Boa Páscoa para todos

J.Teixeira


2. SIMPÓSIO DE GUILEDGE > Algumas notas soltas, mas sentidas

Felizmente o Luís Graça (*) estava lá. Ninguém melhor que ele para falar do Simpósio. De minha parte, apenas algumas notas soltas.

(i) A RECEPÇÃO

A Canção GANDEMBEL explodiu dentro de mim, cantada de uma forma tão feliz por aquele grupo que animou a recepção.

Foi um recomeçar da guerra, agora com os inimigos bem frente a frente, de olhos nos olhos, com sorrisos de bem estar e felicidade, por se reencontrarem de novo, mas para festejarem a paz. Localizamos frentes de combate em que nos batemos, perigos que ultrapassamos, com sangue, com suor, com medo e quantas vezes com lágrimas de dor ou de raiva. Agora selamos a amizade com um abraço fraterno.

Selamos a amizade dando as mãos e cantando, dançando ao som da música que nos transporta para cenários de sofrimento e morte. Hoje espaços de vida e esperança


(ii) PICADA DE CHAMARRA.

De Chamarra até Balana, passando por Changue Laia, o terrível local onde havia uma placa com a palavra Fronteira, colocada pelo PAIGC. A partir daí entrava-se no inferno dos fornilhos, dos campos de minas e emboscadas. Só se parava em Gandembel ou Cã Dembel, como lhe chama os Fulas. Sem afectar a verdade, poderia dizer-se que o carreiro da morte começava aí.

Escrevi um dia no meu Diário

(...) Aldeia Formosa, 28 de Julho de 1968

Ontem Aldeia Formosa voltou a ser atacada. Três vezes numa semana é muito.

Hoje fui fazer uma coluna a Gandembel. Tudo correu bem. O IN não atacou nem colocou minas na picada. Só tivemos uma tempestade de chuva. Começamos por ouvir um ruido assustador que se aproximava de nós. De repente surge uma forte ventania que nos arrastava seguida de uma tromba de água que transformou a picada num rio. Um quarto de hora depois tudo desapareceu e voltou o sol quente que rapidamente nos secou.

Pouca antes de chegar a Gandembel vimos o IN atacar um Fiat das FAP que se incendiou, tendo o piloto saltado de pára-quedas.

Passei no sítio onde há pouco tempo se deu uma terrível emboscada que roubou seis vidas. Quinze fornilhos colocados em série num local onde a tropa ao sentir as primeiras balas da emboscada se esconde. Doze rebentaram no momento em que se iniciou a emboscada e ceifaram seis vidas. Foi uma sorte não ter lá ficado toda a Companhia.

Quando chegamos a Gandembel fomos saudados pelo IN com um pequeno ataque ao aquartelamento, sem consequências. Os Camaradas que estão aqui estacionados dizem que comem disto todos os dias e mais que uma vez.

Como é terrível...

Encontrei em Gandembel o Mário Pinto, meu colega de escola, contou-me coisas terríveis que se têm passado neste aquartelamento fortificado, junto à Fronteira com a Guiné/Conacri que tem como objectivo cortar os carreiros de ligação à "estrada da morte" impedindo o IN de fazer os abastecimentos.

-Será verdade que vamos ficar nesta zona por muito tempo ?

(...) Odeio.. Odeio os homens que se guerreiam e matam. No entanto eu também sou um deles...

O Inimigo também tem namorada, mulher, filhos... também se agarra aos seus santos protectores...

Pergunto-me se quantas vezes ao sair para o mato as portas das Tabancas se abrem e surgem caras, um sorriso, um braço no ar ... um desejo de 'bom biaje', se não serão essas mesmas caras com o ódio estampado que nos esperam no meio da bolanha prontos a matar quem não quer fazer guerra, mas foi obrigado pelo sentido de Pátria em que foi educado ?

Toda a cara preta me parece um IN. Odeio o IN porque é traiçoeiro, por que mata.


Mampatá, 23 de Agosto de 1968

Mais uma etapa díficil para a Companhia 2381. Quem diria que após uma coluna a Gandembel na qual se levantaram 57 minas A/P e quatro fornilhos depois da passagem por Chamarra e sem ninguém contar, surge a terrível emboscada que provoca cinco feridos.

É sempre assim, onde menos se conta, quando a calma e a confiança volta ao espírito, quando se julga que o perigo já passou, surge de entre o arvoredo, traiçoeiramente o inimigo.

Um viver constante em estado de guerra arrasa o espírito. A parte física ressente-se , as conversas entre camaradas tornam-se por tudo ou nada exaltadas, pequenos quezílias, tornam-se problemas.

O homem é fruto do ambiente em que vive. Se o ambiente é de paz, sente-se a vida nos corações, a calma e a confiança no 'outro', vive-se a paz. Quando o troar dos canhões se ouve longe ou perto, quando existe guerra entre os homens, existe guerra no seu espírito. O espírito torna-se selvagem. Trava-se uma luta entre o antigo e o novo, entre o amor e o sangue. Um jovem que ainda ontem só pensava em amar, hoje não vacila em disparar sobre um inimigo, mesmo ferido inofensivo, inutilizado, a precisar de uma mão salvadora....

Antes de ontem e ontem, Buba foi atacada. Os Páras têm tido um trabalho intenso. Hoje bateram a zona de onde costumam atacar Aldeia Formosa. Há alguns dias que patrulham a zona envolvente de Gandembel e com bons resultados. vários mortos, "manga " de feridos e material apreendido.

Hoje, que bom sentir a vida brotando onde outrora, imperava o medo, o silêncio entrecortado pelo troar das armas ou pelo estrondo das mortíferas minas e fornilhos.

Toda a estrada de Chamarra até Balana está cheia de moranças. No rio onde em tempos longínquos rebentavam granadas e bombas hoje existe um lavadouro onde as mudjeres fulas lavam a roupa dos seus filhotes cantando alegremente.

Que bom sentir a paz brotando dos corações dos homens. (...).


(iii) GANDEMBEL, MÍTICO LOCAL , AGORA EM PAZ.

