sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3290: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (47): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6)...


Texto de Mário Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.




Operação Macaréu à vista

Episódio XLVII

CARTAS DE UM MILITAR DE ALÉM-MAR EM ÁFRICA PARA AQUÉM EM PORTUGAL (6) E OUTRAS PARAGENS EM ÁFRICA
Beja Santos

Para Ruy Cinatti


Ruy, Dear Father,

Primeiro, as boas notícias. Aproxima-se o termo da minha comissão, chegou há dias o meu substituto, em conversa com os comandos assentou-se que haverá um período de sobreposição que não excederá os quinze dias de modo a que ele fique a conhecer as nossas missões de intervenção em todo o sector. É provável que no fim de Agosto eu esteja em Lisboa. Até lá, durante esse período de transição, acompanharei o Nelson Wahnon Reis (é assim que ele se chama, é de trato afável, brando embora pouco comunicativo, a questão grave é que é cabo-verdiano, o que pode vir a ser uma incompatibilidade com soldados fulas e mandingas) a Enxalé, Xime, Mansambo e Xitole, faremos patrulhamentos e emboscadas, colunas de reabastecimento, não quero sair daqui deixando-o às aranhas, que foi na verdade a situação que eu vivi quando cheguei a Missirá, não sabia o que era material à carga e quais as minhas responsabilidades para fazer as folhas de pagamentos, por exemplo. Já estou a fazer projectos para os meus estudos, acabo de saber que a Cristina alugou uma casa de três divisões na Av. Brasil, penso rescindir o meu contrato com os serviços mecanográficos e fazer um contrato até cinco anos com o Exército, V. não ignora que há cada vez manos efectivos na população jovem, o Exército procura manter nas suas fileiras oficiais milicianos que supram inúmeras carências, dando-lhes facilidades para estudarem, que é o que verdadeiramente me interessa. Bem gostaria de ouvir a sua opinião, estou certo que me apoia neste meu desejo de voltar a estudar e cumprir os meus sonhos.

A má notícia já a sabe, mas eu vivi-a de perto. No passado dia 24, fomos avisados que iríamos montar segurança a um grupo de deputados que vinham visitar os reordenamentos dos Nhabijões e do Bambadincazinho, na manhã seguinte. Antes deles chegarem parti para os Nhabijões onde os recebi. Foi uma boa surpresa reencontrar o Dr. José Pedro Pinto Leite que conhecera num lançamento na Moraes, salvo erro em companhia do Prof. Miller Guerra, bem como numa conferência promovida pela JUC. Após a visita, ele e os outros deputados vieram até à messe de Bambadinca, estávamos a meio da tarde, formaram-se grupos, o Pinto Leite pediu-me discretamente para conversarmos em particular, cá fora. Saímos para junto de uma das portas de armas, com um copo na mão, ele queria saber o tipo de guerra em que estávamos envolvidos, a natureza das dificuldades que vivíamos, os apoios da guerrilha, etc. Inicialmente eu estava muito constrangido, são assuntos com que nunca falamos com os civis e muito menos com deputados. Ele pôs-me à vontade, queria só que eu fosse sincero. Com toda a naturalidade, então, falei-lhe como vivera no Cuor, o tipo de guerra que ali fazíamos e agora em Bambadinca. Escolhi o exemplo do Xime, uma povoação e um porto doravante fundamental para o abastecimento do Leste, que vai ter uma estrada alcatroada até Bambadinca, mas onde os guerrilheiros se movem sem grande embaraço a cerca de 4 km de distância. Ele perguntou-me como é que os guerrilheiros aguentavam tantas dificuldades. Creio que lhe terei dito que sempre viveram nas maiores dificuldades e se não se entregam é porque acreditam no que fazem. Disse-lhe igualmente que sentia cada vez mais dificuldades no campo militar e que as populações estavam forçadas ao jogo duplo. Ele tudo ouviu, de vez em quando pedia esclarecimentos, e regressámos à messe. Antes de entrar, ele observou: “A Guiné actual já não tem solução militar. Por favor guarde para si, o próprio governador gostaria de chegar a um acordo com Amílcar Cabral. Em Lisboa, espero poder dizer frontalmente tudo ao Presidente do Conselho. Tem que se chegar à paz”. Despedimo-nos pouco depois no aeródromo, prometi-lhe visitá-lo logo que chegasse a Lisboa. A 28, soubemos que na véspera um tornado precipitara o helicóptero em que ele ia com outros dois deputados, no rio Mansoa. Pode imaginar a minha mágoa, o mais grave é a perda para o país com o desaparecimento deste político tão promissor, gostei sempre muito da acutilância e a oportunidade das suas propostas. Imagino a consternação que V. sente, sei que também o apreciava muito. Por favor, não escreva mais para o meu SPM, prefiro ter a surpresa de encontrar uma carta sua na minha nova morada, que junto. Receba um grande abraço deste seu amigo que tanto lhe deve e que está ansioso por tocar à campainha da Travessa da Palmeira. Até muito em breve.


