quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3193: Blogpoesia (25): Hoje tenho pena de nunca ter escrito um aerograma a uma madrinha de guerra (Luís Graça)


"Que cada uma de nós se lembre que lá longe, nas províncias ultramarinas, há rapazes que deixaram tudo: mulheres, filhos, mães, noivas e o seu trabalho, o seu interesse, tudo enfim, para cumprirem o seu dever de soldados.

"É preciso que as mulheres portuguesas se compenetrem da sua missão, e assim como eles estão cumprindo o seu dever, lutando pela nossa querida Pátria, também vós tendes para cumprir o vosso, lutando pelo bem-estar dos nossos soldados- luta essa bem pequenina, pois uma só palavra, um pouco de conforto moral basta para levar alguma felicidade aos que estão contribuindo para a defesa da integridade do nosso Portugal.

"OFEREÇAM-SE PARA MADRINHAS DE GUERRA. MANDEM O VOSSO NOME E A VOSSA MORADA PARA A SEDE DO MOVIMENTO NACIONAL FEMININO".
"Madrinhas de guerra". In: Presença, nº 1, 1963, p. 36-37).



Com o atraso de décadas,
quiçá de séculos,
presto hoje o meu preito
às mulheres portuguesas
que se vestiam de luto
enquanto os maridos
ou noivos
ou namorados
ou irmãos
ou vizinhos
ou conterrâneos
ou simplesmente amigos
andavam na guerra do ultramar.
Ou guerra colonial, como se queira.
Já foi há tanto tempo
que eu perdi as contas aos contos,
às estórias,
às vidas,
às lendas,
às narrativas.

Venço, por fim, a minha relutância,
o meu preconceito,
o meu medo do irracional
e porventura o meu medo visceral do sagrado,
e presto a minha homenagem
às mulheres que rastejavam no chão de Fátima,
implorando à Virgem o regresso dos seus filhos,
sãos e salvos.
Só as mulheres, em bando, são capazes
de implorar a piedade dos deuses
e ao mesmo aplacar a sua ira,
quantas vezes sacrificando as suas próprias crias,
para logo a seguir imprecar contra eles,
se for caso disso.

Decididamente,
sem pejo nem pudor,
presto aqui a minha homenagem
às mulheres que continuavam,
mudas e caladas,
silenciosas e inquietas,
ao lado dos homens
nos campos,
nas fábricas
e nos escritórios.
Por que havia um silêncio
que não era cumplicidade,
que não era traição,
que era inquietação,
que não era resignação,
que era a raiva a crescer
dentro do peito,
que era porventura já
a emergência, a explosão
da revolta e da liberdade.

Descubro a cabeça,
tiro o chapéu,
ajoelho-me,
sinto-me prostrado
perante estas mulheres do meu país
que ficavam em casa,
rezando o terço à noite,
como a minha mãe
e as minhas irmãs
e até o meu pai,
a quem, de resto,
nunca agradeci este gesto de amor.
Nem em público nem em privado.
Nunca saberia, porventura, merecê-lo
nem muito menos agradecê-lo.

Mas também endosso
as minhas palavras de admiração
às que aguardavam com angústia,
pelo aerograma,
na hora matinal
(e às vezes mortal)
do correio,
vindo do SPM número tal.
SMP: que estranha sigla,
que misteriosos mensageiros
vindos do além,
do além-mar.
Sem esquecer as que,
muito poucas,
subscreviam abaixo-assinados
contra o regime e contra a guerra.
Às que, tão poucas que se contavam pelos dedos
nos ficheiros das polícias,
escreviam,
liam,
tiravam a stencil
e distribuíam
comunicados e folhetos clandestinos.

Às que, também raras,
sintonizavam altas horas da madrugada
as vozes da rádio que vinham de longe
e que falavam de resistência
em tempo de solidão
e de servidão.

Homenageio, sim, àquelas que, muitas,
tiravam carinhosamente
do fumeiro (e da barriga)
as chouriças
e os salpicões
e os nacos de presunto
e as morcelas
e as alheiras
e o pernil de porco
que iriam levar até junto dos seus filhos,
homens-toupeiras,
de Gandembel a Nambuangongo,
no outro lado do mundo,
no calor dos trópicos
e na humidade repelente dos abrigos e das matas,
um pouco do amor de mãe,
das saudades da terra,
dos cheiros da casa,
do campo,
do esterco e dos animais,
dos sabores da comida,
e da alegria da festa.

