quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3491: O meu enquadramento sócio-político-financeiro, religioso e académico na Guerra do Ultramar (III). António Matos.



Nem em férias se deixava de pensar na Guerra

Ao tentar fazer uma retrospectiva que me permita classificar o período mais complicado daqueles dois anos passados na Guiné, julgo que não errarei se disser que foi aquele que sobreveio ao 2º período de férias que vim passar à Metrópole.

Foi, de facto, pungente, uma vez que o menino que tinha ido para a guerra se fizera rapidamente homem à custa de doses maciças de experiências traumatizantes e nunca antes imaginadas como fazendo parte do seu espólio de vida.

Assistir à morte a tiro de um camarada ou ao esquartejar dum corpo por via de um engenho bélico, provoca alterações comportamentais que não consigo descrever tal a sua bestialidade.
Endurece-nos a alma e o coração, e questiona-nos sobre o porquê da selvática obsessão que o homem tem em ferir e matar o semelhante por um prazer sórdido, não se confinando a meras questões de sobrevivência.
No reino animal não há outro que o faça, e isso é alarmante.
A guerra inicia o processo; a vida moderna dá-lhe continuidade !
Este é, definitivamente, assunto para ser dissecado por António Damásio nos seus estudos sobre o cérebro e as emoções humanas, deixando para nós a observação silenciosa das consequências incompreendidas.
E essas variam de acordo com a estrutura de cada um ; há os que conseguem regenerar os bons neurónios e há aqueles a quem a substituição dos fusíveis sensoriais não se tornou possível deixando-se cair na lascívia da loucura.

Vivia-se o período entre Abril 1972 e Setembro 1972.


Durante o período de férias, soltaram-se-me os meus monstros na perspectiva dum regresso para uma realidade já sobejamente conhecida e não desejada.
Os dias passados essencialmente em família já eram vividos em regime de countdown o que provocava uma tensão crescente mas que, curiosamente, fazia despertar o sentimento de solidariedade para com os camaradas que se mantinham no teatro das operações e isso fazia aumentar a adrenalina que nos impulsionava para a luta pela vida.

A despedida e o regresso à Guiné foram dificílimos, ainda que animado por se estar na recta final da comissão. Talvez por isso mesmo...

Foi um final para nervos de aço pelo cariz extremamente psicológico a que fomos submetidos.
Nos últimos dias, uma verdadeira acção de terrorismo desencadeada pelo IN, em Bula, destruiu o resto da moral que nos restava ao vermos as consequências da deflagração de uma armadilha na mesa dum café existente na terra, repleto de soldados que se desdobravam em despedidas de amigos feitos, e das namoradas dos últimos 2 anos, algumas das quais com filhos cuja assumpção de paternidade assustava alguns hipotéticos pais...

Foi com este espírito perturbado mas a gozar os primeiros laivos de liberdade que embarcámos no Boeing da Força Aérea para a derradeira experiência para muitos soldados que foi o baptismo de voo.
Quatro horas depois, com a Ponte 25 de Abril em cenário majestoso, não se conseguiram evitar lágrimas de uma alegria imensa, com um sentimento de missão cumprida e o desejo dum abraço amado que tardava, malgré tout.

Seguiram-se 36 anos de outras guerras mas onde os ensinamentos daquela dão azo a uma douta sabedoria que urge preservar.
Este meu texto pretende ser o fechar do ciclo do meu enquadramento pessoal naquele conflito.
Tentei transmitir, sem pretenciosismos, a maneira como o vivi e como dele me aproveitei como trampolim para uma vida que pretendi coerente, realista e feliz.
Se os vindouros quiserem e puderem lucrar alguma coisa com estas descrições, fico satisfeito.


António Matos

ex-Alf Mil da CCaç 2790

Bula 1970/72

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