segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3310: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (13): Encontro em Bissau: o nosso homem de Missirá...

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça... e o seu periquito de estimação.

Foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.

Texto enviado em 19 de Setembro de 2007, pelo Torcato Mendonça , Fundão. Faz parte de um lote de escritos, a que ele deu o nome de Estórias do José, o seu alter ego. Por razões de conveniência editorial, parte destas estórias estão a ser publicadas sob a série Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1). Esta corresponde à nº 9 (Encontro com o homem de Missirá), das Estórias de José...

O Torcato Mendonça, juntamente com o Carlos Marques dos Santos, tem sido um dos incansáveis construtores do campo fortificado de Mansambo a alimentar o nosso blogue... Um especial Alfa Bravo para os dois: O Torcato, ou o José - já não sei muito bem - entrou na nossa Tabanca Grande pela mão do Carlos, tertuliano da primeira hora... Um e outro precisam agora de mais cuidados com a saúde. Alegra-me saber que os nossos dois amigos e camaradas estão bem e recomendam-se!...

2. Estórias de Mansambo > Encontro, em Bissau, com o homem de Missirá

por Torcato Mendonça Fim de Julho ou já início de Agosto [de 1968], eu e o Capitão Miliciano Vaz, do Xime (2), sentados a uma mesa do bar de Sta. Luzia, em Bissau, bebíamos algo matando a sede e desgastando, o mais possível, a passagem do tempo.

Íamos, dentro de breves dias, de férias.

Conversa trivial que não recordo. Talvez sobre fotografia. O Cap Vaz era excelente fotógrafo. Tive ocasião de o constatar quando a minha Companhia recebeu, da dele, o treino operacional. Fizemos várias operações juntos. De guerra não falávamos certamente, pois dessa, aos poucos, nos íamos tentando libertar.

Acalmávamos, assim, a ansiedade da partida próxima para a Metrópole. Se nessa altura soubéssemos as virtudes da água pú… De repente, aparece junto de nós um Alferes. Alto, aparência de recém-chegado à Guiné, cara de pouca barba, olhar por detrás de óculos de intelectual da época.

Disparou a pergunta, após o cumprimento:
- Estão na zona de Bambadinca?
- Estamos - respondeu o Capitão Vaz, convidando-o a sentar-se.

A conversa não foi longa. Ele ia para Bambadinca e queria informações. Gracejando, demos as informações possíveis. Ele agradeceu, despediu-se e saiu.

Olhamos um para o outro e nada dissemos. Volteamos os copos, pensando certamente nas nossas gentes lá no mato.

Quanto ao Alferes periquito, pareceu-me mais homem de secretária do que de combate.

Olhei para o Capitão e disse:
- Para onde irá? Creio que o Alferes do Pel Caç de Missirá/Finete acabou a comissão. Talvez o vá substituir. Está lá o Zacarias Saiegh.

Bom combatente, excelente condutor de homens, este guineense com sangue libanês era um Furriel Miliciano, nosso conhecido. Falei com ele várias vezes e fizemos operações juntos. Recordo uma na zona do Enxalé. Operação Gavião, juntamente com a 2338 e o Pel Caç Nat 53. Tratou-se da destruição Sinchã Camisa, Madina e Belel. As nossas tropas sofreram um morto, Tura Baldé, picador no Xime. O IN sofreu vários mortos confirmados. O pior, além das várias flagelações sofridas, foi os ataques de abelhas.
- Baguera, baguera!!! - era o grito a avisar a vinda dos terríveis insectos.

Com tecto baixo, não podia haver evacuações. Alguns militares estavam em perigo por alergia às picadas. Felizmente uma coluna auto, vinda do Enxalé, esperou-nos na zona de São Belchior. Assim foram transportados os feridos e os mais debilitados. Mais uma vez, no decurso desta operação, constatei a maneira de comandar e combater do Saiegh. Excelente (*).

Voltando a Bissau:

Passaram depressa os poucos dias e embarcámos para a Metrópole. Mais depressa me pareceram passar os dias de férias. A Bissau regressei e rapidamente fui para o mato.

Voltei a ver o tal Alferes. Estava em Missirá. Porte altivo, passada longa, meia verde por cima da calça camuflada, aspecto decidido. Não parecia o homem que encontrara em Bissau.

Falámos algumas vezes e fizemos operações juntos. Bom combatente, determinado a comandar os velhos militares do 52.