O silêncio continua a imperar em Gandembel. Ninguém da população ousou recriar vida neste local. Só o machundadi di branco – flor estranha, surgida da terra, que os autóctenes de imediato batizaram, para relembrar aos vindouros que os Portugueses passaram por ali e sofreram duro, pela sua teimosia.

Tinha desenhado na minha mente a estrutura arquitectónica, a disposição das casernas em círculo, a parada que a todo o momento servia de campo de tiro, porque do cimo das árvores do lá de lá da fronteiro o inimigo espreitava. A curva a duzentos metros da entrada, que nos fazia sair do corredor da morte, para entrar num novo palco . . . de morte.

Tudo estava lá, como eu imaginava. Os restos das casernas são testemunho vivo de uma presença, de uma luta inglória. De vidas jovens destruídas. De uma força de vontade indómita de vencer, por parte de um inimigo que não dava tréguas, porque acreditava que a vitória era difícil, que a luta poderia ser longa, mas que à razão da força teria de opor a força da razão aliada a força da alma das suas gentes.

Desta vez fui voluntário. Desta vez não tive medo. Bem pelo contrário, senti-me um homem feliz. A emoção tomou posse de mim. A planta que lá deixei, reflectiu a esperança de que a paz é possível sempre que os homens, os políticos, a desejem sinceramente.

Foi a concretização de um sonho que acalentava há vários anos.

Acredito que Gandembel será no futuro um espaço onde a vida humana também brote tão espontaneamente como tem vindo a brotar em tantos espaços, teatros de grandes lutas no passado, hoje centros de vida, de alegria e esperança (*).

(iv) ENCONTRO FELIZ


Ao chegar a Guiledje, cruzo-me com uma bonita mulher, extremamente activa, sempre com um sorriso nos lábios. Na lapela um crachá onde se lia Cadidjatu Candé (**).

Comentei em surdina: Conheci um Candé em Quebo que foi barbaramente assassinado com um prego na cabeça, no fim da guerra

Ouço uma resposta que não só me surpreende, como me emociona profundamente. A Cadi com o seu olhar cândido responde:
-Era meu pai...

O Candé era um alferes de um grupo especial de milícia, em Quebo que posteriormente passou para a CCAÇ 18, estacionada também em Quebo.

Soube da sua triste sorte através do seu primo Mudé Embaló, meu ajudante de enfermeiro, que mais tarde conseguiu vir para Portugal e, soube agora pela família em Chamarra, que faleceu há cerca de dois anos em Espanha


Zé Teixeira

Continua

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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

8 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2618: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (1): Regresso a Bissau, quatro décadas depois...

9 de Março de 2008> Guiné 63/74 - P2620: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (2): O Hino de Gandembel, recriado pelos Furkuntunda

9 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2621: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (3): Pequeno-almoço no Saltinho, a caminho do Cantanhez

11 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2625: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (4): Na Ponte Balana, com Malan Biai, da RTP África

14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2640: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (5): Um momento de grande emoção em Gandembel

16 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2650: Uma semana involvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (6): No coração do mítico corredor de Guiledje

17 de Março de 2008 > Guine 63/74 - P2655: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (7): No corredor de Guiledje, com o Dauda Cassamá (I)

17 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2656: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (8): No corredor de Guiledje, com Dauda Cassamá (II)

19 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2667: Uma semana memorável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (9): O grande ronco de Guiledje


(**) Uma das três mulheres da equipa do Pepito, responsável por toda a logística que permitiu a nossa magnífica visita ao sul... Vd. poste de 28 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2590: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (24): Pepito e os oito magníficos da sua equipa (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P2668: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (24): Cartas de Bambadinca, Janeiro / Fevereiro de 1970

"Foi uma imprevista prenda de Natal de 1969. A minha relação com Rigoletto nunca foi das mais estimáveis. Continuo a pensar que Verdi pactuou com os facilitismos, as cenas retumbantes meio vazias, momentos de dramatismo inadmissíveis. Contudo, poucas vezes uma ópera pediu tanto a um barítono. Rigoletto é de uma grande complexidade: o bobo é maldoso e mavioso; satânico e lírico; cruel e terno; eterno derrotado e sedento de felicidade. Não é por acaso que os maiores barítonos do mundo querem incarnar Rigoletto".

"Esta versão do São Carlos de Nápoles com o grande condutor Francesco Molinari-Pradelli, de 1958, não é muito boa mas nunca conheci tanta intensidade como nesta versão de Capecchi: as cambiantes de voz espelham a pulhice, a bajulação, o sofrimento de um pai conduzido à extrema humilhação, o acusador dos cortesãos que se prostituem ao Duque de Mântua. Nem Dietrich Fischer-Dieskau nem Piero Cappuccilli conseguiram este arrebatamento aos céus. Os meus camaradas de quarto em Bambadinca ouviram Capecchi emocionados. É com imensa saudade que os recordo juntamente com esta Rigoletto".


Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), remetido em 8 de Janeiro de 2008:


Luís, Aqui vai o episódio n.º 24. A ilustração do Rigoletto já seguiu, os dois livros referidos seguem depois. Não te esqueças que aguardo a tua disponibilidade para almoçarmos muito em breve. Um grande abraço do Mário


Operação Macaréu à vista > Episódio n.º XXIV

CARTAS DE UM MILITAR DE ALÉM-MAR EM ÁFRICA PARA AQUÉM EM PORTUGAL (3) E OUTRAS PARAGENS EM ÁFRICA (*)

por Beja Santos

(i) Para Comandante Avelino Teixeira da Mota

Meu muito estimado amigo,

Soube pelo Ruy Cinatti que vai ser colocado em Luanda, felicito-o e desejo-lhe as maiores felicidades.

Estou em Bambadinca desde Novembro e percorro regiões que seguramente conhece muito bem, entre Xime e Xitole, é o caso dos regulados de Badora e Cossé. É o que se chama a intervenção, deixei de ir a Mato de Cão, participo num número episódico de operações, monto vigilâncias, estou de segurança na ponte de Udunduma, comando colunas de abastecimento de Bambadinca ao Xitole e Saltinho, colaboro no reordenamento dos Nhabijões, faço emboscadas, recenseamentos, patrulhamentos ofensivos no Joladu, vou ao correio, levo e trago doentes, levo e trago mantimentos e munições, enfim, sou um recoveiro militar, de manhã à noite.