José Pedro Pinto Leite era um dos deputados da Ala Liberal, eleito para a Assembleia Nacional em 26 de Outubro de 1969, ao lado de Sá Carneiro, Pinto Balsemão, Magalhães Mota e Miller Guerra. Torna-se num político prestigiado pela defesa de causas, desassombro de posições, o que lhe custa amargos de boca, tendo sido lançado contra ele a calúnia que servia interesses estrangeiros, que o levou a vir a público defender a sua honra. Visitou Bambadinca 2 dias antes de falecer num acidente aéreo.

Para Comandante Avelino Teixeira da Mora, em Luanda

Sr. Comandante e meu querido amigo,

É para lhe comunicar em primeiro lugar que estou prestes a partir para Bissau e penso que me metam no primeiro barco com destino a Lisboa. Escrevi hoje ao Ruy Cinatti e referi-lhe a conversa que tive com o deputado José Pedro Pinto Leite que veio aqui visitar dois reordenamentos e insistiu em saber, em privado, a minha opinião sobre a evolução da guerra. Ele estava informado sobre o uso de armamento moderno por parte do PAIGC, sobretudo os foguetões e o uso de morteiros muito eficientes. Senti que ele estava muito preocupado e revelou-me ter acesso directo ao Presidente do Conselho, com que iria falar logo que regressasse a Lisboa.

Os meus cadernos enchem-se de notas, tudo aquilo que aqui escrevo é seguramente do seu inteiro conhecimento, sei que um dia me vai ajudar a interpretar correctamente o que para mim ainda é obscuro ou ajudar-me a colmatar as lacunas. Não sei exactamente para que é que estes cadernos vão servir, agora só me interessa vê-los preenchidos com coisas que me enchem a alma. Sim, há figuras que me empolgam ou me intrigam. No primeiro caso está Mamadu Sissé, régulo mandinga e tenente de segunda linha que esteve na Exposição Colonial do Porto, em 1934, e no segundo caso temos Abdul Indjai ou Infali Soncó. Creio que já lhe disse que encontrei uma fotografia de Mamadu Sissé exactamente no catálogo da referida exposição. Não percebi porque é que ele foi condecorado pelo Alcaide de Vigo, talvez tenha sido uma boa vontade da Galiza com um guerreiro guineense que dedicou uma boa parte da sua vida a lutar ao lado dos portugueses na chamada pacificação das primeiras duas décadas deste século. Li que ele lutou contra a rebelião felupe, esteve na campanha do Oio contra os régulos Boncó Sanhá e Infali Soncó, e contra os papéis de Bissau. Também de acordo com os dados que recolhi, em 1913 bateu-se contra os balantas de Mansoa e os mandingas do Oio, creio que ao serviço de Teixeira Pinto. Em 1914, terá tido um comportamento valoroso na revolta dos manjacos e dos balantas. Nos anos seguintes, entre 1915 e 1917, aparece a combater novamente os papéis de Bissau e depois os Bijagós. Espero que em Lisboa me faculte mais elementos sobre este régulo que, tudo leva a crer, foi uma peça essencial para consagrar o domínio português na Guiné.

