quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3167: Ser solidário (19): Morreu o Nuninho, da Cadi. De paludismo. De abandono (Luís Graça)


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Uma jovem, da região, que estava grávida, e que tinha o marido em Bissau. Caíu nas boas graças das nossas senhoras, sempre muito maternais: a Júlia, a Alice, a Isabel... Cadi era o seu nome. Vivia em Farim do Cantanhez. Esteve recentemente às portas da morte. E perdeu o seu primeiro e único filho, o Nuninho, de 4 meses. Por paludismo. Por abandono. Por falta de tudo (ou quase tudo). Por falta de cuidados de saúde (primários e secundários). Por falência dos serviços públicos de saúde. Por falta de médicos que vêm estudar para Portugal e não voltam.... Por ser guineense, por ter nascido num dos piores países do mundo no que diz respeito a indicadores de saúde materno-infantil... "Que raiva, que mundo, que desgraça de país" - é a primeira reacção que nos ocorre, a nós, que estamos num país que tem um dos baixos indicadores de mortalidade infantil do mundo... Sofremos, e muito, com estas notícias tristes que nos chegam da nossa querida Guiné... e que nos envergonham a todos (LG).

Foto: ©
Luís Graça (2008). Direitos reservados.
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(…) “Segundo os dados da UNICEF, em cada mil crianças nascidas na Guiné-Bissau, 233 morrem antes de completar os cinco anos de idade, das quais mais de metade (138) não chegam a fazer o primeiro aniversário”. (…) (Dos jornais)


Nuninho, o filho da Cadi, morreu (*)


Cadi, de seu nome.
Amorosa.
Uma ternura.
Uma jóia de miúda.
Tinha a graça de uma gazela
Apascentando na orla da bolanha.
Era nalu.
Vivia em Farim do Cantanhez.
Filha de um velho combatente da liberdade da pátria,
Com direito a pensão
Ao fim do mês.
Estava grávida de muitas luas.
Atrelou-se à Júlia e à Alice
Em Iemberém,
No início de Março de 2008.
Com aquela candura, doçura, espanto e maravilhamento
Das crianças africanas,
Quando vêem uma Mulher Grande, branca.
Homem estava em Bissau.
Todo o mundo vai p’ra Bissau,
Onde é a escola da malandragem.
Homem vai embora.
Diz que vai à lenha
E não mais volta.
Que o mundo é bem maior e mais sedutor
Que Farim do Cantanhez.
E deixa Cadi com a barriga cheia.
Agora Cadi vai a Bissau,
Levantar a pensão do pai.
As duas novas mães, tugas,
Dão-lhe dinheiro para a viagem.
Ficam amigas.
Prometem dar notícias,
De Lisboa, cidade grande,
Chão dos tugas,
E mandar roupa para o menino ou menina.
Cadi bem gostaria que fosse menino.
Para trabalhar na horta com ela.

Agora Menino já nasceu
E vai ter nome de padrinho, tuga,
Lá longe, bem longe,
Tão longe,
Que é preciso tomar avião.
Nuno vai ser nome do menino,
Por homenagem
Ao senhor capitão-fula,
Homem valente de Guileje,
Nuno Rubim, hoje coronel.
Todo o mundo está contente.
Família está contente.
Nalu está contente.
Agora que o Nhinte Camatchol proteja o menino
E a sua mãe Cadi.
E o avô, pensionista, combatente da liberdade da pátria.
E o Estado guineense que ainda paga pensão do avô.
Que a vida é a travessia de um rio,
Cheio de rápidos e de armadilhas,
De crocodilos,
De diabos,
De irãs maus…
A vida corre, como a água do rio.
Vem tempo das chuvas,
Vem mosquito,
Vem insecto, aos milhões,
Vem virús,
Vem bactéria,
Vem fungo,
Vem nuvem negra,
Vem tempestade,
Vem fome,
Vem doença,
Vem ave agoirenta,
Vem a morte, aos quatro meses...
Por paludismo!