Estou a pôr os meus papéis em ordem, só recentemente é que percebi porque é que o Sr. comandante queria saber quais as populações que viviam em Bucol, numa carta que me escreveu para Missirá falou várias vezes em beafadas e soninqués, e foi a estudar o António Carreira que me apercebi do significado das suas perguntas.

Li o António Carreira para procurar perceber a influência e consolidação do islamismo na Guiné. Os fulas, como sabe com tanta autoridade, foram os verdadeiros arautos do islamismo, submetendo os soninqués bebedores (animistas), em aliança com os soninqués mouros. Os mandingas misturaram-se com os beafadas, caso do Cuor, descubro agora que os Soncó eram
beafadas mandinguizados (leio no Carreira que Joladu significa chão de beafadas).

Quando tiver tempo e paciência, gostava muito que me indicasse literatura sobre este dinamismo da islamização, que foi animada pela presença europeia, pela submissão dos infiéis beafadas e dos fula-pretos animistas. Também no estudo do Carreira descobri que Boncó Sanhá (seguramente familiar do actual tenente Mamadu Sanhá, régulo de Badora) era sobrinho de Infali Soncó.

A outra pergunta que lhe deixo no ar tem a ver com Abdul Injai, que Teixeira Pinto premiou fazendo dele régulo do Oio e do Cuor, depois das campanhas de 1913-1914. Leio que ele suscitou o ódio das gentes do Oio e foi deportado para Cabo Verde. Foi mesmo assim?

Muito obrigado pelos seus esclarecimentos. A sua antiga aluna Cristina Allen e eu casaremos em breve. Acabo de descobrir que não tenho direito a férias, tudo resultado daqueles dois dias de prisão simples, depois da visita do Felgas e do Spínola a Missirá. Ultrapassei uma depressão, estou física e psiquicamente muito melhor, tenho pelo menos mais sete meses pela frente neste teatro de operações. Peço-lhe por tudo que me continue a enviar notícias e a literatura disponível. Receba a muita estima e admiração deste seu devedor.


(ii) Para Cristina Allen

Meu adorado Amor,

No dia do nosso casamento estarei na ponte de Udunduma, mas asseguro-te que virei telefonar-te aos correios de Bambadinca, por volta do meio dia. Por aqui está tudo na mesma, andamos sempre em movimento e, não te querendo cansar com banalidades, dou-te conta do que foi o nosso dia, logo que regressei da Topázio Valioso, no último dia de Janeiro.

Ao amanhecer, mandaram-nos a Queca, que é a tabanca de Sadjo Baldé, aquele meu soldado que morreu em Missirá em Março Passado, é uma tabanca situada entre Sansacuta e Afiá, no regulado de Badora, a fim de transportar mandioca, amendoim, algodão e arroz. Os soldados que foram comigo eram voluntários, tinham lá familiares ou queriam ir às compras. O chefe de tabanca gostou de mim e ofereceu-me ovos que reverteram para a messe das praças.

A Colecção «Novos», da Portugália Editora, foi um grande acontecimento cultural dos anos 60.Por ali passaram Fiama Pais Brandão, Gastão Cruz, Baptista Bastos,Rebordão Navarro,Yvette Centeno, entre tantos outros.Este Herberto Helder anuncia o grandecíssimo poeta que renovou a nossa língua.

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


No regresso, ainda fomos a Samba Juli, trouxemos a caixa do Unimog 404 cheia de cibes destinados à construção de novas casas nos Nhabijões. Depois, isto tudo ainda de manhã, fomos escoltar uma legião de trabalhadores que iniciaram o alcatroamento da estrada do Xime, acima de Amedalai, já perto da Ponta Coli. Ficou lá o pelotão de milícias de Amedalai a montar segurança, em Amedalai conheci o filhinho de Mamadu Djau, o nosso bazuqueiro, deixámos sacos de cimento na ponte de Udunduma, viemos almoçar.

À tarde, levámos doentes a Bricama, depois da consulta de Vidal Saraiva, e seguimos para Bafatá, para entregar aprovisionamentos no agrupamento e trazer correio. Ainda estava a jantar quando saímos precipitadamente para Mero e Santa Helena, havia o rumor de que andava por ali um grupo de Madina a saquear e a raptar. Felizmente, era boato falso. Acabei por trazer um bêbedo para o quartel e uma criança abandonada, de quem ninguém conhecia a origem, coisa inacreditável.

No dia seguinte, recomeçou a dança, e logo a seguir chegará a nossa vez de irmos para a ponte de Udunduma. Pelos intervalos, tenho o serviço de justiça militar, acabei o auto da granada incendiária da Fatu Conté e comecei outro sobre um acidente grave que ocorreu há dias na rampa de Bambadinca, em que ficaram dois soldados sinistrados por terem tombado de uma viatura, com a cara rasgada.

Acabei de ler um livro soberbo, Os Passos em Volta, de Herberto Helder, veio na fornada do presente que me mandou o meu Padrinho. Gosto muito da poesia do Helder e não entendo como podem dizer que isto são contos, é um vendaval lírico, talvez poemas tempestuosos sob a forma de relatos vividos na Bélgica. Escuta como ele escreve:

“Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não sei como arrumar tudo isso. Porque, sabe?, uma noite acorda-se às quatro da manhã, num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo ergue de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganho um volume impossível, a nossa vida... Compreende?... a nossa vida apresenta-se então ali como algo... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar tudo muito depressa. Há, felizmente, o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é aquela maneira subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação, Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos esta desordem estuporada da vida. Então, pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam”.

Lembra muito o Poemacto, de que tanto gostei. É o próprio Cinatti que me fala com admiração desta alquimia que se autonomizou do surrealismo. Vou enviar-te por correio. Li também o “Ateneu”, de Raul Pompeia, recorda-me Machado de Assis.