As aparências iludem.

Quase quarenta anos depois, volto a dele ouvir falar. Hoje, leio, e releio, o que ele escreve sobre a sua guerra e as leituras de então. Soube, agora, ter sido conhecido como Tigre de Missirá (3)...Oh Beja Santos, quem tal alcunha te deu lia Sandokan ou foi homenagem ao teu espírito e acção combativos? Os Espíritos do Cuor te protejam.

A minha Companhia acabou, tempos antes da chegada do Beja Santos a Missirá, com as idas ao Mato Cão e à margem direita da Geba. Concentrámo-nos mais com a intervenção e construção de Mansambo.

Sobre a margem esquerda, as populações do Nhabijões sempre jogaram com um pau de dois bicos, naquele tempo... Sabia-se e, se dúvidas hoje houverem, pergunte-se aos que ainda estão vivos. Será assunto a merecer outro tratamento. Claro que cambavam o rio e estavam bem informados.

Grande parte dos carregadores, da minha Companhia, na [Op] Lança Afiada (4) era balanta, dos Nhabijões. Contratados de propósito. Os Fulas não queriam. Mas eles foram. Caímos na primeira emboscada e ei-los, sem ordem de ninguém, a colocarem-se junto das armas cujas munições carregavam. Outros apontavam para certos locais… Bom treino recebido... das NT, não claro!

Relembro, tempos antes, uma ida minha lá. O velho chefe de aldeamento respondeu sempre em balanta, por dignidade, às questões por mim colocadas. Numa, se bem me lembro, dizia-me o intérprete:
- Ele diz : 'Se vem homem do mato e ele não deixa levar mantimentos ou avisa tropa, leva… Se tropa sabe, 'leva' também... Que fazias tu?
- Eu ? ...Bem...eu...

Eu parti cigarro com ele e…
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(*) Nota do autor – O Zacarias Saiegh regressou a Bissau e continuou como militar. Mais tarde ingressou na 1ª Companhia de Comandos Africanos.

Era Capitão Comando do Exército Português, quando a Guiné se tornou independente. Acabou por ser fuzilado. A minha singela, mas sentida, homenagem a um Grande Combatente (5)
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Notas de L.G.:

(1) Vd. estórias já publicadas:

14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1929: Estórias de Mansambo (6): Matilde

17 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2055: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (7): Eleições à vista...

21 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2122: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (8): Marcha, olha para mim, com ódio, peito erguido, cabeça levantada...

28 de Setembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2139: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Amigos mais velhos

15 de Dezembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2353: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (10): Devolvam o bode ao dono... e às cabras de Fá Mandinga, terra de Cabrais

12 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2527: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (11): Na Bor, Rio Geba abaixo, com o Alferes Carvalho num caixão de pinho...

18 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2960: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (12): Eu, virgem, me confesso

(2) Cap Vaz, comandante da CART 1746 (1967/69) que será substituída, como unidade de quadrícula do Xime, pela CART 2520 (1969/1970), contemporânea da minha CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71).

Há tempos o Humberto Reis fez-me vir à memória a imagem desses velhinhos da CART 1746 que lá estavam lá, no cais do Xime, com um grande lençol branco onde estava escrito: "O que custa mais são os primeiros 21 meses"... Justamente quando nós - CCAÇ 12 e outros periquitos desembarcámos da LDG, na manhã de 2 de Junho de 1969)... Na mesma LDG, vinha a CART 2520 que veio substituir a CART 1746... (Gilberto Madaíl, uma conhecida figura pública ligada ao mundo do futebol, foi alferes milicianos nesta unidade).

(3) Sobre o Tigre de Missirá, vd. postes de:

26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P911: Uma mina para o 'tigre de Missirá' (Luís Graça)

15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1076: O álbum das glórias (Beja Santos) (4): eu e o coronel Cunha Ribeiro, o nosso 'major eléctrico'

9 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1161: O nosso Major Eléctrico, 2º comandante do BCAÇ 2852 (Beja Santos)

28 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2138: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (3): Op Pato Rufia (Xime, Setembro de 1969)

(...) O actual Coronel na reforma Ângelo Augusto da Cunha Ribeiro, que foi segundo comandante do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), a partir de Setembro de 1969, altura em que substitui o major Viriato Amílcar Pires da Silva, transferido por motivos disciplinares, era um homem muito energético, hiperactivo, falador, conhecido, entre as NT, como o Major Eléctrico... Foi ele que deu o nome de guerra, Tigre de Missirá, ao Beja Santos (...).