A dor quebra coração da gente.
Da Cadi. Da Júlia. Do Nuno.
O Nuninho morreu.
Dirão as estatísticas:
Foi mais um dos duzentos
Em cada mil
Que não chega aos cinco anos.
A implacável estatística
Da mortalidade infantil
Na Guiné-Bissau:
138 por mil nados-vivos não sobrevivem
Ao primeiro ano,
diz a OMS.
O que é tu podes fazer ?
No teu país, há um século atrás
Também era assim...

A Alice não sabia.
Não sabia das últimas notícias.
Hoje foi comprar roupinhas, lindas,
Para o filho da Cadi.
Ao Colombo,
Em Lisboa,
No chão dos tugas.
Telefona ao Pepito
Para saber quando vai,
De regresso a casa,
No Bairro do Quelelé,
Para retomar o belíssimo trabalho da AD.
E se ainda tem espaço na mala,
Ele ou a Isbael,
Para arrumar uma roupa bonito para menino.
Eu deve estar lindo e robusto e saudável.
Que em Iemberém
Os meninos não tinham barriga grande.
E eram lindos, robustos, saudáveis.
Telefona ao Nuno e à Júlia
Para saber notícias da Cadi e do Nuninho.

Do outro lado da linha,
O desalento, a tristeza, a desolação.
O Nuninho morreu, aos quatro meses.
De paludismo.
Sem assistência médica.
Sem esperança.
Sem salvação.
Como um cão vadio,
Que morre na beira da estrada,
No meio do capim,
Na lixeira do bairro.
E A Cadi também esteve às portas da morte.
Por paludismo.
O Nuno e a Júlia providenciaram, a tempo,
O recurso a uma clínica privada.
Em Bissau.
E a Cadi salvou-se.
Porque gente amiga e solidária
Proporcionou os cuidados de saúde decentes
Que o dinheiro pode comprar.
Cadi perdeu o seu menino,
Espero que não tenha perdido
A fé e a esperança nos seres humanos,
Mesmo naqueles
Que assobiam para o lado,
Enquanto as crianças da Guiné morrem
Como os cães à beira da picada e do capim.
De paludismo.
De pneumonia.
De diarreia.
De má nutrição.
De SIDA.
De abandono.
De indiferença.
De falta de médico
(Que não volta
E fica a ganhar bom dinheiro em Lisboa,
Tabanca grande,
Chão dos tugas).
E de falta de medicamentos.
E de meios de prevenção e tratamento.
E das coisas mais elementares e essenciais da vida,
Como a água potável.
Ou um mosquiteiro impregnado.

O Nuninho morreu.
De paludismo,
Que é a doença da vergonha dos ricos
E um dos inimigos mortais dos pobres,
Nomeadamente em África.
O Nuninho não é, não devia ser
Um número, mais um número
Para as estatísticas, frias e cínicas,
Do nosso descontentamento
E da nossa má conscência.
O Nuninho era um menino nalu,
Filho da Cadi,
Sem pai,
Ou com um mau pai, ausente,
Que foi a lenha e não mais voltou.
E nesse dia, fatal,
Sem a sorte do Nhinte Camatchol
A protegê-lo.

Hoje a morte em Bissau tem um rosto:
O do menino da Cadi.
E a ti, pobre gazela,
Que direi ?
Coragem,
És nova,
A vida continua...
Não tenho palavras
Para calar a tua dor...
E mesmo assim sei
Que irás lutar para vingar a morte do Nuninho,
Que irás lutar pela felicidade a que tens direito,
Que irás herdar a coragem do teu velho pai,
Que lutou por um país novo,
Onde os meninos pudessem nascer e crescer,
Lindos, livres, robustos e saudáveis.
Não tens outro jeito, Cadi.
Não temos outro jeito mesmo,
Os guineenses e os amigos da Guiné.

Luís Graça


(*) Dedicado à Júlia, à Alice e ao Nuno Rubim,
Que na semana de 1 a 7 de Março de 2008
se afeiçoaram à Cadi e ao seu futuro menino,
que só teve neste mundo
direito a uma curtíssima viagem de 4 meses.

1 comentário:

Anónimo disse...

Coisas profundas e reais!
São hinos de humanidade.
Obrigado Luís!
Poetando se narra a vida duramente vivida.

Parabéns!

Um Abraço,

Mário Fitas