Como a minha vida mudou, Cristina. Exactamente há um ano, eu percorria o Cuor de um extremo ao outro, tinha ânimo e tropas. Neste mesmo dia, há um ano, fui a Quebá Jilã, em pleno território do PAIGC, de onde trouxemos um prisioneiro.

Hoje, saí daqui pelas seis da manhã, numa coluna ao Xitole, que decorreu sem incidentes, excepto a má recepção dos nossos camaradas que ficaram azedos com o envio de muito arame farpado e cimento em vez de géneros, como se nós fossemos os responsáveis pela intendência! Éramos setenta militares, vinte viaturas, mais de quarenta toneladas de carga. Fui com as tropas do alferes Moreira, meu companheiro de quarto, que também participou. É um itinerário com más tradições e por isso levámos dez mil cartuchos de reserva, metralhadoras, lança roquetes e morteiros.

Espero que no domingo me contes tudo sobre o nosso casamento. Os meus soldados acreditam que eu vá de férias e já tenho aqui uma relação de pedidos, desde calças de boca de sino até sapatos de palhinha. Vais ter notícias do alferes Carlão, da companhia operacional de Bambadinca, ele vai-te levar uma pulseira e outras lembranças, envia, por favor, livros, peúgas e uma lista de suplementos vitamínicos. A realizar-se o casamento religioso aí, temos que ser cuidadosos a elaborar a lista de convidados, para não provocar mais melindres.
Beijo a minha senhora dona, a saúde está óptima, estou a cair de cansaço e esta noite vou dormir na missão de sono no Bambadincazinho.

(iii) Para Carlos Sampaio

Meu querido Carlos,

As tuas cartas encheram-me de alegria, mas não posso esconder-te a minha preocupação com os relatos que me fazes da tua vida operacional. Na Guiné, é quase impossível passarmos uma semana a fazermos batidas, ao fim de um dia precisamos de água e comida, ninguém consegue dormir no mato, todos os ruídos parecem ensurdecedores, tememos ser referenciados e não sei o que se costuma fazer quando o inimigo faz fogo de morteiro à noite, perto de nós, imagino que é o caos completo.

Fico feliz pelo que dizes sobre o meu casamento e as felicidades que me desejas. Quero que saibas que estou muito melhor depois do tratamento que fiz em Bissau, ando com um apetite esfaimado, durmo muito bem, deve de ser de um psicotrópico chamado amytal sódico que me põe a dormir nove horas até em sítios horríveis com aquela ponte de que já te falei, para garantir a segurança a Bambadinca.
Nem tudo é canseira nas nossas actividades, embora haja sempre a tensão de sermos emboscados ou apanhados por uma mina. Às vezes conseguimos um jeep e vamos até às tabancas das redondezas petiscar, fazer compras de artesanato, mesmo que no dia seguinte voltemos aos mesmos locais com aparato militar. Uma vez fui a Mero com o nosso médico e dois soldados, o médico queria comprar uma corneta balanta e tábuas com inscrições islâmicas, que são muito belas, depois fomos petiscar à destilaria de Ponta Brandão, e no dia seguinte já não viemos fazer turismo mas sim numa patrulha de reconhecimento.

Casamos pois no domingo e confesso-te a minha tristeza por não gozar da tua companhia nesse dia. O que me consola é que a guerra acabará para nós este ano e temos lindos projectos para o nosso trabalho e para os nossos estudos. A Cristina fala-me sempre das cartas que recebe de ti, ela sente-se muito inquieta com os perigos que corres. Continuo sem saber se vou a Portugal, sabes melhor do que ninguém que tenho sérios problemas familiares que não sei enfrentar com esta distância toda pelo meio.
Escreve-me depressa e rezo a Deus que te proteja muito, cada carta que escreves é sinal da tua saúde mas em cada correio que não tenho notícias tuas estou sempre a temer por ti. Tu mereces o maior abraço do mundo, és um devotado irmão.


(iv) Para Ângela Carlota Gonçalves Beja

Minha querida Mãezinha,
Ainda estou a ler os livros que me mandou pelo Natal. Acabei os Retalhos da Vida de um Médico, primeira série, é um Fernando Namora de quem sempre gostei muito, comovem-me aquelas experiências de recém-licenciado que andou pelas serras bravias, pelas planuras alentejanas e pelas veredas do Diabo onde assistiu a partos, acompanhou doentes terminais, viu misérias, foi admirado e exacrado pelas populações onde trabalhou. Não querendo abusar da sua paciência, e porque aqui não consigo encontrar Domingo à Tarde, peço-lhe o grande favor, quando for possível de mo enviar.

No próximo domingo casarei por procuração e ainda não sei se poderei gozar férias perto de si. A seu tempo será informada. Há muito pouco a dizer sobre a vida que levo neste quartel de Bambadinca: visitamos as populações, recenseamos as armas distribuídas pelas tabancas, fazemos colunas a diferentes quartéis, montamos segurança numa ponte e num outro local perto de Bambadinca, é canseira de manhã à noite, mas com menos riscos que as minha idas diárias a Mato de Cão e as noite de Missirá. De vez em quando fazemos operações, a maior parte delas não têm graça nenhuma, chegamos a andar trinta e seis horas às voltas, não se consultam os soldados que conhecem as regiões por onde passamos, é um fracasso que nos entristece.

Aproveito para lhe recordar que ainda faltam sete meses para acabar a minha comissão, agradeço-lhe do coração as visitas que faz regularmente aos meus soldados feridos, as lembranças que lhes oferece, alguns deles ficam espantados quando lhes fala da sua África e do norte de Angola que a Mãezinha tão bem conhece.
Quando visitar o Quebá Soncó diga-lhe que o filho Malã está muito melhor dos estilhaços que tinha na cara, o jovem ficou ferido numa flagelação e o médico do batalhão retirou-lhe mais estilhaços da cara, está muito mais aliviado e já não tem dores.

Muitos beijinhos do filho que nunca a esquece.

