terça-feira, 14 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3316: O meu baptismo de fogo (9): Missirá, Cuor, 6 de Setembro de 1968 (Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, )1968/70), enviada em 10 de Outubro de 2008, como colaboração para a série O meu baptismo de fogo (*):

Carlos Vinhal, Camarada e amigo,

Correspondendo ao teu amável pedido, aqui tens a minha versão corrigida e aumentada à volta do baptismo de fogo que experimentei pelas 2,30h da madrugada de 6 de Setembro de 1968. Recordo-te que tens aí fotografias do Pel Caç Nat 52, tiradas em 1966 (talvez as primeiras fotografias do nosso pelotão), material referente ao Padre Marcelino Marques de Barros e também a recensão de um livro do Comandante Teixeira da Mota. Recebe um abraço do Mário.


2. O meu baptismo de fogo em Missirá
por Mário Beja Santos

Sobre o assunto, já escrevi alguma coisa no blogue (**) e vem uma referência no livro Dário da Guiné 1968-1969, Na Terra dos Soncó, páginas 62 a 65, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2008.

Vamos aos factos. Chegado a Missirá em 4 de Agosto, procurei conhecer o meio envolvente e cumprir escrupulosamente a nossa mais importante tarefa: montar diariamente segurança às embarcações no Geba Estreito, a qualquer hora (o mesmo é dizer em conformidade com as marés).

Quanto ao primeiro objectivo, o mês de Agosto pautou-se por vários patrulhamentos tanto à volta do Geba como na aproximação do Rio Gambiel, já junto da área de influência do PAIGC, sempre à procura de sinais da sua presença, fomos inclusivamente patrulhar e detectar zonas de cambança. Certamente que estas informações foram transferidas para Madina no mercado de Bambadinca, onde igualmente se soube que passara a ser praticamente impossível emboscarmos a caminho ou no regresso de Mato de Cão, tínhamos elaborado mais de uma dúzia de itinerários diferentes. Havia, pois, toda a conveniência em eu ser rapidamente intimidado com um flagelação eloquente. Eu estava à espera. Contudo, fomos todos apanhados de surpresa, como se impunha.

Foi um fogo intimidador, com canhão sem recuo, morteiros, bazucas e armas automáticas. O grupo flagelador concentrou-se em frente à porta de armas e alvejou selectivamente. Teve sorte, arderam logo duas moranças, os primeiros minutos estiveram praticamente por conta do grupo que veio de Madina.

Eu estava a ler As Sandálias do Pescador, um best seller de Moris West, para a altura uma novidade, era um Papa que vinha da Rússia e que no final transformava a vida da Igreja Católica. O primeiro rebentamento danificou a casa do meu vizinho, o Padre Lânsana Soncó, o almani de Missirá. Depois, estalejaram as costureirinhas e ouvi uma morteirada ao longe. Cheio de pudor, vesti o casaco de pijama e fui para um abrigo onde o Padre Lânsana desfazia os cibes em vez de foguear para fora...

As lembranças mais fortes que ficaram destes primeiros minutos foram a neblina de pólvora e a visão de um ataque em meia-lua que permitiu, naquela noite escura, referenciar as posições do grupo de Madina e reagir à altura. Recordo também a condução firme de Saiegh, ele foi a alma da resposta, era indubitavelmente um grande militar.

Perdemos 3 moranças e tivemos um ferido grave que se transformou em ligeiro: o soldado milícia Mamadu Djau, um gigante de mais de 1,90 m meteu um tiro no pé, recusou ser evacuado e, por mais inacreditável que pareça, recuperou-se na enfermaria de Bambadinca. Ficámos todos a conversar até ao amanhecer, quando se fez a patrulha de reconhecimento, que não trouxe grandes novidades a não ser a identificação do armamento dos flageladores.

Como sempre acontece nestes momentos, retemos para toda a vida pormenores insignificantes: uma camisa pendurada numa porta que ficou reduzida a um passador; o ar embaraçado de Cherno Suane que andou uma boa meia hora a esgravatar no solo o prato de morteiro que se afundou com o coice do tiro na terra amolecida...

A flagelação não nos intimidou, voltámos no dia seguinte a Mato de Cão, os patrulhamentos recomeçaram, sem nenhum abatimento. Saboreamos vitórias e derrotas, nós e os de Madina estávamos ali para durar.

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Notas de CV:

(*) Vd. último poste da série: 13 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3305: O meu baptismo de fogo (8): Mansoa, 1 de Abril de 1971 (Germano Santos)

(*ª) Vd. poste de 11 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1165: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (16): O meu baptismo de fogo

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