Mas também, e por que não,
às, muitas,
e em geral adolescentes, virgens,
e às jovens solteiras,
namoradeiras,
que se correspondiam com os soldados
mobilizados para o ultramar,
na qualidade de madrinhas de guerra.
E que alegria, tão primária, era essa
de receber um bate-estradas,
um corta-capim,
um aerograma,
uma carta
com uma madeixa de cabelo lá dentro,
lá no SPM mais desgraçado do mundo!
Que alegria, tão elementar,
e que eu nunca tive
de ver posar o teco-teco
na pista de terra-batida
com o tão desejado saco do correio.

Não tive, nunca quis ter,
madrinha de guerra,
por preconceito,
por orgulho e preconceito,
por achar que era uma instituição ou criação
do Estado Novo,
dos senhores da guerra,
e das senhoras que os geravam…

Hoje, confesso, tenho pena
de nunca ter escrito um aerograma
a uma madrinha de guerra.

Luís Graça

Lisboa, 1981/2008
____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. alguns dos postes relacionados com esta temática:

10 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2519: As Nossas Madrinhas de Guerra (1): Os aerogramas ou bate-estradas do nosso contentamento (Carlos Vinhal / Luís Graça)

16 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2543: As Nossas Madrinhas de Guerra (2): Minha querida Madrinha de Guerra (José Teixeira)

20 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2562: As Nossas Madrinhas de Guerra (3): Quem as não teve ? (Luís Graça / João Bonifácio / Paulo Salgado)

22 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2572: As Nossas Madrinhas de Guerra (4): Madrinhas de Guerra (II) (José Teixeira)


(2) Vd postes anteriores desta série (que vão de 1 a 10 e de 22 a 24; houve um erro na numeração, que se entendeu não valer a pena corrigir):

6 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3178: Blogpoesia (24): A minha pequenez é que era uma tristeza (Rui A. Ferreira)

4 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3169: Blogpoesia (23): Amálgama de sentimentos e emoções...(Rui A. Ferreira)

6 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3115: Blogpoesia (22): No mesmo navio, piscina e música em camarote de 1ª, suor nos porões...(José Belo).

30 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2701: Blogpoesia (10): Olhando para uma foto minha, no Mato Cão, ao pôr do sol, com o Furriel Bonito... (Joaquim Mexia Alves)

27 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2589: Blogpoesia (9): Sangue derramado (José Manuel, Mampatá, 1972/74)

27 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

12 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2259: Blogpoesia (7): Nas terras de Darsalam, no Cantanhez, adormeceste, para sempre, como herói, meu querido Sasso (J.L. Mendes Gomes)

7 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2248: Blogpoesia (6): África Raiz, de Fernanda de Castro

16 de Outubro de 2007 > Guiné 63774 - P2180: Blogpoesia (5): O vigésimo sexto aniversário de um gajo nada sério, Missirá, 6 de Novembro de 1970 (Jorge Cabral)

23 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2125: Blogpoesia (4) : A morte do pássaro de areia (Luís Graça)

30 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2009: Blogpoesia (3): Explorador ? Mineiro ? Não, um Soldado ! (Jorge Cabral)

18 de Julho de 2007 > Guine 63/74 - P1964: Blogpoesia (2): O Combatente (Magalhães Ribeiro)

17 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1963: Blogpoesia (1): O embondeiro do Cachil (J. L. Mendes Gomes)

3 comentários:

Anónimo disse...

Luís,
É difícil falar ou escrever alguma palavra.
Aqui neste Poema Louvor à Mãe, Mulher, Amante e Amiga, talvez tenhas escrito a coisa mais linda da tua Vida.
Estou profundamente sensililizado, apalermado sem saber o que dizer, pois um nó na garganta me foi crescendo à medida que lia as tuas palavras, cascata nascente diretamente do teu coração tenho a certeza.
Porque senti e reconheci a grandeza delas, o meu profundo agradecimento em nome da grande Mãe que tive,e que já não se encontra cá, de minhas irmãs e da "madrinha" que rosa em botão também se apagou.
Obrigado!

Mário Fitas

Anónimo disse...

Que te dizer, depois do que li ! Obrigado Luís. Não páras de nos surpreender.
Oxalá essas jovens, hoje mulheres, quantas já falecidas, pudessem saborear as tuas palavras.

Anónimo disse...

uma bela homenagem à figura "madrinha de guerra", que nem sempre lhe é atribuido o valor humano e histórico que merece.
Parabens Luis.

Antº Rosinha