As Publicações Europa- América foram felizes com o design gráfico desta edição dos anos 60. Estes «retalhos» foram publicados em 1966,11ª edição

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

(v) Para Ruy Cinatti

Ruy, dear Father,

Finalmente, tive notícias suas. Gostei muito da sua prenda de Natal, um espantoso Rigoletto que me anda a aquecer a alma. Creio que fazia parte da sua discoteca, o que, como lembrança, é um valor acrescentado. O que ando a fazer desde Novembro são missões de protecção e boa vontade, nada tenho a adiantar ao que desde então tenho escrito.

Melhorei muito depois de Bissau, tomei a decisão de voltar a dar aulas aos meus soldados e renovar alguma coisa naquele quartel de que lhe falei, a ponte de Udunduma. Não gosto nada das operações que faço, revelam-se inúteis, os soldados estão desanimados, não aceitam percorrer locais que alguns conhecem bem sem lhes pedir colaboração. É evidente que estamos na época seca, o capim está muito crescido, a natureza muda bastante, a bússola por si só não chega, é preciso entrar no mato denso, espiolhar tudo à procura dos itinerários dissimulados. Nem mesmo na ponte de Udunduma podemos fazer patrulhas mais vezes como seria conveniente e até desejável para as populações em autodefesa. Estou muito pessimista com o evoluir desta condução da guerra. Durante as horas com luz, leio e escrevo. Aqui vão os meus últimos rabiscos, embora eu tenho decidido que isto é lirismo sem préstimo:

Há fontes que não secam

Aguardo a tua carta neste estio prolongado; os bissilões quietos,
os mangueiros com as raízes gretadas. Aguardo
a imprevisibilidade de um acidente atmosférico, tufão ou furacão.
Ou mesmo enxurrada.
Olhamos ao longe a mata cerrada, há quem sonhe ver arados
a rasgar estes campos, tudo sem sobressalto nem emboscadas.
Há mesmo quem delire com nevões suaves
que se espalhem pelo arame farpado, com búzios,
carapaças de tartarugas, sob céus em trovoada, um granizo
a imitar pedras de gelo.

Nós, na verdade, esperamos por uma paz inquestionável,
cercados que estamos de latas de graxa, lâminas de barbear,
atacadores, conservas de atum, água abundante
nestes açudes à escuta da energia das rias e das lalas encharcadas
que separam este oceano, entre mim e a tua carta.
Porque há fontes que não secam: a tua carta é a paz dos altos fornos.
Nada esmaga a esperança neste estio prolongado. Juro. Por Deus.

Obrigado pela companhia que dá aos meus soldados. Obrigado por os levar domingo a casa da Cristina. Obrigado por tudo. Receba o maior abraço que me é possível mandar desta ponte de Udunduma.
____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste de 14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2637: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (23): Buruntoni: um topázio muito pouco valioso

quarta-feira, 19 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2667: Uma semana memorável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (9): O grande ronco de Guiledje





Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > Manifestações de regojizo pela nossa chegada ao antigo aquartelamento de Guileje, abandonadao pelas NT em 22 de Maio de 1973, sob pressão do PAIGC. A, na altura polémica, decisão do então major Coutinho e Lima, comandante do COP 5, de abandonar Guileje é hoje reconhecida pela população local (maioritariamente fula) como um acto de bom senso e de humanidade, que permitiu salvar muitas centenas de vida, de um lado e de outro.

Vídeo (1' 19'): © Luís Graça (2008). Direitos reservados. Alojado em: You Tube >Nhabijoes








Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > Recepção festiva dos visitantes por parte do régulo e população local. Trinta e cinco anos depois os tugas voltam a Guilje: o que se passará na cabeça de homens como o Nuno Rubim, o capitão fula dos primórdios de Guileje, o José Barros Richa, um Drácula da CART 2410, ou a malta dos Gringos de Guileje , a CCAÇ 3477 (aqui presentes através do Abílio Delgado, o José António Carioca, o Sérgio Sousa) ? O que se passará na cabeça dos restantes tugas ? E dos seus aliados ? E dos antigos combatentes do PAIGC ? E os seus aliados cubanos ? ... São muitas emoções para um dia só...

Vídeo (2' 01'): © Luís Graça (2008). Direitos reservados. Alojado em: You Tube >Nhabijoes

Imagens de cor, alegria, hospitalidade e amizade, à chegada a Guileje, por volta do 12h30, da caravana automóvel, que tinha partido de Bissau às 7h00, com paragem no Saltinho, Ponte Balana, Gandembel e corredor do Guiledje. (1)..

Muita população da região de Tombali (em especial dos sectores de Bedanda e de Cacine) quis associar-se a este evento... Houve pessoas que se deslocaram de longe, fazendo a pé dezenas de quilómetros, só para assistir à homenagem que os antigos habitantes de Guiledje quiseram fazer ao tuga que lhes terá salvo a vida...Sabe-se que na altura a população local saiu contrariada em direcção a Gadamael...

O nosso amigo e camarada Carlos Silva no meio das autoridades tradicionais de Guiledje que acabavam de chegar, ao recinto do antigo aquartelamento, para cumprimentar as autoridades de Bissau, os antigos combatentes da Liberdade da Pátria, os tugas e demais estrangeiros, participantes (ou não) do Simpósio Internacional de Guileje, bem como os organizadores deste evento, em especial a AD - Acção para o Desenvolvimento...


Uma imagem da multidão que se juntou à volta do grupo de dançarinos e músicos que nos deram as boas vindas... A Guiné no seu melhor.


Que diria Amílcar Cabral, se fosse vivo, e pudesse, também ele, ser protagonista de mais um dia em que se fez história ?... Julgo que faria um sorriso irónico para os tugas e os seus aliados tugas que apostaram no cavalo errado...

Fotos e legendas: © Luís Graça (2008). Direitos reservados


_______


Notas de L.G.:


(1) Vd. postes anteriores:


8 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2618: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (1): Regresso a Bissau, quatro décadas depois...


