terça-feira, 11 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3437: O meu enquadramento sócio-político-financeiro, religioso e académico na Guerra do Ultramar (I). António Matos.

Também fomos meninos.
Os nossos tempos antes da mobilização.




O menino que queria ser professor de ginática

Em 1961, altura das primeiras levas de soldados para o ultramar, eu vivia no Porto e frequentava o liceu Alexandre Herculano.
Fiz lá o meu 1º ano, o 2º e o primeiro período do 3º.
Não terminei lá esse 3º ano pois o meu Pai, secretário de finanças, fora transferido para Barcelos fixando residência na Póvoa de Varzim por força da existência do liceu.
Aí continuei até ao 5º ano...
Nova transferência e, de trouxas às costas, lá nos mudámos novamente, agora para Guimarães.
Não nos ficámos por aí, mas para efeito desta narrativa é já o suficiente.
Claro que o Porto não aparece de geração espontânea! Já vínhamos de Amarante, que antes tinha sido Esposende, e antes Tabuaço, e antes...já não me lembro.
Pois bem, situemo-nos no Porto, então.
Morávamos na Rua Pinto Bessa paredes-meias com Campanhã.
Dessa estação de caminho de ferro partiam comboios atolados de militares e várias vezes nos dirigíamos lá para os ver.
Pessoalmente não tinha noção do que aquilo se tratava embora soubesse que havia uma guerra.
Ainda nesses anos de Porto houve uma 1ª exposição fotográfica sobre os horrores dessa guerra onde eram mostrados corpos mutilados a golpes de catana e outras cenas macabras.
A ela não tive acesso, julgo que por ser criança.
Certo dia, lembro-me, ouvi uma conversa entre o meu saudoso Pai e um qualquer amigo, à soleira da porta, num dia de domingo de muito calor, em que o Pai dizia:.... do mal, o menos, pelo menos esta guerra não será para os nossos filhos pois são muitos novos...
Hoje, com a idade que tenho, sou amiudadas vezes assaltado pelo sentimento de pena pelo sofrimento que eles e todos os pais tiveram enquanto durou a expectativa dilacerante de ter os filhos numa guerra!
No nosso caso (havia-os bem piores) parecíamos os irmãos Ryan!!! Éramos 2 ao mesmo tempo a bater com os costados no ultramar; o mais velho em Angola e eu na Guiné. Enfim...
Naquela altura, no Porto, as minhas preocupações de criança eram outras.
Excelente nos estudos (mais tarde transformei-me em burro), tinha na componente desportiva, o meu objectivo final.
Inscrito na ginástica do Futebol Club do Porto (que me perdoem os tertulianos benfiquistas, sportinguistas e os outros, mas o FCP é uma nação, não é?) pertencia à classe pré-aplicada superiormente ministrada pelo Professor Puga.
A paixão por essa disciplina tem sido uma constante na minha vida ainda que por vicissitudes várias, não só a não tivesse continuado como, inclusivamente, ia "espreitando" outras modalidades às quais aderia de forma automática.
Daí que pratiquei muito judo, muito karaté, hóquei, ciclismo, natação, futebol e finalmente, quando o desporto sentado me seduziu, dediquei-me ao karting que ainda hoje pratico com afinco paralelamente a 1 hora diária de ginásio para não deixar entorpecer as pernas por completo.
Mas voltemos a recuar ao tempos de jovem...
Pertencia a uma família pequeno-burguesa tradicional, conservadora no paradigma mas muito liberal na prática onde a tradição ainda mandava que nos juntássemos todos ao mesmo tempo à mesa para as refeições (hoje não é bem assim, pois não?) e onde os luxos se resumiam às férias que passávamos sistematicamente no Algarve (a minha saudosíssima Mãe era de Silves) durante todo o verão e à mesa farta de que desfrutávamos com a habilidade nata que possuía.

Aliás, a vida de "saltimbancos" a que a profissão do Pai nos impunha, levava a que a Mãe se especializasse nas tradições gastronómicas das diversas regiões o que me apraz relembrar os célebres pratos de domingo os quais, ao longo dos tempos foram mudando mas que eram as Tripas à Moda do Porto, os Arroz de Cabidela, os Rojões, a Lampreia à Bordalesa, o Cozinho à Portuguesa, etc., etc., etc.
Sinal dos tempos, hoje, ficamo-nos pelo chá e torradas para não irmos demasiado pesados para a cama...
Éramos uma família católica praticante.
Missa todos os domingos, comunhão assídua, preceitos religiosos do conhecimento de todos.
O conceito de solidariedade, recordo, estava muito enraizado nos nossos pais. A visita a hospitais e a amigos que estivessem doentes era uma constante.
Politicamente, não éramos entendidos e talvez por isso não sentíssemos a sua necessidade.
Tínhamos outras preocupações. Naquela altura eram os estudos e o facto de eu pertencer sistematicamente ao Quadro de Honra (um belo incentivo da época) levava-me a encará-los à séria.
Perante bons resultados, íamos passear até à estação dos comboios! Fantástico!
Não tínhamos carro nem viríamos a ter tão cedo!
Os avós paternos, em Vila Real, levavam-nos a Trás-os-Montes com grande assiduidade e essas viagens eram memoráveis!
Regra geral eram feitas de camioneta e as célebres curvas do Marão faziam-nos passar aquelas 2 ou 3 horas de viagem em constantes vomitadelas que quando chegávamos, parecíamos paus de virar tripas!
Eram tempo em que ainda se tomavam purgas! Era famosa a de óleo de rícino!!! BAAAHHHH!!!!!
E os estudos continuavam...
Por razões várias, o entusiasmo dos primeiros tempos ia-se esfumando e o prazer das récitas criavam em mim um fascínio extraordinário.
Foi uma altura em que repensei os meus objectivos pois a atracção pelo teatro era evidente.
Não o quis o destino (destino? o que é isso?) e, contra todas as expectativas daquele Pai que uns dias antes respirava fundo porque aquela guerra não era para os seus filhos, via-se agora privado da presença de dois deles.