São penteados soberbos. Estas imagens foram publicadas na revista «Mundo Português», 1936, era director Augusto Cunha, editada conjuntamente pela Agência Geral das Colónias e pelo Secretariado da Propaganda Nacional.

Sei muito bem que em Luanda não me pode ajudar no esclarecimento das minhas dúvidas, mas gostava de saber como é que no final do século XIX se procurou pôr uma boa parte da economia da Guiné nas mãos dos condes de Buttler, investidores franceses. Uma professora aqui de Bambadinca emprestou-me um livro intitulado “Guiné Portuguesa, estudo elementar de geografia física, económica e política”, de autoria do capitão de mar e guerra Ernesto Vasconcellos. Foi aqui que eu encontrei referência aos condes de Buttler. Passo a citar: “O nosso domínio na Guiné efectuava-se por nódulos, isto é, não tínhamos uma divisão territorial contínua; existiam por assim dizer isolados uns dos outros os centros de ocupação a que vulgarmente se chamavam presídios e só depois de se dar unidade ao governo da Guiné é que se iniciou, mas em pequena escala, o alargamento da nossa acção, por meio de contratos de cessão territorial com os diversos régulos”. E mais adiante: “Na metrópole causava viva impressão o estado constante de rebelião em que se encontravam as três raças mais fortes e adiantadas da Guiné, fulas, mandingas e beafadas e António Enes, gerindo a pasta da marinha e ultramar, em 1891, pensou que a melhor maneira de libertar a metrópole de tantos cuidados com a Guiné, era entregar a colónia a uma grande companhia de colonização, e por isso, fez em Janeiro de 1891 concessão dos seus baldios aos condes de Buttler, que deviam formar uma companhia com o capital de 900 contos de réis. Os condes de Buttler eram franceses e seria sem dúvida em França onde encontrariam o capital para a sua exploração que, felizmente para o país, não chegou a efectuar-se”. Gostaria muito de perceber o que se passou e em que desespero nos encontrávamos para se ter optado por uma solução tão arredia aos interesses portugueses.

Esta imagem veio publicada num número de 1971 do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. O que há de macabro é tínhamos abandonado esta região em 1969, foi exactamente aqui que se deu o horrível sinistro que levou à morte 47 dos nossos militares durante a travessia de uma jangada preparada para a operação da evacuação de Madina de Boé. Dizem que é um ponto de indizível beleza, com mata luxuriante.

Continuo sem saber se já encontrou o meu primo José Augusto Gândara de Oliveira que está tão entusiasmado em conhecê-lo. Pela sua última carta percebi que a extensão de Angola e o bulício de Luanda o intimidam e prefere levar uma vida retirada, entregue aos seus estudos. Penso também que já espera passar o Natal na companhia de sua mãe. Será uma grande alegria estar consigo logo que regresse. Despeço-me, agradecendo-lhe tudo o que fez por mim, a companhia, os conselhos, as informações, os livros. Não pode imaginar como tem sido importante a sua amizade em todas estas circunstâncias, como me ajudou a vencer a solidão e a ignorância. Até Lisboa.

Para Ângela Carlota Gonçalves Beja

Minha querida Mãezinha,

Tal como lhe escrevi anteontem, confirmo que dentro de dias partirei para Bissau. Não irei de avião, parece que haverá um barco em meados de Agosto, logo que tenha informações precisas comunico-lhe. Chegou o meu substituto, parece-me um homem moralmente bem preparado, mas estou preocupado pois ele é cabo-verdiano e temo que surjam conflitos independentemente da tolerância e da cultura. Só muito tarde é que despertei para esta realidade que muita gente finge não ver ou talvez queira iludir. Os problemas raciais são dinamite, começo agora a estudar e a procurar perceber este litígio entre cabo-verdianos e guineenses.