9 de Março de 2008> Guiné 63/74 - P2620: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (2): O Hino de Gandembel, recriado pelos Furkuntunda


9 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2621: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (3): Pequeno-almoço no Saltinho, a caminho do Cantanhez


11 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2625: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (4): Na Ponte Balana, com Malan Biai, da RTP África


14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2640: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (5): Um momento de grande emoção em Gandembel


16 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2650: Uma semana involvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (6): No coração do mítico corredor de Guiledje


17 de Março de 2008 > Guine 63/74 - P2655: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (7): No corredor de Guiledje, com o Dauda Cassamá (I)


17 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2656: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (8): No corredor de Guiledje, com Dauda Cassamá (II)

Guiné 63/74 - P2666: Fórum Guileje (9): O Simpósio foi uma festa, uma grande festa! (Carlos Silva)

Guiné > Regiãod e Toimbali > Guileje > Simpósio Internacioanal de Guiledje > 1 de Março de 2008 > Guiledje foi uma festa! O Simpósio foi uma festa!

Foto: © Pepito (2008). Direitos reservados


1. Mensagem do Carlos Silva, com data de 15 do corrente:

Amigo Luís

Regressámos ontem à noite. A semana no Sector 2 / Farim foi em beleza, um espectáculo, como sempre tem sido.

Em Bissau ainda visitei o blogue. Hoje já dei uma lambidela, está um espectáculo. A Guiledje-fobia-filia-terapia está ao rubro.

Agora, estou a ver as dezenas de mails que tenho para aqui e é engraçado, porque recebi um especial, enviado pelo Pepito, com uma foto minha em Guiledjee, quando me misturei-me com aquele povo todo, no batuque, e esta festa subiu ao rubro, andavam vocês para outros lados a rebuscar outros aspectos. Aliás, tenho outras semelhantes, tiradas pela tua mulher, porque no momento andávamos juntos.

Como penso, que esta foto traduz o contentamento e a alegria, os sentimentos espontâneos daquele povo por eu ter saltado para o batuque, pois até a Ministra ficou com os olhos brancos... Se assim o entenderes, era de colocar no blogue, inserida no tema Guiledje.

Vou passar as minhas fotos ao computador e, logo que possa, envio-te um DVD, porque, também tenho muitas fotos tuas que a tua mulher tirou e pediu-me para tirar.
Enfim, tenho para aqui muito trabalho para fazer.

Recebe um abraço.

Carlos Silva

2. Mensagem do Pepito para o Carlos Silva, com data de 13:

Assunto - Simpósio de Guilege, grande festa!!!!

Carlos

Aqui segue esta magnífica e inesquecível foto tua.
abraço
pepito

Guiné 63/74 - P2665: Poemário do José Manuel (4): No carreiro de Uane... todos os sentidos / são poucos / escaparão com vida ? / não ficarão loucos ?






Guiné > Região de Tombali > Simpósio Internacional de Guiledje > Visita ao sul > 3 de Março de 2008 > Imagens, eternas, do Rio Corubal: rápidos do Saltinho (a primeira, de cima); rápidos de Cusselinta, as restantes.

Fotos: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.


1. Mais poemas do dia, do José Manuel, recebidos, dia a dia, ao longo de uma semana, de 8 a 15 de Março de 2008. Foram escritos na Guiné. Estavam guardados no baú do sótão. O José Manuel foi Fur Mil, Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74. Obrigado, camarada, por quereres partilhar connosco a tua escrita poética.

Já nada é igual
num mundo que cai
onde havia esperança
espreita o mal
é uma vida que se vai.

Salancaur 1973

josema
__________

A escuridão
pode não ser o fim
se após a noite
vier o dia
na escuridão
podemos encontrar estrelas
se depois de nós
houver sempre crianças.
josema
___________________

Pensar que amar é dor
é não amar
amar
é dominar
a violência
que há em nós
é um não á guerra
é não haver polícias
nem milícias
é procurar carícias
num prazer por acabar
josema
Guiné 1973
________

-Sabes? Sonhei
que as coisas boas
não acabaram
pois
não têm fim
acreditei
que vale a pena esperar
vale a pena
saber
que o nosso inferno
um dia
vai acaba
o maldita
ou a má sina
como lhe queiras chamar
havemos de enganar
juro-te
sinto dentro de mim
confiança
uma força renovada
-dos tolos! dizes tu
-seja, porra,
mas vale a pena
pois 'tou
farto de escutar
aquela voz
que tanto quero calar
‘tou farto de lamentar
este destino traçado
foda-se!
quero um futuro
marcado
com traço
por mim riscado.

Kolibuia (2) 1973
Josema
___________________

Seria bom pronunciarnuma doce ilusão
um até sempre
a dor atenuar
com um tímido
acenar de mão
não deixar
que a crueza da razão
se sobreponha à paixão
é bom sonhar
é bom esquecer
ou então nunca saber
que só nos pode ficar
um adeus como opção.

Guiné 1973
___________

Quero sonhar
e não consigo
viver um mundo
que não tenho
nem encontro
desejo amar
e não morrer
quero esquecer
a luta ódio
e não sentir
a amargura do suor
encontrar a paz
enterrar a dor
sim irmão
além no horizonte
bem longe
para lá daquele monte
mas o mundo ri
é louco
não vê
nem um pouco
e caminha para o fim.

Guiné 1973
_________________

Gostava de vos falar
dos esquecidos
dos heróis que a história
não narra
que as viúvas choraram
mas já não recordam
daqueles
que nem tempo tiveram
de ter filhos
que os amassem
descendentes
que os lembrassem
daqueles
que nunca tiveram
o dia do pai
vítimas de guerras
que não inventaram
em tempo que já lá vai
falar deles é prevenir
se bem que de nada lhes valha
de guerras que possam vir
geradas pela ambição
dos que nunca morrerão
num campo de batalha.
__________________

Olhos semi cerradosquerendo ver
para além das árvores
passo controlado
procurando caminho
já calcado e pisado
orelhas a pino
a querer ouvir
além da neblina
todos os sentidos
são poucos
escaparão com vida?
não ficarão loucos?