É nesta realidade muito pouco ou nada ficcionada que me dou conta que também estou num sítio onde tenho prioritariamente que defender o corpo e ajudar todos aqueles que me foram confiados a fazê-lo também.
Vejo-me na necessidade de entrar na verdadeira intimidade com alguns deles que, fruto do seu analfabetismo, me pediam para lhes escrever os aerogramas para as namoradas e depois ler as respostas....
Vejo-me na necessidade de acalentar os sonhos de todos aqueles (eu levei uma Companhia de Açorianos) que só pensavam em acabar a tropa para irem para o Canadá e pr'América...
Vejo-me na necessidade de fazer o papel do forte para não decepcionar o soldado que via no alferes a salvação da pátria....
Vejo-me na necessidade de aceitar a candidatura dum soldado a guarda-costas do alferes porque isso era importante para ele...
Vejo-me na necessidade de chorar como os outros....
De rir, apesar de tudo......
De perceber o meu papel naquela guerra, e que me desculpem os puristas, mas nunca o percebi!
Nunca tive a ideia de que estava a defender uma pátria!
Tive, isso sim, a ideia, persistente, de que à primeira distracção me enfiavam um tiro entre os olhos!
Tinha, por isso mesmo, a fé inabalável de que não o iriam conseguir e que tudo faria para inverter a situação!
Vejo-me, porém, corroído por dentro com a questão das minas!
Achava aquilo desumano e estúpido mas não era motivado por sentimentos de objector de consciência o que me levava a encarneirar como os outros....
Vi o "Nino" Vieira a passar-me nas barbas e a impotência pela falta de poder de fogo a falar mais alto!!!!!
Vi um futuro homem do 25 de Abril a entrar triunfante em Bula a toques de buzina de pópó, pópópó porque trazia um indígena (guerrilheiro?) sem uma perna!!!!!!!
PORRA! Vi demais para ficar com um ódio imenso à realidade bélica e tentar não pensar muito naqueles tempos.

Considero, no entanto, muito útil que venhamos aqui fazer os nossos relatos (ainda que acordemos alguns monstros que nos torturaram) para que um dia não apareça um caramelo que desvalorize tudo isto à semelhança daqueles que negam a existência do holocausto....

Já chega por hoje.

António Matos

ex-Alf Mil CCAÇ 2790

Bula, 1970/72
__________

Notas
:

1. Sublinhados e títulos do editor

2. Artigos do Autor em

3 comentários:

Anónimo disse...

Camarada Matos
É bom haver um blogue amigo para desabafarmos quando nos dá na alma, sem que nos censurem. Os "puristas" que há nesta Tertúlia compreenderão este extravasar de sentimentos, daqueles que nunca perceberam o seu papel naquele palco - nos quais me incluo com a agravante de lá estar mais velho e com maoires responsabilidades morais -,como eu os compreendo a eles.
"Ainda que acordemos alguns monstros que nos torturam" como dizes e é bem verdade, porque já senti isso depois que aderi à Tertúlia quando já me julgava imune,não devemos parar para, como bem dizes, quando já não restar uma voz viva dessa epopeia, não neguem o que aconteceu,mas também porque ao mesmo tempo serve de terapia.
Um apoiado e um Abraço do camarada
Jorge Picado

Anónimo disse...

Camarada Matos

Obrigado por teres tomado esta iniciativa. Já tinha pensado nisto, mas ainda tenho que acabar e enviar um escrito sobre as minhas escolas de Aldeia Formosa e Nhala.
Mas vou participar porque acho que é importante conhecer, divulgar e discutir, quem eram os jovens que "fizeram" esta guerra.
Que preparação política e social? Que sentimentos? Que exemplos recebiam dos "Quadros"?

É preciso fazer a história, mesmo que para isso sejam necessárias muitas estórias...

Tal como diz o Camarada Jorge Picado, não tenhamos medo de acordar os monstros e falar com eles, olhos nos olhos...

Um Abraço

Manuel Amaro
Fur. Mil. Enf.º
CCaç 2615

Anónimo disse...

Para além do interessante texto, chamou-me a atenção a referência a uma companhia de açorianos. Como no Blog já foram referidas outras (por ex. a do Vitor Junqueira), fiz uma busca rápida ao trabalho do nosso pesquisador-mor José Martins e verifiquei que pela Guiné passaram 25 companhias de açorianos, havendo ainda a contar com as rendições individuais, como no meu caso.
Fico com a sensação que, atendendo à população dos Açores, haveria alguma tendência em mandar os açorianos para a Guiné. Será que eram considerados “carne p’ra canhão”?!!!
Abraço Henrique Matos