(4) Total dos efectivos empregues (n=1291) na Op Lança Afiada, que decorreu durante 10 dias: a) Militares: 36 oficiais; 71 sargentos; 699 praças; b) Milícias: 106; c) Guias e carregadores 379. Comandante: Coronel Hélio Felgas.

Vd postes de:

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

(5) Sobre o malogrado Zacarias Saiegh:

Zacarias Saiegh, ex-Fur Mil do Pel Caç Nat 52, ainda no tempo do Beja Santos, e depois Alferes, Tenente e Capitão da 1ª Companhia de Comandos Africanos. Participou no 25 de Abril de 1974. Mas foi posteriormente executado, no seu país, em Portogole, a 18 Dezembro de 1978, quatro anos depois da independência, segundo informações recolhidas no livro Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de Manuel Amaro Bernardo, Ed. Prefácio, 2007.

De origem sírio-libanesa, já foi aqui evocado várias vezes, nomeadamente pelo Mário Beja Santos que com ele privou, em Missirá, a par do Torcato Mendonça, entre outros:

Vd. posts de:15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIII: O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o (Torcato Mendonça

(...) O Zacarias Saiegh [da 1ª Companhia de Comandos Africanos] foi meu amigo. Era um homem extraordinário, ele e outros que foram meus camaradas e foram fuzilados. Nunca os esqueço e não sei perdoar (...).

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852

(...) Segundo informação do Beja Santos, o Pel Caç Nat 52 esteve um ano sem alferes, sendo comandado por Zacarias Saiegh, então furriel miliciano, que mais tarde ingressou na 1ª Companhia de Comandos Africanos, aonde chegou ao posto de capitão. Comandou esta lendária companhia, depois da morte em combate do Capitão João Bacar Jaló, tendo sido fuzilado pelo PAIGC após a independência: vd post de 23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

19 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1038: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (6): Entre o Geba e o Oio, falando do Saiegh e dos meus livros

(...) Saiegh na véspera, depois do jantar, dera-me um sinal de cortesia levando-se ao seu abrigo para bebermos um uísque. Olhando à volta do seu ambiente privado, vi frascos que me lembraram aqueles que se encontram nos laboratórios de biologia. Vendo-me intrigado, sopesando as palavras mas atirando-as a frio, esclareceu-me:
- São restos dos meus despojos. Aproveito sobretudo orelhas.

Aclarei a voz e fui cortante:
- Saiegh, ainda nada sei desta guerra, mas asseguro-lhe que a partir de hoje não haverá despojos humanos, nem relíquias nem troféus. Não trago ódios nem os vou despertar. Recordo-lhe que esta disposição é irrevogável.

Os olhos de Saiegh cuspiram fogo, mas ele conteve a dimensão da chama. Com o tempo, virei a saber que este descendente de sírio-libaneses também se movia por razões raciais, independentemente dos seus interesses económicos têm sido profundamente afectados pela luta de guerrilhas. O nosso conflito estava armado, mas passados estes anos todos reconheço que ele me deu uma colaboração exemplar, apagando-se progressivamente do mando e da decisão militar. Irei chorar amargamente no dia em que soube do seu fuzilamento (...).


16 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1081: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (11): Matar ou morrer, Saiegh ?

(...) Em meados do mês de Agosto, regressávamos do abastecimento em Bambadinca quando o Saiegh me mostrou triunfante, enquanto esperávamos a piroga, as insígnias em plástico que ele concebera para o Pel Caç Nat 52: era uma coisa assim apiratada com caveira e tíbias, um verde fluorescente e a frase "Matar ou Morrer". O meu olhar gelou e o Saiegh não resistiu a dizer-me: - Já vi que não gosta. Será por a iniciativa ser minha? (...).

30 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2317: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (11): O fantasma de Infali Soncó

(...) O encontro com o Saiegh é muito agradável, tão agradável que vamos a pé pela estrada de Santa Luzia, onde nos despedimos prometendo eu uma visita a Fá, dentro de semanas. Tal nunca veio a acontecer, estou a despedir-me do Saiegh pela última vez, guardo o seu sorriso e a sinceridade da sua estima, tudo me vem à lembrança no dia em que soube do seu fuzilamento, oito anos depois (...)..

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