Carreiro de Uane 1972
josema
____________

Notas de L. G.:

(1) Vd. postes anteriores:





(2) Colibuía: povoação junto ao Rio Corubal, perto de Aldeia Formosa ou Quebo, que não consigo identificar na Carta do Xitole. Vd. poste de 26 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXVIII: Os rios (e os lugares) da nossa memória (2): Corubal (Saltinho e Contabane) (José Neto)

terça-feira, 18 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2664: Os Cães de Guerra (Mário Fitas e Carlos Filipe, ex-Fur Mil, CCaç 763, Cufar, 1965/66)

Elementos da CCaç 763 em Cufar: Mário Fitas é o 2º da direita).




Companhia de Caçadores 763

Guiné 1965/1966

História da criação da Secção de Cães de Guerra



Texto de Mário Fitas * e Carlos Filipe.

Fotos: © Mário Fitas. Direitos reservados.

Para nos revermos, e ter fundamentos para esta experiência de introdução de Cães de Guerra na contra-guerrilha em terras da Guiné, há que remontar a 1961/1962. O então Cap Inf Carlos da Costa Campos, a prestar serviço em Moçambique, foi indigitado para se deslocar a Pretória, África do Sul, a fim de durante seis meses, lhe ser administrado um curso de Cinotécnia.



Para o efeito, adquiriu três cachorros Pastor Alemão, para melhor entrosamento do seu curso aos quais pôs os nomes: Cadete e Punch (Machos) e Carhen (Fêmea).




O Cadete em pose.

Após a formação técnica recebida em Pretória, o capitão Costa Campos regressou a Moçambique, onde foi incumbido da instalação do Centro de Treino e Instrução de Cães de Guerra de Boane. A partir deste momento estava criado o 1º Centro de Cinotecnia do Exército Português. (**)

Regressado à Metrópole, foi mobilizado para comandar a CCAÇ 763 em Setembro de 1964, tendo aquela companhia como unidade mobilizadora o RI 1 na Amadora. Conhecedor da mais-valia que o Cão de Guerra, quando devidamente treinado, poderia dar às Forças Armadas, em patrulhas, guarda, sentinela, esclarecedores no terreno, ataque e combate, decidiu particularmente, e por conta própria, formar uma Secção de Cães com os três que já possuía e com a aquisição de mais cinco.

Porquê a escolha da raça Pastor Alemão?


Por reunir as melhores condições para o Cão de guerra, pelas razões que se descrevem:
- Aprende e pensa rapidamente;
- Tem o ouvido mais apurado do que qualquer outra raça;
- O seu faro é melhor que qualquer outra raça do mesmo tipo:
- É extraordinariamente ágil e rápido ;
- Come pouco em relação ao seu tamanho;
- O seu pêlo confere-lhe protecção contra o calor ou frio, picadas de insectos e mordeduras de outros animais;
- Demonstra elevado moral sobre desordeiros ;
- Domina com facilidade quem se lhe oponha.

Tendo consciência que este seu projecto implicaria custos não só na aquisição de animais como em todo o equipamento necessário (trelas, coleiras, açaimes, material de limpeza e cirúrgico/veterinário de Laboratório, para além de material de treino) e não dispondo de qualquer dotação para a alimentação e outros gastos, o capitão Costa Campos resolveu, mesmo assim, avançar com a formação da secção em várias etapas.

1ª. Fase:

Selecção do graduado que ficaria com a responsabilidade de administrar a formação e que ficaria como comandante da Secção. Havendo vários candidatos entre os Furs Mil fazendo parte dos quadros da Companhia, a escolha recaiu no Fur Mil Carlos Filipe pelo facto de ter o curso de Engº Técnico Agrário, reunindo portanto conhecimentos de veterinária através da Zootecnia.

2ª. Fase:

Formação dada ao comandante da secção através de fichas e práticas, utilizando para o efeito demonstrações com o Cadete, a Carhen e o Punch.
3ª. Fase:
Selecção dos tratadores, os quais deveriam possuir as seguintes qualidades: Ser amigo de cães, paciente, perseverante, inteligente, expedito e desembaraçado, imaginativo, com capacidade de coordenar física e mentalmente e dispor de boa resistência física.

A secção ficou com a seguinte formação:

Cadete - tratador 1º. Cabo Galaio
Punch - idem, 1º. Cabo Madeira
Carhen - idem, Soldado Ruiz
Fado - Idem, Sold Montijo
Bissau - Idem, 1º. Cabo Galvão
Dick - Idem, Sold Pernas
Lady - Idem, Sold Bordadágua
Guiné - Idem, Sold Galaio



Secção de cães da CCaç 763


4ª. Fase:
Treino dos cães em equipa já com os respectivos tratadores.
Treino de Obediência – com aprendizagem da voz do comando:

Neste período, o animal aprendeu a colocar-se junto ao tratador, a deitar-se, a pôr-se de pé, a ladrar, a estar quieto, a conduzir objectos, a rastejar, a progredir, a interromper a marcha, a executar acções de busca, a atacar, etc.

Físico – (obstáculos)
Treino Básico

Treino Específico – patrulha, guarda, sentinela, busca e pisteiro.


Exercícios físicos e de perseguição

Ultrapassadas que foram as dificuldades da viagem para a Guiné, dada a inexistência de condições no N/M Timor, para o seu transporte, a secção de cães voltou ao seu treino em Bissau no antigo BCAÇ 600, enquanto a CCAÇ 763 recebia todo o equipamento para partir para Cufar.

Acção Operacional

Algumas dificuldades surgiram, na actuação dos cães no teatro de guerra da Guiné, e que levaram a alterações na utilização do Cão de Guerra e que se especificam:

- A existência de abundantes bandos de macacos cães que pela sua extrema agressividade enfrentavam os cães com grande alvoroço e agitação, o que permitia a fácil detecção das nossas forças pelo IN;
- O aparecimento de várias infecções nas patas dos cães, que se verificou serem causadas pela existência de vasta vegetação arbórea constituída por espécies com espinhos.