Tomei a decisão de mudar de profissão, o meu objectivo é concluir rapidamente o meu curso. Por essa razão, estou a informar-me sobre as possibilidades de um contrato que poderei estabelecer com o Exército, terei que dar recrutas em Mafra e depois terei condições para estudar em Lisboa, com o estatuto de militar-estudante. A Cristina já alugou uma casa, tem praticamente o curso concluído, pretende começar a dar aulas em Outubro. A guerra nesta zona está presentemente calma e os meus afazeres passam por patrulhamentos, vigilâncias numa estrada que está a ser alcatroada, colunas de reabastecimento, desloco-me com o meu substituto procurando explicar-lhe as nossas missões, se bem que a actividade operacional que lhe está reservada seja uma perfeita incógnita. Quem sabe se quando eu sair daqui não o põem no Enxalé ou noutro quartel. Por favor, não volte a escrever mais para o SPM, assim que chegar a Bissau telefono-lhe. Passando em revista estes dois anos que levo na Guiné, agradeço-lhe do coração as coisas boas que me deu, a companhia, os estímulo e os livros. Incluo neste agradecimento a ajuda notável que a Manuela me deu, ela continua a visitar aos sábados no anexo do Hospital Militar Principal os meus soldados, auxilia-os, manda-me publicações, tendo sido maravilhosa. Desejo as suas melhoras e até breve.

Para Cristina Allen Santos

Meu adorado Amor,

Vejo pela tua última carta que estás ansiosa para que eu parta depressa desta guerra, fiquei muito contente com os teus exames e a descrição que fazes da nossa casinha. É um esforço que eu nunca te poderei agradecer, o de estares a estudar e ao mesmo tempo a mobilar com escassos recursos o nosso palácio. Com o remanescente do dinheiro que tenho aí depositado, compraremos os outros electrodomésticos e os móveis de que falas.

Evidente que não te posso tranquilizar, mas partirei em breve, talvez dentro de uma semana. Por ora, ando com o Nelson Reis pelos locais que ele precisa de conhecer. Ainda hoje iremos a Fá, o Cabral fará connosco um reconhecimento junto ao Geba, frente ao Cuor. Não voltei a Missirá desde que fui ver o gerador a funcionar e não espero voltar. Nesta última visita fui assaltado pelas boas e más recordações, as idas diárias a Mato de Cão, não sei o que é que a vida me vai reservar mas não acredito que venha a ter mais energia, ânimo e protecção divina para aguentar um esforço como foi a reconstrução de Missirá. Comecei a embalar as minhas coisas, um carpinteiro fez-me duas caixas de madeira para os livros, papéis e discos, nada tão volumoso como a carga que trouxe há dois anos mas mesmo assim vai dar trabalho a metê-las no barco. Estou a escrever as últimas cartas para os nossos amigos e para a minha família, a tirar notas das últimas leituras das publicações que a professora de Bambadinca me empresta.

Vou escrever agora ao teu pai para lhe agradecer muito sensibilizado a ajuda material que eles nos deram no arranque da nossa casa. Esta, prometo-te, não será a última carta que te escrevo. No momento exacto em que partir daqui para Bissau, a última carta será para a primeira eleita do meu coração. Então, como num filme que corre velozmente, recordarei tudo quanto me deste nestes dois anos, quando estou desanimado lembro as tuas lágrimas no cais, em Lisboa, os nossos telefonemas, a ansiedade que te transmiti em tantas cartas, como se tu tivesses obrigação em saber que existem Mamadu Djau, Serifo Candé, Sila Sabali ou Adulai Djaló, recordarei a doce companhia que me deste, dia após dia. Foi assim que aprendi que há gentilezas, ternura e cuidados sem preço. Foi assim que te envolvi nesta guerra, escrevendo-te todos os dias. Foi a escrever-te que se revelou que eu não tenho talentos para a poesia. Descobri também que não tenho vocação para outras formas de ficção e isso entristece-me pois gostava de te dedicar a mais linda prosa do mundo, gostava que os outros soubessem que um dia irei reler as cartas que te mandei e orgulhar-me do que te escrevi. Recebe mil beijos do marido que tudo te deve.
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 3 de Outubro de 2008 Guiné 63/74 - P3266: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (46): Chegou o meu periquito

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