Estes factos limitaram a utilização dos cães principalmente em operações, cuja natureza requeria a surpresa, nomeadamente em assaltos a acampamentos IN. A redução da utilização do cão Patrulha levou a que o treino e utilização fosse intensificado na utilização como cão Pisteiro e Sentinela.

Como cão Sentinela, a sua prestação foi extraordinária, dando a possibilidade de poupança de meios humanos, e melhor garantia de alerta pela grande capacidade de faro e audição. Foi de reconhecido mérito, a sua utilização, quando na pista de Cufar por qualquer motivo teria de pernoitar qualquer aeronave.



O Fado vigia a passagem de mulheres para a pesca no rio Manterunga.

Como cão Pisteiro, teve uma grande prestação, no controlo das populações, a Sul de Cufar, não só na detecção de material como de pessoas que, escondendo-se, tentavam fugir à vigilância das nossas tropas. Aqui pode referir-se a captura de guerrilheiros e controleiros do PAIGC.

Refira-se também a utilização do cão como guarda de prisioneiros.


Poder-se-iam narrar casos. Por exemplo, o Punch rastejar junto ao seu tratador numa emboscada, descobrir munições e pessoas escondidas em depósitos de arroz ou telhados de moranças etc.

Embora com os contratempos descritos e que impediram a utilização plena do Cão de Guerra, pode afirmar-se que foi uma experiência bastante positiva levada a efeito pela CCaç 763 o que permitiu ser conhecida na Região, para além dos Lassas, como a Companhia dos Cães.

Poderemos considerar que com estes valiosos animais a CCAÇ 763 contou com mais oito elementos de grande valia. Um testemunho, que os grupos armados do PAIGC que operavam no sector nessa altura, poderiam dar.

Foi-nos comunicado por testemunha idónea que, em 1999, trinta e quatro anos depois, ao passar por aquela Zona, ouviu referenciar a Companhia dos Cães.

__________

Notas de vb:

(*)  Mário Fitas foi Fur Mil Op Esp, da CCAÇ 763 (Cufar 1965/66). É autor dos dois romances sobre a guerra da Guiné: Putos, Gandulos e Guerra e Pami Na Dondo A Guerrilheira (este transcrito aqui no blogue).
ver artigos de

11 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2257: Convívios (34): CCAÇ 763 (Cufar 1965/67) (Mário Fitas)

(**) Ou Cinotécnica = Conjunto de técnicas para criação e treino de cães.


Guiné 63/74 - P2663: Tabanca Grande (58): Luís Guerreiro, ex-Fur Mil da CART 2410 e Pel Caç Nat 65 (Ganturé, 1968/70)



Luís Guerreiro, Ex-Fur Mil
CART 2410 e Pel Caç Nat 65
Ganturé, 1968/70





1. Em 25 de Fevereiro de 2008, Luís Guerra dirigia-se a Luís Graça nos seguintes termos.

Caro camarada Luis

Há umas semanas tive conhecimento do blog, aonde me fez relembrar tempos remotos, mas não esquecidos.

Sou Luís Guerreiro Ex-Fur Mil do 4.º GC da CART 2410 e mais tarde do Pel Caç Nat 65.

Desde 1971 resido em Montreal no Canadá.

Ontem li sobre o ataque da aviação a Sangonhá, cujo relato do José Rocha (1) é conforme ao que se passou nesse dia 6 de Janeiro de 1969.

Eu sofri esse ataque em Ganturé, pois era o meu Grupo de Combate que estava lá e era comandado pelo Alferes Jerónimo.

Estava ainda no meu quarto nessa manhã de 6 de Janeiro, quando o ataque começou por volta das 8 horas.

Corri e comecei a fazer fogo com o morteiro 81, passados uns minutos o ataque parou, deu-me tempo para ir tomar o pequeno almoço pois pensei que tudo tinha acabado.

Enganei-me, porque pouco depois o PAIGC começou a regular o tiro, com uma granada aos 5 minutos, até que começaram a cair com maior frequência.

E como era de dia, foi pedido o apoio aéreo, com os resultados já mencionados pelo José Rocha.

Uns dias depois e segundo informações do régulo de Ganturé o "Abibe", o PAIGC estava a fazer os preparativos para o ataque final durante a noite.

Junto envio algumas fotos de Ganturé, de Guileje também tenho, as quais enviarei em breve.

Um abraço
Luis Guerreiro


Foto 1> Carretéis de fio telefónico que encontrámos no percurso de Sangonhá depois do ataque


Foto 2> Ganturé> Vista parcial da povoação


Foto 3> Luís Guerreiro com o Alf Jerónimo e soldados Nativos


Foto 4> Ganturé> População de Ganturé numa visita do General Spínola


Foto 5> Ganturé> Construção de abrigo


Foto 6> Ganturé> Abrigo à entrada da povoação


Foto 7> Luís Guerreiro junto ao morteiro 81

2. Comentário de C.V.

Caro Luís Guerreiro

Estou a receber-te em nome do nosso camarada Luís Graça.

És mais um camarada na diáspora que se dirige a nós. É um enorme prazer para nós receber-te na nossa Tabanca Grande.

Instala-te confortavelmente, puxa das tuas fotos, inspira-te e conta-nos a tua experiência como combatente da Guiné.

Como saberás, cá dentro não há postos nem distinções sociais. Verdadeiros camaradas respeitam-se e tratam-se por tu.

Discutimos as nossas ideias e os nossos pontos de vista, quando diferentes das dos nossos interlocutores, mas dentro daquele espírito saudável.

O que lá vai, lá vai, diz o povo com razão. No presente repeitamos os nossos adversários de ontem e só queremos o bem daquela terra que nos marcou até ao fim dos nossos dias.

Em nome de todos os tertulianos da Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, deixo-te um abraço de boas vindas, com votos de muita saúde.

Ficamos à espera das tuas fotos e das tuas estórias.
Carlos Vinhal
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Nota dos editores:

(1) Vd. poste de 23 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2574: Estórias de Guileje (9): O massacre de Sangonhá, pela Força Aérea, em 6 de Janeiro de 1969 (José Rocha)